30 maio, 2007

Allegro, ma non troppo



20/05/2006

Era um lugar fétido e de uma aparência horrível. Não se podia descobrir, à primeira vista, qual a cor da parede: além dos escassos raios solares que adentravam pelas laterais da porta e por uma basculante, havia lodo por toda parte. Quanto ao cheiro, uma mistura de podre e mofo inebriava o ambiente. A vontade era de vomitar até cair o último cuspe. Percebia-se no piso uma estranha frieza (insuportável) e alguns resquícios de sangue; sangue este que media a linha mais escabrosa da tragédia.

Uma grande mesa, formada por azulejos quebradiços, dividia aquilo que aparentava ser uma das salas do Departamento de Estudos Biológicos. Por cima, uma gama de objetos intocáveis, desde bisturis enlameados até fezes animais. As prateleiras (duas espremidas num dos cantos) eram abrigadas por escritores russos, um tcheco e alguns americanos – estes de fazer dó – e, claro, os compêndios de uma medicina não tão contemporânea. Uma vitrola velha acostava-se numa cadeira. Em outras épocas, a música poderia conceber ao lúgubre recinto a paz derradeira, porém nem toda a obra de Mozart e Schumann seria suficiente para fazer suportar aquela desdita.

Espécie de balcão, produzido pela mesma estrutura da mesa, fixava-se à parede do fundo. Por cima, gaiolas vazias. O zelador pensou tratar-se de um pesadelo. Sentira como um enorme soco no estômago, ao ver tanto bicho morto espalhado. Não que conseguisse compreender o motivo de tanto rato junto, porém sabia – por ouvir dizer – que aqueles roedores iriam conferir ao doutor Praxedes o Título de Mérito do Dragão Azul (e sabe-se lá o que isto significava). Demorou a encontrar o telefone, já que pouquíssimas vezes teve seu acesso permitido à sala; quando muito, o doutor Praxedes liberava a entrada aos seus ajudantes de ordem, e só. Ao passar e notar a porta entreaberta, o zelador foi invadido por uma curiosidade demente. “Doutor, toca pra cá o mais rápido possível porque o causo é sério!”

Anos e anos de uma labuta incessante em benefício da humanidade e o que se ganha em troca?, senão o sabor amargo da derrota. Bastava a simples suspeição de que o ocorrido poderia ser intencional para tornar o crime ainda mais repugnante. O respeitabilíssimo doutor Praxedes, Chefe da Pesquisa, quase precisou recorrer à sua ciência quando contabilizou os bichos mortos: todos. “Onde andam aqueles imprestáveis que não viram isso acontecer?” O trabalho de sua vida no chão, estraçalhado, como se quem o fizera tivesse ódio correndo na veia. “Responsabilizarei aquelas criaturas, aquele casalzinho de merda que só queria saber de ficar se esfregando!” O pior é que doutor Praxedes tinha a razão a seu favor.

O zelador permanecia na sala, em silêncio. Não era letrado o suficiente para arrancar de dentro as palavras de conforto, tampouco tinha noção do porquê das grosserias desferidas pelo honrado doutor Praxedes. Para quem? Em pensar que o resultado da sua pesquisa correria mundo, seria citado em palestras, incluído em bíblias de medicina, de uma só tacada, doutor Praxedes derrubou a vitrola e sentou; queria chorar, mas a presença do zelador era um impedimento e, portanto, freou a lágrima. O zelador esboçou uma reação para tentar acalmá-lo e, prontamente, ofereceu-lhe um pouco de conhaque. Ao preparo da taça, o zelador percebeu no pedaço mais escuro da sala o que poderia ser o pulso maroto de qualquer vida. Pôde conferir que sorriam felizes e ficou enfurecido e contraiu o rosto e queria justiça. Doutor Praxedes o viu sair correndo da sala sem nada dizer e imóvel ficou até sua volta. “O que está havendo?” – perguntou doutor Praxedes, porém, ao levantar, apenas teve tempo de escutar o assobio do jato de raticida. “Doutor, foram eles! Tenho certeza! Os dois!”. Doutor Praxedes sentou novamente, só que desta vez chorou copiosamente.


Mendes Júnior.
* Crônica publicada no site do Jornal O Noroeste, em 27/05/2006;
** Quadro A Serpente e a Seriema, de Francisco da Silva.

