31 dezembro, 2007

No último dia do ano


31/12/2007.


Acordei cedo no último dia do ano – ainda madrugada, com a televisão em plena funcionalidade no Canal Brasil (quem a deixou ligada?). Não sei se ainda tenho palavras para cantar em 2007 – acho que aquilo que queria dizer eu disse: inventei muita coisa, contei um bocado de histórias e aproveitei para falar um pouco de mim. Talvez neste ponto possa haver brechas. Por exemplo: não gosto de televisão, sou alérgico a crustáceos, nunca soube plantar bananeira, aprendi a dirigir com vinte e quatro anos (provavelmente por medo, embora não tenha me acontecido nada traumático no trânsito antes disto), passo distante de uma tomada (mais um medo, entretanto com razão: quando criança levei um baita choque na cabeça) e não danço forró – sou nordestino, mas tenho pavor de forró. Nada disto é tudo, mas bobagens que, certamente, não interessarão a quem quer que seja. O fato é que estou sem criatividade para lhes criar algo simpático. Acabo de chegar de um supermercado lotado – todos fazendo suas compras para a derradeira ceia do ano. Buscava apenas produtos de limpeza, (e como está tudo o olho da cara!), a fim de deixar minha casa asseada para o novo tempo, por mais que ache uma grande besteira esta coisa de ter esperanças temporais. A vida necessitava ser bem dividida e foi tão-somente isto que aconteceu: um dia com tantas horas e um ano com tantos dias. Os meus problemas de hoje serão igualmente os de amanhã, e serão muitos, assim como os comprimidos que terei de engolir para chegar ao final de 2008. Pelas minhas contas, se nada for piorado, o que parece impossível, visitarei meu psiquiatra doze vezes, relatarei como tenho passado, como tenho me comportado e como vai a minha cria inimiga. A bem da verdade, não gosto desta época do ano: não consigo me comportar de forma sensata e serena. Sei que muitos não gostam de Natal e Réveillon, mas ninguém é parecido – a dor é de cada um, nós (sozinhos) quem a sentimos, a gente é quem sofre. Pode parecer lógico, mas a minha angústia é minha e a sua é sua – não há dúvida. Pena que não estou com o chororó frouxo, como diz minha mãe, pois chorar fez bem. Tenho prazer no choro, a qualquer tempo e a qualquer hora. Por mim, celebraria a chegada do ano com um berreiro daqueles, mas não vou conseguir. Mais fácil será me encharcar de vinho argentino e presunto caramelado. A bebida fantasia um pouco os fluidos positivos e só descubro que isto não é saudável no outro dia, quando acordar no chão do meu quarto. Pensam que irei beber até cair? Não. Ainda não dissera, mas adoro dormir no chão. Aprendi isto durante as prévias do vestibular. Por alguma razão, amanhecia disposto e acabei cultivando isto com um vício, mas não é sempre que me acontece de preferir o chão frio ao aconchego de uma cama macia. Entretanto, amanhã, precisarei me levantar preparado, pois o dia em que se comemora a paz é para mim um campo de guerra – quase uma batalha sangrenta. Detesto domingos e feriados! Tive o privilégio de conhecer alguns lugares pelo mundo e afirmo categoricamente: domingo é tudo igual, aqui ou lá, ou como dizia minha avó materna: domingo é triste até no Rio de Janeiro, lugar que considero dos mais belos. É perfeitamente aceitável que você não leve em consideração nada do que acabo de escrever, e vai usar na noite de hoje um recém-comprado traje amarelo, branco ou vermelho como símbolo de um desejo a ser alcançado no próximo ano; abrirá um espumante francês como se o líquido adocicado jorrado servisse para lavar as aflições de outrora; jogará coisas ao mar e contribuirá sobremaneira para a poluição de nossas praias; e cantará aquela musiquinha chata dando adeus ao ano velho. Mas é bom acreditar em algo. Sou mais pessimista, além de aceitar somente aquilo que vejo: coisas concretas, materiais, com cheiro e forma. Mas não vou entrar em assuntos de natureza duvidosa – são maléficos. Outra coisa: não entendo por que se gasta tanto dinheiro com fogo de artifício. Todo ano, durante o festejo, uma cidade se supera na quantidade de fogos, que é medida pelos minutos, e todo ano fábricas, geralmente clandestinas, explodem pela incapacidade de gerenciamento matando pessoas. Quem ganha com isso? O empertigado administrador? Treze minutos de fogos não cansam a vista e o ouvido? Cuidado para não se queimar. No mais, deixarei o resto, se houver, para o próximo ano. Um brinde falso a todos!
Mendes Júnior
* Photo by Kim Ji Hae, "31/12/2005".

19 dezembro, 2007

Caixa de madeira VI


19/12/2007.


Nepomuceno jamais imaginaria a existência de uma Valquíria Callas no mundo. Mas existia e roubou a cena: glamourosa, arrasou, colocou a outra no bolso – a loirinha – e foi anunciada como a estrela da noite. Valquíria Callas tinha mais cintura e busto, portanto, tratava-se de uma fruta mais saborosa e suculenta. Além do mais, em cima da bancada improvisada de passarela, Valquíria Callas era a fantasia que revestia a viúva, que se guiava pela vontade de sobreviver, coisa para qual a outra, por ainda ser de pouca primavera, não havia despertado. Faz-se necessário muito mais para permanecer viva, pensava a viúva. A festança durou até a manhã do outro dia. Dona Jussara fez questão de que a casa fechasse suas portas juntamente com a saída do último cliente, que, coincidentemente, era o caminhoneiro que havia dado uma força a Nepomuceno há dias. Mas isto sei eu que lhes conto a história, pois o senhor das estradas apreciava carne fresca, com cheirinho de sabonete, intumescida de gotinhas de moça, e acabou se deitando com a loirinha. O caminhoneiro, no entanto, não era de muita conversa, talvez sequer contasse seus últimos minutos à viúva, caso fosse ela ali arreganhando as pernas e espairecendo a marreca, quanto mais dizer que na estrada apanhou um sujeito de quem não conhecia o nome, como se fosse raro conceder carona – não, ao contrário, eram muitas num mesmo dia. A viúva jamais poderia imaginar que estava tão próxima de notícias de Nepomuceno, de quem já não tinha tanta certeza de existir. E, quando aquele homem partiu trôpego, com seu cigarro-de-palha no canto da boca, no seu automóvel com a caçamba cheia de garajau, fedendo à galinha, foi decretado o fim das comemorações do quengal.

O menino acabou cochilando no banco da praça, o qual já considerava como um segundo reduto, ou, talvez, o primeiro e único em que se sentia verdadeiramente confortável. Tomou um baita susto quando a mãe sacudiu seu braço. Quase leva um tombo. A viúva trazia na outra mão um pedaço de pão com manteiga e leite gelado para o menino saciar a fome. É verdade que não se alimentava desde a noite, entretanto, diante da escassez de comida que ambos amargavam diariamente, pelo engabelo de dona Jussara, aprendera a controlar as ânsias do estômago. Pegou então cuidadosamente o pão e começou a comer cheio de educação. Entre a pausa de uma mastigada quis saber da mãe como havia sido a noite. “Tranquila, normal e comum”, disse-lhe a viúva, ainda marcada de cores escuras no rosto e um chupão no lado esquerdo do pescoço. O menino tinha certeza de que aquele tipo de resposta não deixava brechas para nenhuma outra pergunta. Apesar da pouca idade, já compreendia muito bem determinados fatos, e este era um deles. Pediu à mãe que lhe passasse o copo de leite. Bebeu como se desfrutasse um enorme sorvete de creme com passas: arriou os olhinhos e se deixou viajar na imaginação pela roda-gigante colorida e iluminada, que circulava somente com ele, que funcionava para ele, e ele sentado numa cadeira amarela se balançando e acenando lá de cima para viúva e o tio ventríloquo, que se abraçavam, comendo maçã-do-amor, feito um bonito casal. A bem da verdade, a roda-gigante descansava pálida ao lado do banco, e isto o menino se deu conta por causa de uma leve ventania de areia que o obrigou a voltar da viagem. Como se não bastasse, ainda encheu seu leite de grãos de areia. A viúva pensava na dor daquela criança; entendia que o máximo que podia fazer – aquilo que estava ao seu alcance naquele instante – era não chorar na sua frente, assim passaria a idéia de fortaleza, segurança, que tudo estava bem e que a vida se resolveria tão logo Nepomuceno aparecesse, “caso não estivesse morto”, pensou no vazio. Então a viúva passou a mão pela cabeça do menino, tocando delicadamente as longas unhas no seu couro cabeludo, a fim de tirar um pouco da terra que se incrustou nos fios. Era tanta sujeira que desistiu. “Vamos apostar quem chega primeiro na dona Jussara?”, propôs o menino e os dois saíram correndo como duas crianças lépidas e traquinas.

Passados cinco dias, o menino quedou-se numa rede com o corpo infestado de perebas. A princípio, pensou-se tratar de catapora, pois as feridas vieram acompanhadas de uma febre muito alta, mas logo foi descartada a possibilidade por um infectologista da região, assim como qualquer espécie de verme, mas que também não conseguiu identificar qual a moléstia. Havia outros sintomas: o menino estava vomitando sangue, tinha o solado do pé e a mão esbranquiçados, a visão rareava, atormentava-se a cada minuto com uma pontada muito forte à altura do estômago e, por fim, queixava-se de uma coceira incontrolável no ânus. Em se tratando de doença, duas coisas preocupavam a viúva: quando o médico não sabia diagnosticar ou quando a danada era considerada rara, pois, em todo caso, o médico ficava no patamar do paciente: vulnerável à vontade de Deus.

O fato é que, se o menino já era magricela, ficou a ponto de desaparecer de vez – tudo que colocavam na sua boca voltava empapado de sangue. Dona Jussara, que de boba nem o andar possuía, sugeriu à viúva duas coisas: fosse embora com a peste dali ou aumentasse o apurado da casa, sobrando-lhe apenas dez por cento por cada deitada. Não havendo outra solução, optou pela segunda; depois arranjaria um meio de conseguir os remédios do filho. As companheiras de meretrício se demonstraram tão más quanto dona Jussara. Ninguém se ofereceu para ajudar. Finalmente havia chegado o momento de se vingarem por Valquíria Callas ter-lhes tomado a clientela montada na grana. Riram como se desejassem o trágico. Era a única com filho na casa, embora não fosse considerado privilégio, já que para isto dona Jussara exigia muito mais. Para quitar a dívida com o infectologista, Valquíria Callas teve de ceder o corpo muitas vezes. Mas não era exatamente isto que mais lhe tirava o sono, mas não saber do problema do menino e até onde ele seria capaz de aguentar. Nepomuceno bem que poderia estar presente para socorrer ambos, murmurava a viúva.