24 maio, 2007

O menino e a sabiá



05/05/2006.


Há muito tempo que não fazia um programa tão rico de recordações. Era o primeiro dia do mês de maio – um dia dedicado inteiramente ao trabalhador. Em muitas regiões desse pequeno planeta, manifestações atordoavam as ruas; algumas pacíficas, outras nem tanto; gente aos montes reivindicando uma gama infindável de direitos inerentes à qualidade de quem tem no suor do trabalho sua maior riqueza; outros batendo panelas em praças públicas sem ao menos saber o porquê de ainda tê-las; alguns poucos participando da tradicional corrida dos garçons. Enfim, mesmo no lugar mais recôndito, havia um simples movimento que fosse. Busquei, entretanto, no silêncio a minha forma de contemplação.

Exatamente nos primeiro raios do sol, sorrateiramente, decidi fazer um passeio pelas ruas de uma cidade delicadamente diferente. Necessitava resgatar do baú imaginário lembranças de uma infância recente. Não tinha certeza da mensagem que meus olhos transportariam ao coração, mas sabia que entraria numa dessas máquinas do tempo de que tanto se houve falar e de que pouco se acredita. Percorrer, depois de anos, ruas de sua criancice é aguçar todo e qualquer sentido. Foi justamente isto que me ocorreu ao viajar pela rua do Menino Deus, sua igreja e sua praça. Naquele lugar não me via de outra forma senão de calção e de pés no chão e, por isto mesmo, tive vontade de jogar fora amarras que me deixavam mais sério; queria correr novamente por sobre a calçada da igreja, em busca de uma pobre bola de futebol, como tanto fazíamos. Na praça, já não mais havia espaço para divisões sociais, como em tempos idos – ela era democrática.

Uma sensação engraçada me veio à tona ao chegar à igreja Nossa Senhora das Dores. Com a reforma e modernização de certos lugares, temos a ligeira impressão de clareza, pelo menos, na memória. Lembro, perfeitamente, quando criança, de sentir um certo pavor de ultrapassar a Catedral. Nas suas costas, tudo parecia muito escuro, perigoso e proibido. É óbvio – não tenho dúvidas – tratava-se de uma queixa infantil, mas o fato é que, mesmo puxando pelos arquivos empoeirados, não me recordo de ter estado ali mais do que em duas oportunidades. E me encontrar, naquela manhã, no Largo das Dores, olhando o rio Acaraú de uma forma praticamente virgem, sentado em um banco de madeira, causou-me uma vontade súbita de ter sido uma criança corajosa. Talvez, à época, não fosse tão bonito como agora, mas acredito que valeria tentar.

Saltou-me aos nostálgicos olhos uma lágrima pusilânime, ao ver a praça Cel. José Sabóia (Coluna da Hora) – para mim, uma fronteira. Digo assim, em razão da liberdade que me foi conferida, determinada sempre por linhas físicas e ordens familiares. A praça da Igreja de São Francisco, a praça do Teatro São João, a praça da Matriz N.S. da Conceição e a tal praça da “Coluna da Hora” delimitavam o meu direito de ir e vir. Trocando em miúdos, ficava enclausurado “entrepraças”. Cada uma, no entanto, de uma forma ou de outra, remetia-me ao pitoresco: do banho na fonte da “Coluna da Hora” até as primeiras pedaladas em frente ao teatro, tudo levava a crer numa felicidade inocente. E de fato o era.

Em determinado momento, tive medo de prosseguir: voltei a ser aquele menino sem coragem. Na cabeça, a bela canção de Tom Jobim e Chico Buarque; no peito, a vontade de um dia voltar para o meu lugar e escutar minha sabiá.
Mendes Júnior.
* Crônica publicada no site do Jornal O Noroeste, em 11/12/2006;
**Photo by André Adeodato, extraída em Sobral, nas margens do rio Acaraú.

22 maio, 2007

Caixa de madeira II


21/05/2007


Nepomuceno se perdeu do transporte. Era uma vontade dos infernos de urinar (quase faz nas calças), portanto, correu, enquanto o caminhão era abastecido de querosene, e foi se aliviar bem no meio da secura da mata, ao lado dos restos mortais de um bicho grande, que, ao que tudo indicava, já fazia parte daquele cenário árido há tempos. Ouviu bem de mansinho o ronco desmantelado do motor, misturado à chiadeira provocada pela jorrada de mijo na terra, e, feito coisa ruim, correu mais uma vez, só que agora segurando com força a fechadura do cinturão para não deixar as calças escorregarem. Sinto muito, moço, a próxima condução só amanhã de tardezinha. A viúva e o menino (tão igual ao Nepomuceno) foram embora com a cambada sem dar pela falta dele. Nepomuceno, no entanto, era bom de bico: iria se virar em terras alheias, fazer gente boa lhe pagar a comida e gente nova lhe oferecer a carne; não gostava de lero de besta, uma coisa caprichosa da qual tinha nojo, e não suportaria pensar na viúva deitando com outro macho. Dois moleques sujos guiaram Nepomuceno ao descanso – dormida barata, com água filtrada, uma tetéia na cozinha preparando o feijão, para que melhor? Numa rede, de papo pro ar, mirando a queimação que vinha do teto, com uma das mãos, Nepomuceno caçoava com um cachorro triste, insosso, já quase morto, por certo, sem forças nem para morder a própria pelagem; com a outra, coçava a barriga cabeluda, com a cabeça do dedo, formando círculos delicados. Nepomuceno era malvado, não tinha pena de ninguém, nem respeito, nem pudor, e pediu à dona da hospedaria para se esfregar na tetéia filha dela. Quanto custa? Qual delas? Tem mais de uma? Quero a moreninha que se aboleta no fogão, acertou Nepomuceno.

Numa hora dessas, pensou Nepomuceno, a viúva já devia estar em Massapê, ela e o menino. Achou que foi uma baita falta de consideração a dela de não ter notado que ele havia sido deixado, no meio do nada e de coisa nenhuma, com o pinto pro lado de fora – um vexame, dona viúva! Ela, entretanto, queria bem a ele e até se descabelou, quando viu que era inútil pedir ao motorista para voltar. Houve uma barulheira desconcertante no pau-de-arara, não lhe restando nada mais, além de olhar nas suas costas uma estrada que ficava cada segundo mais longa. O menino procurou pelo tio ventríloquo, mas a viúva insistiu para que o cabritinho se aquietasse que, logo, logo, Nepomuceno apareceria – ele era assim: quando tudo parecia estar no fim, vinha ele e decidia a parada na melhor das formas. Quanto crédito depositado em Nepomuceno! Ele lá cheirando o cangote da tetéia no balançado, e a viúva debulhando um rosário pelo bem de sua alma.

Cabra assim como Nepomuceno, porém, é de boa monta ter santo forte. Não é que o maldito se meteu a querer ganhar as moedas do povaréu com a investida maliciosa de falar com defunto! Com a roupa do corpo, fedorenta a suor e sexo, anunciou-se para todos: sou um ventríloquo! O que diabos é isto? Mantenho comunicação com quem já partiu. Muitos nativo-selvagens, claro, acreditaram na mentira de Nepomuceno, mas eis que entrou na fila um pistoleiro perigoso (não é redundância), que havia realizado, numa época, um serviço a mando do antigo prefeito, mas que não se sentia convicto da precisão do resultado – queria escutar a voz da vítima, uma esperança que fosse, pois existia o risco do alvo ter desaparecido antes de bater as botas. Nepomuceno pensou no que a viúva poderia estar fazendo naquele momento: será que ela desejava o pinto deixado para trás, que ficou do lado de fora? – estava sentindo sinceras saudades. O pistoleiro não teve que esperar muito, mas é verdade que ficou bastante cismado com a gagueira da voz de um homem intermediada por Nepomuceno, afinal de contas o antigo prefeito pedira para nunca mais ver uma namorada que o traía.


Mendes Júnior.
* Publicado na Cronópios, em 17/10/2007;
** Photo by André Adeodato.

18 maio, 2007

Nomes?