Com a graça divina, uma vizinha de dona Jussara se apiedou da situação do garoto e sugeriu à viúva que lhe desse baba do coco de catulé. A viúva perguntou do que se tratava. “Catulé é um tipo de palmeira que dá uns cocos bem pequenos e a baba deles ajuda a curar doenças dos olhos. É fácil encontrar lá por aquelas bandas”, respondeu uma senhora de idade, apontando o indicador para o norte. “Mas o problema dos olhos do meu filho é apenas um entre tantos mais sérios!”, retorquiu a viúva, deixando a velhota furiosa. “Pois que seu filho morrar!”, gritou.

A história da enfermidade misteriosa correu Massapê e a população exigiu das autoridades providências, e rápidas. A medida mais sensata seria afastar do convívio social o menino por medo de que o mal fosse contagioso. Para desespero da mãe, levaram-no para o isolamento do hospital público. A cena na casa de dona Jussara foi das mais horripilantes: era a viúva puxando pelo braço da criança, tentando impedir o afastamento, enquanto três brutamontes vestidos de branco, sem dificuldades, se encarregavam de colocar o fiapo de gente dentro da ambulância. Momento algum o menino esboçou reação – parecia não saber do que se passava. Ou não lhe restava força. Já há muito não enxergava nada e sentia muita falta das luzes da roda-gigante. Sonhava acordado com as fluorescentes e seus celofanes coloridos.

“Era o mais acertado a se fazer”, dignou-se a dizer dona Jussara à porta de casa.
Mendes Júnior
* Photo by Elberg, "Poupée # 12".

13 dezembro, 2007

... e saiu barata


13/12/2007.


É claro que também não acreditaria, mas é pura verdade. A verdade pode ser pura ou impura? Sendo impura, não seria uma baita de uma mentira? No entanto, o popular faz a gente escorregar, e rimar, por assim dizer. Pois bem, o menino – não mais que dez anos – foi sugado pelo caminhão de lixo e saiu barata, diante de todos. Sim, barata! Acho que me apressei na narrativa – pardon! Portanto, ainda agora aconteceu esse fato, que me deixou perplexo, mas ao mesmo tempo encantado. Fumava um cigarro pé-duro à janela, durante a pausa de uma história teimosa que há dias tento colocar no papel, ao som de Billie Holiday, Autumn in New York, quando vi certo alvoroço na calçada, perto de um caminhão verde. Pelo cheiro maldito, identifiquei como sendo o responsável por recolher o lixo-nosso-de-cada-dia e levar para o mais distante possível. Sempre pensei ser a profissão de lixeiro a pior de todas, com o devido respeito ao lixeiro que me lê neste instante, mas isto por não ter me dado conta de que há algo bem próximo ganhando a vida literalmente dentro do lixo: as mulas humanas. Antes que alguém se queixe por não saber o significado de mula humana, afirmo, sem medo de errar, que todos somos sabedores, embora não estejamos atentos, tal qual o significado de um sonho, que não sabemos que sabemos qual seja por causa de uma barreira de recalcamento que separa o inconsciente do consciente. Para o caso da mula humana, provavelmente, deve haver algo parecido impedindo nossa atenção. Confusa a psicologia? Sobremaneira, diria um amigo comum, mas, voltando à narrativa, refiro-me àqueles humanos (?) que circulam pelas ruas carregando, com a força dos membros superiores, debaixo de sol e chuva, dia e noite, domingo e feriado, baús com rodas, (geralmente caixas metálicas de geladeiras antigas sobre pneus de carro de passeio), os quais são entupidos de todo tipo de porcaria encontrada durante o longo percurso: papel, plástico, ferro, vidro, madeira, enfim – que futuramente será vendida sabe lá Deus a quem. Às vezes o baú transforma-se em meio de transporte da garotada e acabamos por ver pequenas cabeças balançando e bocas abertas se alimentando de ar. Confusa a poesia? Por certo, insistiria o amigo – i’m sorry, my friend, but... O certo é que, tão logo o caminhão estacionou diante de minha casa, muitas mulas humanas surgiram de não sei que lugar para retirar de sua caçamba tudo aquilo que poderia ser vendido (engraçado: aquilo que para nós não tem mais valor). E era um empurra-empurra danado para pegar (n)o entulho – pareciam ratos gigantes – até que, como disse, uma mula de uns dez anos de idade foi praticamente chupada pelo triturador de sujeira, que ficava na parte traseira do veículo. Não houve sangue nem barulho de osso se quebrando, mas o menino desapareceu em meio ao lixo. Há dois verbos que podem ser usados nesta última frase: misturar e somar. Algo me diz que aplicados ao contexto dá na mesma, já que não voltou mula, mas barata – uma barata d’água – por pouco tempo, pois alguém pisou nela com gosto.
Mendes Júnior
* Photo by Mariano Zuzunaga, "Squeezed Can".

01 dezembro, 2007

Lacanastrão


01/12/2007.


Foi a primeira toada que Totonho Candeia pronunciou quando Marlúcia entrou no boteco: “Ai, querida, desse jeito assim não dá mais para viver!”, fazendo correr pelas mesas risinhos de deboche da rapaziada. Totonho Candeia já estava mergulhado no álcool desde a manhã. Não almoçara em casa, conforme o combinado com a madame para o feriadão, e já passava da hora da janta e o diabo do homem ainda bebendo como se o mundo não tardasse a acabar. É claro que no estado etílico em que se encontrava muita coisa havia perdido o sentido, menos a marcação cerrada de Marlúcia: “Vim te buscar, Totonho!”, falou com zanga no sangue. Não que fosse ciumenta, ao contrário, o danado é que passava dos limites vez por outra. Mas aquela encenação de Marlúcia causaria constrangimento até num pastor e, portanto, ficou ferido – uma batuta no brio: “Ai, querida, desse jeito assim não dá mais, para!”, jogou o cigarro fora, pisou o resto da brasa e seguiu sem olhar para os lados. Marlúcia jogou umas cédulas na mesa e caminhou próxima ao trôpego-mulambento-embriagado-corpo. No entanto, Marlúcia começava a se arrepender da atitude: amava e era capaz de tudo para que não houvesse discórdia entre os dois, mas ele já estava na rua fazia tempo e aquilo foi se tornando numa preocupação gigantesca. Não tinham filhos, somente um ao outro. Totonho Candeia bateu com força a porta, por pouco não arranca as duas tábuas velhas. Foi direto, sem escalas ou conexões, para o fundo da rede vermelha e ligou o rádio bem baixinho. Com a expressão amarrada, gritou, já com a cabeça forrada no lençol: “Ai, querida, desse jeito assim não dá mais!”, levando-na a urinar a calcinha de algodão diante do medo. Uma paixão sem-vergonha alimentava a união, (mais ainda por causa dela). “Desculpa, Totonho...”, disse, com lágrimas espalhadas pelo fino rosto, mas ele subitamente virou para o lado oposto e bufou. As mãos dela tremiam, ainda assim teve coragem de tocar na varanda da rede: “Totonho?”, murmurou em súplicas. O receio de Marlúcia banhava-se na hipótese de Totonho Candeia ir embora, (abandono de lar), e pelo modo como falava – “Ai, querida, desse jeito assim não dá!” –, parecia fato consumado, entretanto Marlúcia tinha um gingado manhoso. Conduziu levemente o próprio corpo à rede. “Ai, querida, desse jeito assim não!” – deu um chega pra lá na coitada, que não se fez de rogada e permaneceu misturada naquele conjunto (melhor: naquele latíbulo): lençol, rede, ele, ar de cachaça, fumo e um fio sonoro que vinha do rádio. Marlúcia deu um cheiro em seu cangote e pôs a coxa no meio de suas pernas. Começou a ceder à tentação: “Ai, querida, desse jeito, assim...”, e mordiscou o lábio inferior. Marlúcia foi abrindo de forma cadente a bermuda dele. Claramente não houve oposição, ao contrário, até se esforçou em ajudar. O membro de Totonho Candeia saltou rígido, e então sentiu a mão sem a atadura negra mergulhando como um molusco cego entre as algas da sua ansiedade. “Ai, querida, desse jeito”, disse, em sinal de aprovação. Marlúcia, além da perfeita manipulação da glande, deslizava a língua pelo peito cabeludo de Totonho. Não existia mais o medo de outrora. “Ai, querida, desce”. Obedeceu levando a boca gulosa até o cajado de Totonho Candeia, que se contorcia todo agarrado ao punho da rede, tamanho o prazer proporcionado pela cavidade bucal da parceira. “Ai, querida...”, sussurrou em sintonia com o êxtase. Naquele instante não importava o almoço perdido, o jantar frio, o feriado, o dia, a voz do rádio, enfim, nada, mas tão somente o latejante gozo: “Ai!”
Mendes Júnior
* Publicado na Revista Vagalume, em agosto de 2008;
** Photo by Nobuyoshi Araki, "Untitled".

27 novembro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Freddie Hubbard


Abri mais uma vez meu baú do jazz e de lá arranquei dois grandes discos de um excelente artista: Freddie Hubbard, e os tais se chamam "Ready for Freddie" e "Open Sesame" (adorei este título). Eis que me aparece novamente o frentista me perguntando quem é Freddie Hubbard? De pronto lhe respondo que é o principal nome do trompete no jazz surgido depois de Miles Davis. Nasceu em Indianápolis (1938) e no começo da década de 60 juntou-se aos Jazz Messengers de Art Blakey, permanecendo até 1964. No entanto, a partir de 1966, passou a formar seus próprios quartetos e quintetos, tocando com muita gente boa: Max Roach, Eric Dolphy, Philly Joe Jones, Sonny Rollins, Slide Hampton, Jay Jay Johnson, Quincy Jones, Wayne Shorter, James Spaulding etc. A partir de 1976, Hubbard participou do grupo V.S.O.P. de Herbie Hancock - uma reedição do quinteto de Miles Davis dos anos 60, formado por Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter, ocupando o lugar que fora do próprio Miles. É importante ressaltar que seu som, mesmo tendo sido comparado a Miles, é diferente. Concordo com aqueles que dizem ser mais encorpado. É um grande improvisador, capaz de longos solos, onde nunca falta imaginação. Por problemas nos lábios, comum aos trompetistas, interrompeu a carreira nos anos 90. Bem, o primeiro disco de que lhes falei foi gravado em agosto de 61 e recomendo, principalmente por Arietis e Marie Antoinette, em que ainda há o "alternate take" de ambas. Quanto ao segundo, "Open Sesame", gravado um ano antes, a música que dá título ao disco é simplesmente fantástica, além de Hub's Nub, do próprio Hubbard. Vale dizer que McCoy Tyner é o pianista nos dois discos. Por fim, o selo é Blue Note.

Esteja dito.

Mendes Júnior

22 novembro, 2007

Os donos do mar



22/11/2007.

(Para melhor compreensão do texto, pedimos que ampliem a foto ao lado)

Das águas – então serenas – pareciam sair chamas, todas ardentes, pois todas as chamas são ardentes, e usurpadas das entranhas, tamanha amarelidão que ressurgia do espelho criado pelo mar, que não estava para peixes nem para tubarões nem para qualquer coisa que o valha, mas tão-somente para eles: os donos do mar, que se alimentavam do ar venturoso e do sal trépido, que tocavam suas bocas de forma a escancarar incontinente e denunciar o vazio, o oco, o nada, mas que, contudo, insinuava o prazer incompreensível, talvez porque as narinas dos donos do mar estivessem atulhadas de ilusões, devaneios e sonhos, que jamais se concretizarão, senão no próprio castelo levantado sob os olhos de uma ponte cravejada de animais menores oriundos da mãe-natureza, que recobriam suas finas pilastras e que não levavam a lugar algum, seja para cima ou para baixo, seja para quaisquer dos lados, pois não havia navios atracados fazendo sombra aos donos do mar, que ora era capitaneado pelo que se esticava na base horizontal e oriental de concreto deixada de lado um dia, com o rosto juvenil perdidamente em direção ao súbito teto, que provocava a tal chama que lhe banhava o peito desnudo e escorregadio de suor e lhe induzia a cerrar os magros olhos vermelhos enquanto o ora defensor se escorava no concreto vertical embevecido pelo milagre da felicidade, embora soubesse de que sensação assim é passageira e, de certa forma, cruel, mas de quê adiantaria caso fosse eterna, qual a serventia, pensaria o pobre defensor – o guardião do castelo –, castelo este à beira-mar, de vista gloriosa e de desenho imponente, que não tinha fim, que não oferecia destino, mas era o prazer dos donos do mar que lhes importava, pois não haveria mudanças até que a sereia resolvesse partir para o mais longínquo escondedouro e de lá não mais enviasse a magia do seu canto, mas a ora sereia saltava da ponte tão linda quanto seu sorriso – que inebriava a todos em sintonia com o perfume do mar, que alimentava um por um os donos do mar –, e era justamente da janela do castelo, corroída pela maresia, por onde a sereia observava a infinitude das águas, que eram mais dela do que de qualquer outro, no entanto solitária – desintumesceria seu coração –, portanto, preferia viver na companhia dos seres desolados daquele pedaço da água – eles eram reis –, além disto, se protegia da malfadada das gentes e era desejada feito o girassol, de mesma amarelidão, por outros dois rapazolas, que loucamente se jogavam aos seus pés, (perdão: cauda), como quem se aventura do alto da torre de um castelo, do castelo sem teto que era deles, que ficava no território marcado por eles, que riscava a ponte com eles, que queimava a pele deles, donde se via de longe, de muito longe, lá longe, o sorriso dos verdadeiros donos do mar.

Mendes Júnior
*Photo by Isabela Pinho;
** Publicado no Jornal O POVO, em 02/02/2008.

21 novembro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Sylvia Plath


Num Brasil tão averso à poesia, sou um leitor de poesia. Conheço (pessoalmente) outras duas pessoas que apreciam poesia e mais outras três que escrevem poesia, ou seja, somos seis desgraçados vivendo como anormais. Claro: há muito mais por aí: somos milhões. Talvez esteja sendo mui trágico com meu discurso, mas percebam quantas editoras publicam poetas e, quando estiverem circulando nas livrarias (que não são tantas), atenção às prateleiras que guardam Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa etc. Verão que para ambas poderemos usar as mãos para contar. No entanto não precisamos ser (sequer) parecidos. Estes já estão bem guardados no "O Homem Medíocre", de José Ingenieros. É por isso que não me constrange em nada alardear que a nova tradução de "Ariel", de Sylvia Plath, realizada por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo, pela Editora Verus, é espetacularmente linda. Vale conferir.

"A presente edição brasileira encara com seriedade os problemas de tradução que sua poesia oferece e a refaz num português tão atraente quanto é a apresentação gráfica deste volume, que - reordenando os poemas como a poeta desejara que os publicassem - inclui também seus manuscritos com as respectivas notas e correções".
(Nelson Ascher, Revista BRAVO!)


Esteja dito!


Mendes Júnior.

João dos Santos (ou manhã à moda impressa no jornal)


Sem data.


Depois daquela manhã, na 12ª Delegacia de Polícia, tudo poderia mudar. Enfim, retificar-se-ia a espúria escrita de que os nascidos da pobreza são dados ao banditismo. João Clisteres Bivandi dos Santos tinha vinte anos de fome e os dois primeiros anos da vida de parcas condições de sobrevivência, mas estava de pé para contar a história: vivo. Com vinte e dois anos, finalmente, arrumaria uma ocupação digna. É claro que tivera às fuças um ambiente propício às vias tortuosas da marginalidade, mas decidira cedo negar toda e qualquer facilidade advinda do crime.

João dos Santos – abrasileirando sua graça – nasceu de um parto mal sucedido: foram sete meses na barriga de uma meretriz, que vendia o esquálido corpo no Trenzinho de Chica Fulepão, e, ainda assim, conseguira ser cuspido de suas entranhas para tombar no solo infértil das ruas. O pai era um politiqueiro da cidade. Segundo as más línguas, deixou de visitar os lençóis amarfanhados quando soube que seu sêmen havia procriado uma criatura. Aos nove anos perdeu a mãe para um amante endiabrado, passando a viver de acordo com os domínios d’Ele. Entre noites em claro e profundo abandono, lutou para ver chegar (sempre) os raios de um novo dia.

Em suas idas e vindas pela praça da Sé, João dos Santos conheceu, além da escória da humanidade, seu Alfredo Tamboril, dono de um armazém de trigo. Acabaram "chegados" e seu Alfredo, por tanto escutar histórias do coitado João dos Santos, lhe ofereceu um emprego de estivador. João dos Santos não pensou duas vezes. Em vinte e dois anos, fora renitente em não cair nas armadilhas urbanas, o que lhe conferia uma firmeza de caráter. O trabalho era apenas consequência da sua força de vontade. Para tanto, seu Alfredo Tamboril exigiu o mínimo: um passado sem máculas, mas atestado pela polícia.

Acontece que na 12ª DP, ao tentar conseguir o documento que seria sua alforria do mundo dos vagabundos, houve um princípio de algazarra pelo roubo do telefone móvel da delegada de plantão. E alguém apontou o dedo para João dos Santos.

“Tu tá preso, cabra safado! É muita audácia! Na própria Delegacia!”
“Não roubei! Foi o moço que estava sentado do meu lado. Vi quando ele pegou o negócio e saiu correndo”.
“Aquele lá nós conhecemos das redondezas. Não é metido com celular. O lance dele é som de carro. Tu escondeu? Fala logo, seu merda!"
“Seu polícia, só vim aqui pra pegar uma folha corrida pr’um emprego. Tenho nada, não!”
“Mas é um escroto mesmo! Fala logo! Cadê o celular? Vamos, porra! Diz logo, se tu não quiser apanhar na frente de todo mundo!”

João dos Santos ficou mudo. Levou um soco na boca do estômago vazio.

Portanto, como observado, João dos Santos, de história pregressa irretocável, foi confundido com ladrão e preso, perdendo a oportunidade única que tivera na vida. Uns dizem que foi por causa do preconceito, já para outros o determinante foi seu lado paterno. A certeza que se tem é a de que João dos Santos partiu em busca da folha corrida limpa e alcançou, sem querer, os antecedentes criminais.



Mendes Júnior
* Texto publicado no Jornal O POVO;
** Photo by Sigal Avni, "Untitled".

16 novembro, 2007

O problema são as cartas


16/11/2007.


Tudo é possível quando a morte se anuncia. Mas voltemos esta narrativa. Quero começar o texto ainda vivo. No entanto, para não ultrapassar os limites, nada mais do que pouco tempo antes de uma bala perdida se encontrar justamente no meu peito. Genalva me garantiu que a resposta para os males da minha vida estava nas cartas, portanto fiquei sem escolha: confiava plenamente naquilo que Genalva me dizia e, obviamente, em tudo que me mandava fazer. Pronto. Estava com um bom jogo. Não tinha como ser diferente: a mão era minha e o apurado mudaria meus próximos dias. Não era tanto, mas o suficiente para comprar umas galinhas e umas cachaças. Genalva era uma escrota! Ganhei! O barbudo asqueroso que estava ao meu lado fez menção de não acatar o decisório da mesa, mas percebeu a tempo que não seria uma atitude acertada naquele distinto boteco. Estonteante, diante da euforia pela vitória, ofereci uma rodada de bebida para todos. Percebi que o prêmio só dava para as cachaças. Sobrou o suficiente para uma partida de dominó. Acho que Genalva, ao falar em cartas, quis dizer jogos de um modo geral. Talvez não: perdi! Fiquei sem um puto no bolso e o desgraçado que ganhou sequer pagou a própria bebida. Perdi para um sujeito que não bebia. Porra, Genalva! E a criatura ainda me falou que eu não sentiria a menor vontade de ir embora. Cacete! Me deu uma gastura ficar olhando aqueles vagabundos jogando em plena manhã de terça-feira. Cartas, Genalva? Claro! Não eram as cartas do baralho, mas da cartomancia. Sou um retardado! O barbudo ainda me olhava atravessado quando parti. A situação mudava de lado: andei duas quadras e lá estava uma placa em madeira: cartomante. Sorte, Genalva! Esperei outras duas pessoas antes de ser atendido. “Não consigo ler o seu futuro” – disse-me a velhota. – “O quê?”. Acontece que, além de ter perdido meu precioso tempo, acabei enjoando o cheiro do incenso e quase vomito o turbante da velha. Não vomitei, mas desmaiei. Como não querer ir embora? Genalva vacilou feio! Ainda quiseram se aproveitar de mim. “Mas a senhora não me disse coisa alguma” – aleguei antes de sair sem pagar. O pior foi descobrir pouco depois que ela havia dito. Azar, Genalva! Fui baleado! A partir de agora falo na condição de morto. Genalva tinha toda razão: era nas cartas, embora tenha errado num ponto que considero de menor importância. Está tudo tão frio. Porcaria! Genalva, vem me buscar que estou odiando!