Para escrever a crônica O nome dela, já publicada neste blog, tive de realizar uma pesquisa cansativa, muito embora um tanto engraçada. Precisava achar um nome que fosse bastante esquisito, porém que não viajasse além da realidade. Como não poderia repetir um nome ipsis litteris, ou seja, tal e qual o de uma pessoa que de fato existisse, fui pegando um pedaço de um, uma coisinha de outro, e formei aquilo que queria - que soava melhor ao propósito (desculpem pela metáfora) do texto. Há quem pense que inventei, mas assim não teria a menor graça. Selecionei 10 nomes, no mínimo, estranhos:


- Antônio Americano do Brasil Mineiro

- Brígida de Samora Mora Belderagas Piruégas

- Dignatario da Ordem Imperial do Cruzeiro

- Liberdade Igualdade Fraternidade Nova York Rocha

- Manuelina Terebentina Capitulina de Jesus Amor Divino

- Napoleão Estado do Pernambuco

- Radigunda Cercená Vicensi

- Soraiadite das Duas a Primeira

- Veneza Americana do Recife

- Voltaire Rebelado de França


Serão verdadeiros? São nomes? Vai saber!

Mendes Júnior.

O embaixador Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, em Paris, 1964

ARTIGO*, 12/09/2006

Manuel Bandeira, já velhinho, com muita dificuldade, saiu de sua casa para boate Zum-Zum. O fato impressionou muitos dos que ali se faziam presentes. Era 10 de dezembro de 1964. Vinicius de Moraes acabara de chegar de Paris e há muito demonstrava sua insatisfação com a carreira diplomática, ainda mais tendo de representar um regime autoritário. Tempos difíceis, mas não o suficiente para estragar o momento histórico vivido na rua Barata Ribeiro, na cidade do Rio de Janeiro. Numa noite antológica, assistiu-se ao encontro de Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi, acompanhados pelo Conjunto de Oscar Castro Neves e a inédita aparição das meninas do Quarteto em Cy, sob a direção magistral de Aloysio de Oliveira. O sucesso foi tanto que o show permaneceu em cartaz por cinco meses, voltando em 1965 e 1966, e sendo devidamente registrado no LP Vinicius/Caymmi no Zum-Zum. Nada menos do que isto para tirar de casa o poeta Manuel Bandeira.


Estas aparições de Vinicius de Moraes, no entanto, não eram vistas com bons olhos pelo Itamaraty, principalmente na figura do embaixador Manoel Pio Corrêa – diplomata severo que ocupou o cargo de Ministro das Relações Exteriores, interinamente, por quase um ano, até ser designado para a embaixada brasileira em Buenos Aires, em 1967. O embaixador considerava a carreira diplomática incompatível com a de showman, e passou a exercer severa vigilância num homem difícil de ser dominado. Além dos shows, Vinicius começara a assinar crônicas sobre música popular no Diário Carioca e na revista Fatos & Fotos, o que provocou mais ainda a ira dos diplomatas “ranzinzas”. Mesmo após algumas outras tentativas do Itamaraty, não houve jeito de fazer com que Vinicius se acostumasse “a passar longas horas perdido nos labirintos do Estado”.


Em 13 de dezembro de 1968, dia em que foi decretado o ato institucional nº 5, Vinicius de Moraes subiu ao palco do Teatro Vilaré, em Lisboa, juntamente com o parceiro Baden Pawell, e declamou Pátria minha, ao som do Hino Nacional Brasileiro, entrecortado por doses de um bom uísque. Pouco tempo depois, já em março de 1969, a Comissão Câmara Canto (criada pelo AI-5) inclui Vinicius de Moraes entre os “bêbados, boêmios e homossexuais” a serem banidos do serviço público. Por fim, em maio do mesmo ano, Vinicius foi aposentado compulsoriamente da carreira diplomática, através do célebre bilhete (desaparecido) do Presidente Costa e Silva a Magalhães Pinto. Vinicius de Moraes tomou conhecimento de sua exoneração por meio de uma carta-telegrama, que leu boiando em sua banheira. Nenhuma lágrima foi derramada.