Mendes Júnior
* Photo by Chema Madoz, "Playing Card".

13 novembro, 2007

Seu Percival


13/11/2007.


Nada era mais estranho,
naqueles minutos de angústia,
do que minha nudez ao vento da alameda
de um jardim desconhecido
.
(História do Olho – Georges Bataille)


Retirada a aposentadoria, o que fez seu Percival? Com uma merreca no bolso, junto da imagem miúda de São Francisco de Assis, lapidada em pedra-sabão, adquiriu uma passagem de ônibus leito, e foi a Tutumé visitar quem ainda vivo estava na grandiloqüente família Junqueira da Silva, que há tempos rareou em mandar notícias via postagem. Percival Junqueira da Silva Neto já há muito passeava pela casa dos oitenta e, após um susto dado pelo velhaco coração imerso em nuvem de fumaça e desgosto, sentiu que passara e muito da hora de voltar a Tutumé, mas ainda assim quis a força do destino e o suspiro da saudade que seu Percival atinasse para o fato de que ainda se revestia da galantaria de um touro reprodutor e havia o ânimo firme para cheirar umas menininhas na casa de Madame Chica Fulepão e delas tirar um sarro mais-que-gostoso; ora, queria aproveitar enquanto a verdasca do touro reprodutor respirava. Talvez mais do que isto – seu Percival não escondia. Tutumé era uma baita cidade, até o surto de depressão, em meados dos anos vinte, que deitou a população quase por inteira. Dizem que foi logo após a temporada de um circo de ciganos. Muita gente não sustentou o troço, lembrava seu Percival, e acabou se valendo de tiro, de corda grossa, de veneno para ratazana e de afogamento: “Era o fim dos tempos! Era o fim dos tempos!”, murmurava seu Percival, que à época namorava uma donzela de pêlos escuros e volumosos, olhar manhoso e couro alvo, que terminou seus dias tenros pulando de uma ponte, entre Tutumé e Manuaba do Norte – pelo menos era a versão propagada nas cercanias, pois o corpo nunca fora encontrado. Ela atendia por Rosa – nome justo. Seu Percival ficou desconsolado: perdeu a criatura mais fogosa da face da terra. Foi nesse momento que decidiu seguir viagem por direção torta e tão cedo precisar retornar a Tutumé, terra de povo, agora, sisudo e estranho. Ele também sofreu bastante com a onda de depressão e por muito pouco não deu cabo da própria vida – por muito pouco mesmo, no entanto ele já era um touro reprodutor – não se desvaneceu. O mais dolorido foi mesmo o trágico suicídio de Rosa, com quem deitava numa redinha todo comecinho de noite para um chamego. Era aquele perfume de princesa que cegava seu Percival e, por esta razão, já havia comprado anel e tudo o mais para as formalidades legais do noivado. Queria passar a vida inteirinha com Rosa, mas a história foi interrompida pela covardia dela, que sequer deixou um bilhete dizendo “adeus, Percival!” Nada! Seu Percival se segurou para não chorar dentro do ônibus – ele era um touro, não podia esquecer. Cinqüenta anos entre Tutumé e ele – uma separação reflexa pela compleição da bunda de Rosa: que coisa louca! que gostosura! Seu Percival não insistiria em viver sem aquela maravilha e achou por bem sair correndo de Tutumé, mas, aos oitenta e qualquer coisa, decidia retomar uma lembrança bem guardada junto ao sexo de Rosa. “Era a felicidade! Era a felicidade!”, suspirava seu Percival, o touro reprodutor.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Untitled 25 (From the Soumaya Series)".

09 novembro, 2007

Suplantaram o Ribeiro


09/11/2007.


“Suplantaram o Ribeiro!”
“O quê? O Ribeiro fez o quê?”
“Não! Suplantaram o Ribeiro! Você não sabia?”
“Não! Não sabia! Mas quando foi isto? Como foi isto? O Ribeiro parecia ser uma pessoa tão direita...”
“E continua sendo. Ele é a vítima. Ele foi suplantado lá na repartição, ontem mesmo! Mal chegou do cafezinho, pronto: suplantaram o coitado do Ribeiro!”
“Escuta, mas o Ribeiro de quem você fala é aquele que comeu cocô quando era menino?”
“Este mesmo! Você com certeza lembra dele. Ele é aquele homão de cor indiana, casado com a Rita de Cássia, que alguns dizem que é a maior safada da paróquia”.
“E o Ribeiro é chifrudo?”
“Olha, particularmente, acredito que sim. Veja bem, a mulher outro dia estava lá no bar do Osvaldão num assanhamento de cobrir o rosto das atitudes. E isto ainda era pela manhã!”
“Mas qual o problema do horário?”
“Amigo, mulher que fica dando mole para outros machos em plena luz do dia não tem um pingo de caráter. Sem contar que bebia. Bebia! Está escutando?”
“Pena do Ribeiro... Ele não merecia tanto...”
“Meu caro, a vida é tinhosa! Por isso defendo o pensamento de que é na criancice que a pessoa decide seu trajeto. Veja, o Ribeiro comeu cocô menino e, depois de sei lá quanto tempo, continua sendo o preferido das chacotas. Bem, mas não é todo dia que se encontra alguém que já provou merda, né?”
“É verdade... Não é todo dia... Qual linha você vai pegar?”
“Não, vou ficar por aqui mesmo. Estava de passagem quando o avistei nesta parada. E tem mais! Dizem que o pai do Ribeiro dava uns cacetes na mulher. Onde já se viu homem bater em mulher?”
“O Ribeiro teve uma infância muito complicada... Como vai sua senhora?”
“É como digo: é na infância! É na infância! É na infância!”
“Mas...”
“Nem queria colocar o motor para pegar, mas dizem as péssimas línguas, pois somente más é pouco, e o povo gosta de falar muito, que, de tanto presenciar a mãe apanhando sem nada fazer, acabou ficando meio maricas. Mas como não há meio anão nem meio qualquer coisa, digo que o Ribeiro é maricas!”
“Exagero, colega...”
“Não! É maricas, sim!”
“Mas ele não é casado?”
“Vai lá saber o gosto dessa patota. A Rita de Cássia, no entanto, é vagabunda e vive nas esquinas do centro dando pra um e pra outro. E de manhã, meu caro, é fogo!”
“Ainda não entendi esta parte do horário. De qualquer modo, o Ribeiro não teve sorte na vida. Talvez você tenha razão. Deve ter sido durante a infância”.
“Batata!”
“Mas, independente de tudo, é desumano sair suplantando as pessoas, principalmente um sofredor como o Ribeiro”.
“Estamos falando de um sujeito que comeu cocô, amigo! O mundo tem suas deficiências, mas não é injusto! Um cara que comeu cocô! Sei não!”


Mendes Júnior.
* Photo by Josep Maria Sellarès, "Tasting".

01 novembro, 2007

Espiral


01/11/2007.


Sinto o fogo próximo. Mas quem de mim pode correr?, senão a menor parte que há pouco anunciou o fim do dia. Bem, apenas o derradeiro suspiro do dia, a lua que chega forte, jamais, jamais, jamais – ora, Judas – o fim dos tempos, pois a saideira se confunde com a tal esperança e esta saideira é a última face da vida, e isto percebi quando sentei à primeira no Orlando, não aquele da Virginia Woolf, mas o Orlando, que hoje já não corre o perigo da obesidade, pois quis a medicina estética que ficasse o mais magro dos seres. O fogo está tão próximo que cega quem o tenta enxergar – tente não, meu amor, pois o sofrimento é irmão de pai e mãe, (sangue de sangue circulando na veia), não sabia? – corra pra bem longe daqui, mesmo que as pernas não correspondam, aqui estamos mais mortos do que no cemitério, e nele consigo comprar flores artificiais para chorar como se chora pelo morto do Ananias. De qualquer sorte, pergunto, vale a pena sofrer? Há um grito lá longe dizendo que não. Mas o som é tolo, feito o meu, de gente que nada viveu até aqui. Agora queimo vivo, mas estou de malas prontas...

Mendes Júnior.

* Photo by Pierre Alechinsky, "Spirale II".

Leituras de uma viagem


Sem data.


Ao invés da capacidade permitida, exposta na placa colorida, devia ter quase o dobro de pessoas dentro do ônibus, entre sentadas e levantadas. Tinha até galinha no corredor amarrada pelo pé em alça de sacola de pano. A primeira parada foi em Itapajé – cidade muito modesta –, a fim de que os passageiros esticassem os membros e comessem qualquer coisa, não muita, pois as escolhas eram poucas: queijo coalho, paçoca e refresco de tamarindo. Márcia não estava acostumada com aquilo: moça recatada, jamais enfrentara tantos desafios por uma viagem, que eu considerava a priori desnecessária. Márcia desembarcou no meio de uma ventania de areia: suas madeixas ficaram disformes, enquanto no seu rosto escorria uma gota de suor que nunca presenciara. “Pois bem, esse é o mundo em que nasci: no nada, mas perto do fogo do inferno”, no entanto Márcia, com quem eu pretendia casar no próximo dezembro e bem distante dali, alegou que considerava importante conhecer as pessoas que me trouxeram à vida. Há anos não tinha notícias deles e me causava constrangimento revê-los depois de tanto sumiço. Talvez Márcia tivesse razão: era uma infinita angústia pelas lembranças de tempos difíceis. Pisar naquele chão não era a melhor coisa para mim, faltava-me a sensação de saudade e mais ainda de felicidade por retornar a casa, e, debaixo do calorão, minhas mãos esfriavam à medida que a viagem chegava ao seu fim. Estávamos de volta à estrada de piçarra, quase nas linhas embicadas do deserto que um dia anunciei a Márcia: Sobral – e ela sabia tão pouco de mim que se assustou quando descobriu que mentira dizendo que meus pais haviam morrido de dengue e que no lugar do casarão no qual nasci instalara-se um abrigo de mulheres públicas, ou seja, não havia mais nada a ser feito para resgatar o meu passado e a cidade pouco tinha a oferecer, mas Márcia fazia parte do grupo de mulheres teimosas, isto porque gostava de mim do jeito que me apresentei e, portanto, me obrigou a produzir provas contra mim: “Menti, Márcia!”, o que não foi problema: ela gostava com o coração. Era ligada à família e, então, resolvi comprar o bilhete que me levaria do topo da árvore até a raiz mais profunda, junto com Márcia, que durante muito tempo insistiu em me fazer companhia na travessia – acho que ela sempre soube do meu medo, embora não compreendesse exatamente a forma com a qual lidava com ele, mas queria ajudar. Lembro do seu sorriso largo e branco quando eu disse para arrumar a mala, mas com roupas leves e em pequena quantidade, pois não demoraríamos. Com tão pouco contentei a consciência – estava errado, eu sabia, mas havia a força que me afanava a dignidade. Não estava sendo justo, mas quem disse que há justiça quando se tem vergonha? Márcia, no entanto, se fascinou por tudo, inclusive pela minha história. Pena de mim: eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio – estava voltando ao lugar que não era o meu – uma ilusão.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Soumaya, Marakech, Morocco, 1999";
** Publicado no site da Revista Piauí;
*** Publicado no Jornal O POVO, em 24/11/2007.

25 outubro, 2007

Sodomītae-ārum



20/10/2007.




Sou um sodomita e cheiro à mortadela. Engraçado, estou sempre carregado de sensações que me diminuem como ser humano, pelo menos, assim me concebem todos: homem rabisseco, criatura menor. Hoje, depois de enfrentar correntezas e correntezas ao inverso do mar revolto, chego aos quarenta anos ainda capaz de expressar surpresa com a festa de aniversário organizada pela mamãe. Esse meu soluço é de uma emoção esporádica, assim como o é minha felicidade por morar às asas da mãe. Fico ali, no cubículo instalado debaixo dos primeiros degraus, que inclusive está podre há tempos, mas durmo bem, não tão confortável quanto gostaria. Noutra semana descobri um tumor à altura dos genitais, quando cortava pêlos na região, mas o doutor Epaminondas não se achou hábil em garantir se havia gravidade neste incômodo de saúde, ficando para determinar em atendimento à sobriedade de exames feitos com o auxílio da tecnologia avançada da medicina, mas para quando?, perguntou minha mãe, no que respondi: no momento em que decidir e quiser a tecnologia avançada da medicina, ora, mas para quando é isso?, novamente minha mãe – não lhe dei ouvidos e fui comer meu panachê. Apaguei o fogo de quarenta palitos azuis que estavam enfileirados no bolo de chocolate. Minha avó materna adorava bolo com café forte e manteiga-da-terra, entretanto, mesmo depois de anos, me trazia péssimas lembranças, pois foi sua última refeição antes de escorregar no banheiro. Fiz um pedido que levantou vôo com a fumaça: um segredo até certo ponto bem guardado, mas mamãe insistiu sobremaneira a fim de que eu o revelasse. A princípio, recusei-me a ceder aos seus apelos, contudo achei por bem compartilhar intimidade com a única pessoa que fazia parte da vidinha nossa: sou sodomita, disse-lhe brandiloqüentíssimo. Ela bateu palmas: Que maravilha, meu filho! Éramos ela e eu – tão-somente os dois, ainda cedo, pois eu contemplava quarenta anos e cheirava à mortadela. Que maravilha, meu filho!, repetia minha mãe de punho em riste, diante de minha livor mortis. Não há de ser nada a história de tumor, mamãe, fique despreocupada. E que maravilha, mamãe! Estamos salvos! E eu sentado à beira da calçada da casa de brilhante com dez anos ao lado do seu afável marido, lembra? Ela não recordava. Mas como não, mamãe, se era você quem de lá dentro emitia um bonito som para invadir a dor que sentíamos. Ah, que maravilha!, ressaltou. Os arpejos da mamãe me levaram ao suicídio. Era naquele local que eu ficava... apenas bem.
Mendes Júnior

* Publicado no site da Revista Piauí;

** Publicado na Revista Cronópios, em 26/08/2008;

*** Photo by Ralph Gibson, "Leda".

24 outubro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Herbie Hancock
Uma confissão: sou fã do Herbie Hancock! Mas quem é Herbie Hancock? - perguntar-me-ia um frentista amigo. Bem, Herbert Jeffrey Hancock, nascido em Chicago - por assim dizer - foi popular a partir da segunda metade do século passado por suas façanhas no piano e, obviamente, por ter lugar como compositor no quinteto do grandioso Miles Davis. Passeou pelo hard bop, modal, free, jazz-rock, jazz-funk, fusion a até pela música brasileira. No entanto começou a tocar piano baseando-se nos repertórios de Chopin e Mendelssohn, mas isto quando jovem ainda; depois despertou sua atenção para o jazz e, portanto, acabou sendo bastante influenciado por outro pianista: Bill Evans. Até então, Hancock não se interessava por improvisos, mas tal situação foi se modificando e ele começou a exibir uma personalidade própria, cheia de nuanças.

É interessante observar que, mesmo com um talento indiscutível, faz-se necessário estar na hora certa e no local adequado, e foi justo o que aconteceu a Hancock no final de 1960, quando foi convocado às pressas para substituir Duke Pearson (autor de Prairie Dog) no quinteto do trompetista Donald Byrd durante uma turnê. Pronto, as portas estavam abertas, e Hancock acabou gravando seu álbum de estréia: Takin' Off, pelo selo Blue Note, em 1962, com apenas 22 anos de idade. Quem fez parte deste disco? O saxofonista Dexter Gordon, o trompetista Freddie Hubbard, além de Billy Higgins e Butch Warren. A partir do segundo álbum, My Point of View, foi parar no Miles Davis Quintet (Seven Steps to Heaven, Nefertiti, In a Silent Way, A Tribute to Jack Johnson etc). Hancock ainda provou da sétima arte: Round Midnight (1986).

Mas aquilo que realmente gostaria de dizer neste curto texto é que Herbie Hancock, para a felicidade dos amantes do jazz, acaba de lançar pela Verve um novo álbum, chamado River: The Joni Letters, e o disco é muito bom! É natural o receio quando se depara com as participações desta homenagem à antiga parceira de Hancock, tais como Norah Jones, Tina Tuner, Corinne Bailey e Luciana Souza, mas o preconceito logo se vai com as faixas Court and Spark, Edith and the Kingpin, River e Tea Leaf Prophecy, esta com a encantadora Joni Mitchell. Os músicos que completam a obra são Dave Holland (bass), Wayne Shorter (soprano e tenor saxophone), Vinnie Colaiuta (drums) e Lionel Loueke (guitar).

Por fim, revelo que gosto muito do álbum The New Standard, também gravado pelo selo Verve, em 1995, mas ficará para uma próxima conversa.

Esteja dito.

Mendes Júnior.

08 outubro, 2007

Bachelard (1884 – 1962) – Ruptura epistemológica para explicar o novo espírito científico – II

Gaston Bachelard
ARTIGO, sem data.


Dando continuidade à análise que ora fizemos do pensamento do francês Gaston Bachelard, tomando por base sua obra “O Novo Espírito Científico”, e abordando preferencialmente àquilo que ele chamava de “negação”, que, a bem da verdade, seriam os cortes epistemológicos e as rupturas, reforçamos sua importância no momento em que a história passava a encarar a verdade como algo circunstancial e intersubjetivo e que a consensualidade não assegurava mais a certeza, alterando de vez o discurso do real e alimentando um questionamento pertinente: a universalidade do conhecimento vigente até o século XIX. Com essa obra, Bachelard mostra haver uma profunda ruptura entre a ciência contemporânea do novo espírito científico e a ciência clássica newtoniana e euclidiana. A categoria dessas rupturas vai estar presente como uma constante e como um fundamento primordial ao longo do desenvolvimento do seu pensamento, levando sua reflexão para novos caminhos, contestando pressupostos da tradição científico-filosófica. É esta a intenção de Bachelard com sua proposição: retificar princípios e categorias que norteavam as filosofias das ciências de sua época, as quais considerava inadequadas.

Bachelard foi decisivo para o desenvolvimento da epistemologia como saber autônomo, cujas idéias passaram a orientar as diretrizes teóricas do pensamento epistemológico e a propor uma certa autonomia e uma linha alternativa ao neopositivismo lógico em virtude da insistência sobre a consideração “histórica” dos processos científicos. A saber: Bachelard concebia a existência da imaginação criadora de cada um na ciência e, por esta razão, não mais era possível uma contraposição entre a razão e a imaginação. Por sua vez, desenvolve seu pensamento através de duas vertentes (aparentemente) antagônicas: ciência e poética, e isto permitia a Bachelard ser um racionalista rigoroso e ao mesmo acorde passear na esfera dos sonhos e devaneios, aprendendo o verdadeiro sentido da imagem e da imaginação. Eis uma considerável ruptura, na qual faz surgir uma grande polêmica, pois se trata da epistemologia e da poética caminhando juntas de encontro aos conhecimentos arraigados pela tradição. Bachelard entendia que era possível, sim, a complementação da ciência com a poética, permitindo ao homem um mundo novo e surreal.