Por muito tempo, os arquivos a respeito dos processos de aposentadorias compulsórias de diplomatas pelo AI-5 permaneceram guardados no Itamaraty, inclusive os de Vinicius de Moraes. De acordo com os papéis, o Poetinha-Camarada não era tratado por suas ideologias ou aspirações políticas, mas pelo seu comportamento desbunde, muitas vezes imprevisível. O tempo, aos poucos, encarregou-se de corrigir certas grosserias. Em 14 de agosto de 1998, a Juíza Maria Teresa Carcomo Lobo, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, concedeu anistia post-mortem ao compositor Vinicius de Moraes. E, no dia 08 de setembro de 2006, finalmente, Vinicius de Moraes foi celebrado como o mais novo embaixador brasileiro, numa homenagem do próprio Itamaraty. Na noite em que foi decretado o AI-5, à saída do Teatro Vilaré, alguns lisboetas salazaristas indignados com as palavras ferozes de Vinicius contra a ditadura, tentaram fechar a porta dos fundos, por meio de uma manifestação barulhenta. Alguém lhe pediu para não cometer a loucura de enfrentar os jovens baderneiros, mas Vinicius não se faz de rogado; encarou-os e clamou os versos de seu Poética (1), de 1950: “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo./ A oeste a morte/ Contra quem vivo/ Do sul cativo/ O este é meu norte./ Outros que contem/ Passo por passo:/ Eu morro ontem/ Nasço amanhã/ Ando onde há espaço:/ – Meu tempo é quando”. Nesse momento, alguns rapazes lançaram ao chão, diante do diplomata Vinicius de Moraes, seus casacos, sobretudos e paletós, formando, assim, o tapete por onde passaria, de cabeça erguida, o poeta Vinicius de Moraes.

Mendes Júnior
* Artigo publicado no site do Jornal O Noroeste, em 13/10/2006;
** Artigo publicado na Revista Cronópios (www.cronopios.com.br), em 12/06/2007.

10 maio, 2007

Indicações Musicoliterárias





Na minha opinião (que não é lá essas coisas), no mercado editorial tupiniquim, a editora Companhia das Letras é quem melhor trata o livro na escolha do autor publicado, enquanto que a Cosac Naify é quem elabora o objeto-livro com o maior cuidado, privilegiando a beleza e a qualidade da encadernação. Fazendo uma analogia (talvez grosseira – perdão), a gravadora Biscoito Fino é uma junção das duas editores, porém para a palavra cantada. Dá gosto colocar as mãos nos folhetos dos álbuns e os ouvidos a serviço do som oferecido pela gravadora de Francis Hime. Pois bem, indico três excelentes discos da Biscoito Fino: “Casa Forte – Mauro Senise toca Edu Lobo”; “Noites de gala, samba de rua”, da adorável Mônica Salmaso; e “Yamandu + Dominguinhos”.

O disco do saxofonista e flautista Mauro Senise recebeu o conceito de obra-prima pela Revista Jazz+, e aconselho não duvidar, começando pelo encarte. Os arranjos do disco são de Gilson Peranzzetta e, claro, também tem a participação do homenageado Edu Lobo. Atenção redobrada para “Arpoador”, “Valsa Carioca” – as duas inéditas –, “Choro Bandido” e uma primorosa versão para “Beatriz”, que, segundo o (in)suportável Marcelo Mirisola, vez em quando é criminalmente atingida pelos trejeitos vocais de Ed Motta.

A voz da Mônica Salamaso é um elixir para esses tempos difíceis de poluição sonora. “Noites de gala, samba de rua” não entendo como o título ideal para seu último trabalho, mas quem sou eu?, senão um leigo-mais-do-que-perfeito. O disco envereda por composições de Chico Buarque, com participação especial do grupo Pau Brasil. Aqui, também vamos encontrar “Beatriz”, mas com outra temática – uma pintura formosa tal e qual –, bem como “Suburbano Coração”, “O Velho Francisco”, “Partido Alto”, entre outras pérolas. Para os que apreciam fotografias, o folheto tem algumas bem deliciosas, principalmente uma que está ao lado da letra de “Partido Alto”.

Por fim, quanto ao doce encontro de Yamandu Costa com a sanfona de Dominguinhos, pode-se dizer que é mágico. Cada um na sua área, os dois são imbatíveis. Foram muitos generosos conosco ao gravarem “João e Maria” (saudades, Mestre Sivuca!), “Estrada do Sol” (saudades, Maestro Tom!) e “Asa Branca” (saudades, Compadre Luiz Gonzaga!). Não é só, tem também composição de Yamandu + Dominguinhos, composição de Yamandu e composição do Dominguinhos. Excelente na perspectiva da saudade.

Esteja dito.
Mendes Júnior.

O leitor Borges

Jorge Luis Borges

ARTIGO PUBLICADO NO SITE DO JORNAL O NOROESTE, 30/06/2006.