De acordo com o pensamento de Bachelard, a razão não deixa de ter uma história, mas uma história com trajetória descontínua e com muitos obstáculos, portanto somente a epistemologia que partisse da reflexão da própria ciência poderia se tornar adequada para expressá-la. Para Bachelard, a filosofia positivista era considerada ultrapassada na medida em que não conseguia “dar conta das transformações que o saber científico sofreu”. Aqui, abrimos um parêntese para ressaltar o pensamento de Bachelard no que diz respeito aos períodos que considerava ter passado a história das ciências: o estado concreto, o estado concreto-abstrato e o estado abstrato. No princípio exaltava-se a experiência, mas é no estado abstrato que há a discussão da experiência, ou seja, menos empírico e mais abstrato. A ciência deixaria tão-somente de descrever dados e passaria à epistemologia discursiva e, por intermédio da descontinuidade e da ruptura, haveria o progresso e o desenvolvimento do pensamento e da razão. Bachelard combaterá a noção de razão absoluta e contínua, as “filosofias do imobilismo”.

Bachelard defende uma polaridade epistemológica, entendendo que a filosofia das ciências deve conter dois pólos: realista e idealista, empirista e racionalista, ao mesmo tempo. Seria, portanto, o reconhecimento do a priori e do a posteriori representando a dinâmica do conhecimento; há um complemento e o fim é o dinamismo da própria ciência – há um desenvolvimento dialético. Propõe Bachelard uma espécie de pedagogia da ambiguidade para dar ao espírito científico a flexibilidade necessária à compreensão das novas doutrinas.
Mendes Júnior.

05 outubro, 2007

Caderno de Viagem – Mito e história e estória


05/10/2007.


Amanheci com saudades de Buenos Aires e do seu ar europeu. Aliás, é até difícil não se imaginar caminhando pelas ruas parisienses, quando em Buenos Aires, com seus charmosos cafés e sua gente bem vestida e bonita, de qualquer sexo – também se respira moda alta por lá. Mas é interessante observar o comportamento nativo e dele tirar algumas conclusões adocicadas. Por exemplo, vive-se de mitos, e eles são muitos.

Maradona é um mito. E não importa nada se o craque do esporte bretão tenha se envolvido com drogas pesadíssimas, visitas várias a clínicas de recuperação, grossas confusões, Cuba, gol com a mão e outras lendas, (que nem tanto), ninguém, até hoje, jogou tão maravilhosamente, magnificamente, espetacularmente bem quanto ele, nem mesmo Pelé ou Garrincha, e seu retrato está em todos os lugares: camisetas, muros, propagandas, guias, calçadas, enfim... É item inclusive de casa noturna, onde, depois das três da madrugada, Maradona e seus amigos certamente serão encontrados.

Carlos Gardel é outro mito: mesmo depois de falecido se considera que esteja cantando tango melhor do que antes. A música Por una cabeza está cada dia mais rica. E não importa nada se Carlos Gardel tenha chegado para viver na Argentina a partir dos dois anos de idade, vindo de Tacuarembó (Uruguai) ou Toulouse (França), ele é nascido argentino e ponto final. Mi Buenos Aires Querido é o segundo hino oficial do país, merecidamente melódico e cheio de suavidade. Escutando-o é provável que se pense num blank verse ou numa canção emergida na soledade de Cabo Verde, ou, quem sabe ache, um exagero de minha parte, mas veja: “El farolito de la calle en que nací / fue el centinela de mis promesas de amor, / bajo su quieta lucecita yo la vi / a mi pebeta, luminosa como un sol (...) Mi Buenos Aires / tierra florida / donde mi vida / terminaré”.

A história de que em uma única rua de Buenos Aires há mais livrarias do que no Brasil inteiro é um mito para estufar o peito portenho. Mesmo que fosse possível tal comparação, não significaria dizer que se tenha mais leitores por ter maior número de livrarias, que, aliás, se consegue encontrar nas suas estantes algumas pérolas de Borges, Cortázar, Sábato e Soriano. E não importa nada se, de acordo com o mais recente censo divulgado pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), temos 2.680 livrarias de Norte a Sul – o dobro, portanto, da Argentina –, o que vale é a idéia de que eles são culturalmente superiores, inclusive na adversidade, já que, na América Latina, dizem não haver outro lugar que tenha tanto psicólogo per capita quanto na Argentina.

Existem outras questões pontuais, como a Avenida 9 de Julho, dita a mais larga do mundo, e a Avenida Rivadavia, a mais longa (também) do mundo; o Teatro Colón, que, assim como o Metropolitan House, em New York, e o Scala, em Milano, está entre as melhores casas de ópera (também) do mundo; o Rio da Prata, que banha Buenos Aires, é o mais largo (também) do mundo, chegando a medir 90 km entre as margens. E curiosidades não faltam: por exemplo, o ônibus, a caneta esferográfica, o sistema de impressão digital e o doce de leite são inventos argentinos; ou o fato de Buenos Aires ter sido fundada duas vezes, e seu primeiro nome ser Ciudad de la Santísima Trinidad y Puerto de Nuestra Señora la Virgen María de los Buenos Aires.

Buenos Aires é uma cidade mitológica, imponente e curiosa, e não importa nada, nada, nada se você não a enxergar assim.
Mendes Júnior
*Photo by Ernesto Rolandelli, " Puerto Madero II".

03 outubro, 2007

Assalto à moda moderna (ou Assalto à moda impressa no jornal)


03/10/2007.


Tiago Pantera faleceu de morte matada. Com apenas vinte anos (ainda incompletos), a prematura tragédia foi motivo de muita dor para a família, principalmente para a mãe, assim como seria para todas as mães. Pois bem, Pantera até os dezessete anos era um bom garoto, nada com estudos, é bem verdade, mas não fugia ao trabalho: fazia bicos numa oficina mecânica e ajudava em casa com a venda de picolé caseiro preparado pela irmã mais nova. A partir daí, a vida desandou e Pantera se enlaçou com uma mulher pública, chamada Rosete Fofolete, ficando, por esta razão, enquadrado num artigo de lei cuja pior pena era a cegueira vacilante de homem apaixonado. Não foi por falta de aviso, mas por excesso de recomendação – o proibido tem mais tempero para o homem – que Pantera, contra tudo e todos, resolveu lutar a favor do seu sentimento por Fofolete, que fazia ponto num posto de combustível, na estrada que levava a Manuaba do Norte. Certo dia, achando-se dono de alguma situação, Pantera exigiu de Fofolete que desse um basta na vida mundana, pois começava a ficar enciumado e não mais gostaria de vê-la fornecendo para outros machos, sentia-se deveras constrangido. Ainda não havia reparado na exata quantidade de dentes que faltava na boca de gaveta dela, e só se deu conta quando ela riu como nunca rira antes: “Pantera, meu gatinho manhoso, nada de lengalenga. Ande aqui se esfregar na sua boneca”. À época, os dois já moravam juntos num conjugado e quem pagava a conta era o corpo moreno e assanhado de Fofolete. Certo (outro) dia, movido pelo perfume do amor, bateu à porta de um caminhão e lá estava Fofolete na boléia fazendo uma felação num homem barbudo de aspecto grotesco. Pantera estava pronto para matar, mas levou um estilete tão-somente e acabou ficando na exata condição para morrer. E morreu com um tiro no peito durante a Novena de São Francisco. O corpo foi velado na casa da mãe – uma pequena construção de barro, que ficava à beira de uma lagoa cheia de mosquito e lixo. A mãe não se esgueirou do esquife do filho um só instante. Volta e meia era consolada por uma vizinha, um parente, uma amiga, mas estava completamente desiludida. Uma tragédia e nada haveria de ser pior, pensava a mãe de Pantera, mas isto antes de um trio anunciar um assalto. “Não se respeita mais nem velório!”, gritou um senhor que ao fundo bebia. Os três homens encapuzados não levaram em consideração os protestos e empertigados pediram para que todos colocassem dentro da sacola, que um dos bandidos tinha à mão, seus pertences de valor, pois só assim ninguém sairia machucado (estavam armados de revólver). “Não se respeita mais nem casa de pobre!”, dizia consternada a mãe de Pantera, cuja pele estava alva como pérola, mas os bandidos pediram pressa, exigência esta que ia de encontro ao nervosismo dos presentes, que inclusive não tinham muito a oferecer, além de dois ou três celulares pré-pagos, algumas correntinhas e pulseiras de micheline, garrafas de cachaça e vales-transportes. No meio de toda confusão, brilhava o corpo de Tiago Pantera; percebia-se na sua expressão uma calmaria nada que ver com o estorvo ora vivido pelos que ali estavam generosamente para lhe prestar uma derradeira homenagem. Junto ao ataúde, uma bandeira do Ferroviário Atlético Clube, sua segunda maior paixão. Rosete Fofolete, a primeira das paixões, não se dignou a ir se despedir do morto, até pela saraivada de ofensas que receberia e, portanto, acabou escapando do dramático velório de Pantera, mas não este, por incrível que possa lhes parecer. Quando nada mais restava, eis que o mais forte dos bandidos resolve assaltar o próprio morto. “Nossa Mãe Santíssima, não se respeita mais nem morto!”, clamou a irmã do pobre Pantera, antes de desmaiar. O meliante afastou as rosas artificiais das laterais do féretro e começou a mexer nos bolsos de Pantera, numa total falta de respeito e consideração. Mas o que poderia querer levar este coitado desta vida, senão uma foto 3x4 de Fofolete? “Vocês já estão mortos para o mundo”, disse o sádico malfeitor, antes de deixar o retrato junto ao peito de Pantera.
Mendes Júnior
* Photo by Sigal Avni, " Untitled".

01 outubro, 2007

A síndrome de Ulisses: a decomposição de um sonho


CRÍTICA, sem data.


Com pouco incômodo – sendo necessário um passeio rápido pela internet nas páginas eletrônicas de psiquiatria – pode-se descobrir o significado da Síndrome de Ulisses. De acordo com o psiquiatra Joseba Achotegui, Professor Titular da Universidade de Barcelona e Diretor do SAPPIR (Servicio de Atención Psicopatológica y Psicosocial a Inmigrantes y Refugiados), o termo é uma analogia ao herói grego, personagem central da obra de Homero, Odisséia, em razão das dificuldades vividas por Ulisses em território além, sendo, no caso, diagnosticada ao imigrante, legal ou ilegal, que tenta a sorte, o sucesso e/ou a felicidade em outros países, mas que, infelizmente, lhe é dado como “alimento” unicamente uma realidade que em nada se parece com a fantasia que criou na cabeça antes de sair de sua terra natal, e “se caracteriza, por un lado, porque la persona padece unos determinados estresores o duelos y, por otro lado, porque aparecen un amplio conjunto de síntomas psíquicos y somáticos que se enmarcan en el área de la salud mental”¹ Na exata concepção do vocábulo, é a Síndrome del Inmigrante con Estrés Crónico y Múltiple.

Esticando um pouco mais a pesquisa, podemos nos deparar com a informação de que o imigrante sofre com outros problemas sérios: o alcoolismo, uso de drogas pesadas, o acometimento de doenças sexualmente transmissíveis e problemas dermatológicos, por exemplo, em função da situação degradante e desumana em que vive, mal tendo dinheiro para pagar dívidas contraídas pela subsistência (sobrevivência) e para o sustento do vício. Sem falar que muitos amanhecem e anoitecem sozinhos na ilegalidade e, portanto, sequer vão ao hospital ou ao posto de saúde quando sofrem de uma patologia qualquer, por medo de serem apanhados na clandestinidade. Esse imigrante acaba por se desfazer cedo do sonho de prosperar em terra alheia e não lhe resta outra alternativa senão aceitar a alcunha de escória.

Questões relevantes, como as supracitadas, são tratadas com muito sabor no romance do colombiano Santiago Gamboa, A síndrome de Ulisses, cujo título não poderia ser mais apropriado. O livro conta a “saga” de um jovem que abandona Bogotá, chamado Esteban, para estudar e se tornar escritor numa Paris até então desconhecida. Aquela cidade bela, romântica, cheia de luz e democrática – por que não multicultural – se transforma num lugar frio, escuro, de exclusão absoluta e de rara possibilidade – deixa de ser a Paris em festa de Hemingway ou mesmo de Fitzgerald. O jovem aspirante a escritor, que à noite lava pratos num restaurante oriental mas que também estuda na Universidade de Sorbonne, e que mora numa chambrita, um pequeno quarto, como se o destino de cada um fosse exatamente cair no mesmo fosso, se envolve com outros imigrantes de diferentes nacionalidades: Romênia, Líbano, Polônia, América Latina, Iraque, Córeia, Turquia, enfim, mas não por isto se vê em segurança:

“Então, no meio daquele grupo, fui acometido por uma intensa e opressiva sensação de orfandade, como se em algum ponto tivesse me extraviado do caminho e agora me encontrasse numa órbita distante, algo como o Planeta dos Macacos, só que com poloneses e romenos (...)”²

No entanto, não deixa de reconhecer a função maior dessa realidade:

“(...) mas enfim, disse a mim mesmo, minha vida, por escolha própria, tinha agora mais a ver com todos eles do que com minhas lembranças de Bogotá, e era justamente isso o que tinha diante de mim, nem mais nem menos (...)”

Nessa Paris desfocada, “numa cidade cheia de hostilidade e frio”, os imigrantes acabam se isolando em grupos multilíngües e somente em esporádicas ocasiões se relacionam com os nativos. Geralmente, estes acontecimentos estão permeados por uma ilusão causada numa esteira de festas regadas a drogas, sexo e bebidas, sendo este um desvio crucial: o imigrante, numa tentativa de fugir de toda ordem de problemas causados pelo meio, principalmente no âmbito psicológico, facilmente encontra alento no vício. No livro insere-se desde o consumo excessivo de drogas até o vício produzido pelo sexo sem medida, tema este que é tratado em diversas vertentes e, de certa forma, abertamente, indo da relação homoafetiva até a posição-inaugural par detruá. As pessoas que transitam pela história parecem usufruir muito bem desses “entretenimentos” a despeito da perda de “uma esperança de tudo se ajeitar”, como diria Chico Buarque, e, com isso, passam a creditar os destemperos e agruras à própria cidade e acabam se deixando cair por terra:

“(...) Para mim também esta cidade implicou uma apredizagem difícil, uma sangrenta lição daquilo que eu era e, principalmente, daquilo que queria ser (...)”

O jovem Esteban abandona sua Colômbia na afetuosa idéia de que irá se transformar em um escritor, muito embora saiba que a novela que produzira não era tão boa assim, no entanto, Paris, como um histórico centro cultural, poderia abrigar e enaltecer sua literatura – pensava ele –, mas o que não sabia era que uma teoria dessa não valia para um marginalizado feito ele, ou quem sabe o sucesso estivesse relacionado tão-somente com a competência no trabalho. Interessante observar que, no decorrer da narrativa, há dezenas de citações a autores e a títulos literários, em sua maioria estrangeiros, porém consagrados – gente que há muito deixou seu território para viver em cidades como Paris, contudo autores que conseguiram um confortável reconhecimento. Para servir de exemplo, Gabriel García Márquez escreveu sua segunda obra, Ninguém escreve ao Coronel, em janeiro de 1957, na capital francesa, romance este que já foi inclusive às telas da sétima arte. No entanto, não esqueçamos que as frustrações e as dificuldades no “exílio” são a tinta maior da escrita de muitos “Ulisses”:

“(...) a poesia e o exílio são velhos companheiros; o exílio traz com ele a tristeza do que se perdeu, o que já é em si um sentimento lírico (...)”

Nesse ponto, não se trata daquilo que o imigrante é ou faz, mas daquilo que ele queria ter sido – o sonho se perde, e isto parece inevitável. Não resta mais nada senão se subjulgar e tentar, quando muito, sobreviver. E há aqui uma bonita história. Deve-se levar em conta que o escritor Santiago Gamboa é licenciado em filologia hispância pela Universidade Complutense de Madri, estudou literatura cubana na Universidade de Sorbonne e atualmente vive em Roma, como correspondente da France Press, ou seja, qualquer semelhança com a personagem central do próprio romance não pode ser considerada apenas uma mera coincidência, obviamente com algumas diferenças.

O pano de fundo de A síndrome de Ulisses é a situação em que vivem os imigrantes, entretanto, a frustração de não conseguir alcançar uma posição digna, mais precisamente fazendo referência ao jovem escritor colombiano, já foi abordada em outro romance de Santiago Gamboa: Los impostores (2002), ainda sem tradução no Brasil, senão vejamos o que diz o próprio autor, em uma entrevista, a respeito deste livro: “Por un lado son todos escritores no triunfadores, frustrados en el caso del colombiano. Hay un escritor intrigante que quiere ser escritor y no escribir, que es el peruano, está enamorado de lo que significa ser escritor, sólo quiere firmar libros. Y el otro quiere la vanidad literaria a través de la filología. Todos son impostores, están queriendo ser algo que no son”³.

Os imigrantes com suas vidas miseráveis e já sem sonhos, contudo, conseguem extrair da rua resvaladiça uma certa dose de fortaleza:

“Ao dizer isto me deu um beijo e me bateu com o travesseiro: sinto muito que as coisas não tenham ido bem para você, disse, deve ser difícil viver assim nesta cidade, que oferece tanto a quem tem, você não pensou em voltar para Colômbia? Não, disse eu (…)”

É isso que Santiago Gamboa, por alguns críticos literários considerado sucessor de García Marquéz e Vargas Llosa, quer nos mostrar nesse belo romance.


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[1]. Extraído: http://www.pensamientocritico.org/josach0407.html
[2]. GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. São Paulo: Planeta, 2006.
[3]. Extraído: http://www.literaturas.com/gamboa.htm


Mendes Júnior.
* Publicado no Cronópios, em 26/09/2007;
* Photo by Pablo Herrerías, "Nude".

27 setembro, 2007

História de um desocupado qualquer


Sem data.


Não lia bem, porém entendia que na leitura havia algo relacionado com a noite e, portanto, usava para justificar as noites mal dormidas. Não se permitia devaneios, mas tão-somente um realismo nu e cru de uma cidade sem rei. Nas horas mortas, entre meretrizes e desvalidos, deparava-se hermeticamente com o braço esquerdo da existência puxando-lhe por vielas escuras, levando-lhe aos bares mais sórdidos. Bebia muito conhaque e sempre de maneira sôfrega, como se sentisse nojo de qualquer coisa, como se repudiasse aquilo que estivesse ao alcance dos olhos, mas sua proximidade com as mentiras era mais uma natureza da entrega do seu corpo e alma, nada enobrecida. Gole, gole, gole... Vociferava contra as formas de poder utilizadas pelo homem em seu benefício, embora não fosse tão claro, mas não era um anarquista nem coisa parecida. “Caro colega, em Pinhais do Frade, o vilarejo em que nasci, a gente vivia feliz” – remoia um passado velhaco e de pouco para comer, tentando contar causos esquecidos nos farelos das estações para o primeiro desacreditado. Não era habituado do trabalho: nunca achou que as gotas de suor valessem mais do que esforço mal recompensado. Gostava mesmo era de televisão: assistia à programação que lhe caía nas vistas: novelas, programas de auditório, reclames, tudo, embora não gravasse a essência das coisas e, em poucos minutos, um vazio intrigante pinicava sua cabeça feito piolho. Em meio à escuridão, divertia-se com as estrelas: “Umas até caem do céu”. Aliás, o céu era o lugar em que pretendia estar no futuro próximo, já que nessa encarnação só lhe restava aguardar uma outra vida, pois doravante nada mais havia. Para qualquer inferno que fosse, de imediato, procurava garantir o pedaço mais sossegado, quiçá o que fosse possível se fingir de morto. Admirava as estrelas por não conhecer o dia de olhos abertos – durante a manhã, sono, na tarde, cura, à noite, zona (perfazendo-se, desta forma, um ciclo vicioso). Tinha amigos: bêbados, taxistas, mulheres, travestis, milicianos e garçons. Não tinha esposa nem filhos, pois, tal como Brás Cubas, não iria deixar esse triste legado para quem quer que fosse. Não que tenha se debruçado na história de Machado de Assis, mas, assim como aquele, sofrera de uma enfermidade – doença para lá de exótica, porém doença: Merencefalia Ociolítica Progressiva. Era uma espécie de enfermidade degenerativa trazida pelos próprios portugueses, por ocasião da colonização, causada pelo ócio profundo. Destruía, em primeiro lugar, o poder de ação e reação e, em pouco tempo, os neurônios, levando o ser humano do estado letargo à morte. Aos 45 anos, não lembrava nem o nome. A doença agravou-se. Até que, numa bela manhã, foi surpreendido pela navalha de um cobrador – um acerto de contas pelo tempo perdido.

Moral da história, segundo Millôr Fernandes: “Quem mata o tempo não é assassino: é suicida”.

Mendes Júnior
Photo by Mendes Júnior.

25 setembro, 2007

Ontem e Hoje






Poesia, sem data.








Num tempo, em algum lugar,
quando as rosáceas não exalavam amor
e a brisa não tinha frescor,
vi o enlace dos teus olhos
em minha negra — triste — face
e sorri... chorei... fui além.
Vejo, nesta hora, a minha amada,
em tipo meu lépido,
que não isenta nunca de brandura.
Assim, sempre...

Mendes Júnior
*Photo by Paula Bonneaud, "Écorce 2".

Noite baixa e Dia claro e Sonhos




Poesia, sem data.






Noite baixa... dia claro... sonhos
por que são sonhos.
Acordaste junto ao meu peito
ao meu pensamento
puro
ao meu canto
doce
ao meu dia
vívido
à minha lembrança
de teu riso solto
à minha esperança
de nunca se acabar
com teus olhos nos meus
sem mesmo saber quais os teus
quais os meus
com profusão
(com)tentamento
caminhando por dia claro
e por entre teu puro riso solto
que é vívido
e que tem um doce
que nunca se apagará
dos meus sonhos
nunca.
Mendes Júnior.
* Photo by Hyvrard, " A Star is Born".

24 setembro, 2007

Bachelard (1884 – 1962) – Ruptura epistemológica para explicar o novo espírito científico – I

Gaston Bachelard


ARTIGO, 03/09/2007.

“A verdade é filha da discussão,
não da simpatia”.
(Gaston Bachelard)

Uma das principais obras do francês Gaston Bachelard é “O Novo Espírito Científico”, cujo título original é Le Nouvel Esprit Scientifique, escrito em 1934. Não deixemos, no entanto, de citar “A Intuição do Instante” (L’Intuition de l’Instant), escrita um ano mais tarde, também de fundamental importância para entender o pensamento de Bachelard. Sem dúvida, e antes de mais nada, ressaltemos que o filósofo foi responsável por influenciar sobremaneira aquilo que se passou a pensar a ciência e todo um contexto analítico, bem distante das regras apregoadas pelo Positivismo de Auguste Comte, daí – momento em que podemos afirmar ainda – não ter se deixado prender à idéia de uma filosofia ortodoxa, o que lhe concedeu a alcunha de o “filósofo do não”. Isto, em miúdos, significa dizer que Bachelard acreditava que a história do pensamento não era contínua, mas com rupturas, revoluções e cortes epistemológicos. A bem da verdade, Bachelard foi um crítico e defendeu, para a construção da ciência, o racionalismo setorial e aberto, onde havia uma evolução por meio de conflitos. Para ele, o conhecimento necessitava ser aprofundado e aberto para ser considerado ciência.

É inevitável, contudo, que façamos, num primeiro sentido, uma distinção pertinente com o conceito positivista: para este, a certeza era algo concreto e visível, enquanto que Bachelard entendia que não existia nenhuma “certeza”, já que a realidade (certeza) seria construída e interpretada em função da criatividade do espírito de cada sujeito. De acordo com o filósofo, ao abordar o agnosticismo positivista, ou seja, a admissão, por parte desta acepção filosófica, de uma ordem de realidade que não pode ser conhecida, diz: “trata-se de um realismo de segunda posição, de um realismo em reacção contra a realidade habitual, em polémica contra o imediato, de um realismo feito de razão realizada, de razão experimentada (...)” [1]. A experiência científica, portanto, é uma razão confirmada e não proveniente de algo meramente desconhecido. Isto muda completamente o papel do cientista no século XX, já que este deverá depurar suficientemente os fenômenos científicos para se certificar dos seus resultados. Voltando às palavras de Bachelard: “Assim, independente dos acontecimentos que se amontoam e trazem mudanças progressivas dentro do pensamento científico, vamos encontrar uma razão de renovação quase inesgotável para o espírito científico, uma espécie de novidade metafísica essencial (...)” [1]. É interessante observar que o sujeito (cientista) fará uso de uma pensamento vinculado à racionalidade (razão) baseado em alguns pressupostos, levando-se em consideração para este caso o psicólogo, tais como: visão do homem, visão da psicologia, conceitos da teoria do novo espírito científico, dinâmica psíquica e um método de trabalho. Com a razão teríamos a constituição de (novas) idéias sobre o mundo – a formação dos a prioris e a posteriores.

Outra questão que deve ser aprofundada é no que diz respeito à história, à idéia e ao pensamento. Para Bachelard, conforme citado, a razão formava-se por meio de uma construção de idéias, por exemplo, com aspecto de descontinuidade, havendo vários cortes epistemólogicos, considerados como negações, mas não confundidos com o “falsificacionismo”. Para essa construção, no entendimento do filósofo, havia alguns importante obstáculos, como o senso comum, a massificação de uma teoria e o pensamento igualitário. Era justo contra isto que lutava Bachelard: com as rupturas epistemológicas e o uso da razão poder-se-ia criticar e criar uma nova ciência, pois pensava que esta se desenvolvia em meio ao conflito. Daí, ser Bachelard conhecido como “filósofo do não”, mas explica, antes de um entendimento errôneo da questão: “Uma observação é, de resto, útil para previnir um equívoco: não há nada de automático nestas negações e não deverá esperar-se encontrar uma espécie de conversão simples que possa fazer com que as novas doutrinas entrem logicamente no quadro das antigas. Trata-se de facto de uma verdadeira extensão (...)” [1]. Enfim, a idéia do “novo pensamento científico” é a de que, através de pressupostos epistemológicos (negações, cortes, fragmentos, instantes), os produtos científicos devem não apenas ser simples descobertas, mas resultados de uma cuidadosa criação.

[1]. BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 1996.
Mendes Júnior.

22 setembro, 2007

Sem sentido


22/09/2007.


Rinaldo Galhardo despertou em estado de perturbação absoluta, mas isto por causa do dia anterior, que – diga-se de passagem – foi dos mais trágicos na sua vida. Logo cedinho, levaram-lhe as únicas moedas enquanto aguardava a condução diária, depois, diante da ausência do minguado dinheirinho, teve de ir caminhando até a repartição e, por esta razão, ao bater o ponto, foi levado à mesa do gerente para ouvir poucas e boas pelo atraso. Na mesma manhã, por intermédio de um companheiro de sala, descobriu-se traído por um antigo colega de colégio, chamado Pompeu, que há muito vinha tendo um caso amoroso com Leide, uma balconista que Rinaldo Galhardo se enamorava desde o começo do ano e que correspondia porém com um sentimento estranho, é bem verdade, mas somente agora entendia o porquê. Nada disso, até então, havia feito qualquer estrago ou mudança na expressão sempre econômica de Rinaldo Galhardo, a não ser uma bala perdida que acertou em cheio o seu peito, quando caminhava para o almoço pela Major Facundo, por ter sido confundido com um perigoso-cruel-assaltante-de-banco-há-tempos-procurado.

Não lembrava de muita coisa, mas aquela brancura toda no quarto, inclusive no pijama que agora vestia, denunciava um hospital – público ou privado? – era uma pertinente pergunta a ser feita, pois Rinaldo Galhardo não tinha nem para o ônibus de volta. Procurou por aqueles botões ao lado da cama que chamam enfermeira (ou coisa que o valha) para se certificar do que teria acontecido a ele, mas não havia nada que indicasse essa facilitadora comunicação, no entanto existia a mais antiga de todas: a voz. Absurdamente, Rinaldo Galhardo não conseguia falar palavra algum, não saía nenhum gemido por sua boca, enfim, ele estava mudo. Rinaldo Galhardo pensou tratar-se de um pesadelo, uma brincadeira de mau gosto do seu inconsciente, que teria ficado invocado com o impedimento imposto pela barreira de recalcamento, e assim lhe concedeu um bom beliscão, a fim de trazê-lo de volta à realidade, entretanto, mesmo podendo notar a mancha vermelha no braço, não sentiu dor.

Viu numa mesa de canto, dentro de um copo de vidro improvisado de jarra, um par de rosas amarelas. Quem as teria posto ali? uma visita? a balconista? alguém da família?, mas as perguntas se iam como vento pela janela aberta. Esticou o pescoço para tentar enxergar a paisagem fornecida pela única janela do quarto, mas sentiu como se estivesse flutuando e a náusea fez com que recostasse a cabeça no travesseiro e se deixasse como antes. Totalmente incompreensível, pensava Rinaldo Galhardo, e aquilo começava a minar sua paciência. Tentou gritar mais uma vez, porém forçou tanto as cordas vocais que ficou cego. Era o cúmulo o que acontecia a Rinaldo Galhardo: num quarto de hospital sozinho, sem saber o porquê, deitado numa cama sem fios ou aparelhos colados ao corpo, sem voz e, agora, cego. Precisava de ajuda para entender um mínimo.

Rinaldo Galhardo pensou como devia ser diferente já nascer cego e perder a visão depois de velho, tendo tomado conhecimento das cores, das formas, do bonito e do feio. Nada fazia sentido, no entanto, com uma elegância surpreendente, esfregou os olhos inválidos e construiu imagens disformes de cor amarelada. Lembrou do par de rosas que estava ao seu lado e imaginou seu cheiro, mas não passou da tentativa, pois também estava privado do olfato. A vida é mesmo um desafio e, por vezes, confusa e preclara de ser abatida. Rinaldo Galhardo, em meio à sua cegueira, conseguiu no vazio lembrar, mesmo que de forma muito limitada, do que havia acontecido no ontem e sabia ter levado um tiro. Passou a mão pelo corpo, para encontrar exatamente o local atingido, mas já não havia as sensações provenientes do contato. Aquela situação maluca levara-lhe a um descontentamento no peito e só então atinou que o tiro fora no lado esquerdo dele, ou seja, no coração. Pobre Rinaldo Galhardo...
Mendes Júnior.
* Photo by Hyvrard, "Pongo nº 1".