“Las calles de Buenos Aires / ya son mi entraña / no las ávidas calles / incómodas de turba y ajetreo / sino las calles desganadas del barrio / casi invisibles de habituales (...)”. Versos como estes retratam parte da obra do argentino Jorge Luis Borges – poeta, ensaísta e contista – que completou duas décadas de morte no dia 14 de junho deste ano. Boa parte de seu trabalho teve a linda Buenos Aires como pano de fundo, mas não a cidade que o turista anseia conhecer, e sim aquela fincada no subúrbio. Inclusive, as linhas supracitadas fazem parte de seu primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires (1923), no qual canta o fascínio pela periferia de sua cidade natal. O autor de El Aleph (1949) primeiro teve contato com a língua inglesa para depois ir para o espanhol. Com onze anos de idade traduziu o conto O príncipe feliz, do inglês Oscar Wilde, para o jornal El País. A razão para tanto, o próprio Borges explicou em inúmeras entrevistas que concedeu, oportunidade na qual afirmava que antes de conhecer a rua de sua infância, bem como sua cidade, conhecera a biblioteca do pai de “infinitos livros em inglês”. Desde cedo, o escritor argentino teve contato com os grandes nomes da literatura universal, por meio da vasta coleção paterna e, portanto, ia além: “na realidade, acredito nunca ter saído daquela biblioteca”. É importante ressaltar que o irrealismo borgiano tem seu fermento baseado nas inúmeras leituras e nos desafios emocionais. Por vezes, encontram-se em seus livros determinados autores, tais como Kafka, Schopenhauer (este considerado um dos maiores), Berkeley, Edgar Allan Poe e obras, como, por exemplo, Dom Quixote e Mil e uma noites. Seus críticos o consideram, por esta razão, um leitor por excelência. Mas o outro mote forte de sua escrita dá-se através da relação com a mãe e os fracassos sentimentais. Sua mãe, Leonor Acevedo de Borges, faleceu onze anos antes do escritor, em 1975. Recentemente, em um canal de tv pago, dentro das comemorações de seu aniversário de falecimento, pude constatar um pouco de tudo isto, numa entrevista com Jorge Luis Borges. Aliás, era a primeira vez que via o autor de Ficciones (1944) falando. E mesmo com uma voz cansada enalteceu a Argentina e seu caráter intelectual, abordou a literatura e seus autores de predileção e expôs um pouco suas feridas. O que mais me impressionou foi quando disse que tivera um sonho na noite anterior, em que morria, mas havia acordado muito feliz. O repórter, encabulado, fez de conta não ter entendido. Mas, (in)felizmente, para Borges, a morte era uma certeza que o deixava feliz. Talvez, quisesse estar no La Recoleta, descansando em paz. “Estas cosas pensé en la Recoleta / en el lugar de mi ceniza”. Jorge Luis Borges faleceu no dia 14 de junho de 1986, em Genebra. Trinta anos antes, Borges começava a ter os primeiros sinais de cegueira, justamente quando assumiu a direção da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Estes dois fatos simultâneos, valeram-lhe uma homenagem do italiano Umberto Eco, em seu romance O nome da Rosa, através da personagem Jorge de Burgos, um monge cego guardião de uma enorme biblioteca. Para Borges, a leitura tinha um papel fundamental em sua obra, por isso, nunca abandonou o livro. Não se considerava melhor escritor do que leitor. Mis libros (que no saben que yo existo) / son tan parte de mí como este rostro (...)”.
Mendes Júnior.

Meu amor é vermelho








CRÔNICA, 21/04/2006.




Mais uma destas tragédias cotidianas. Em plena luz do dia, e lá está aquele corpo roto dividindo o solo pátrio e um pedaço de lençol vermelho (também roto). É engraçado: o vermelho sempre me representou a chama ardente do amor. Chego, inconscientemente, a ter rompantes de emoção, muitas vezes infundados, como neste exato instante. É como se estivesse caminhando desapercebido pela vida e, de repente, o encarnado me transportasse à lembrança daquela paixão avassaladora vivida num dia de graça divina. Diante de uma cena tão lamentável, chego a pensar nas sandices da Lívia – uma louca, com o perdão da palavra. Passei dias intensos naqueles braços flácidos, mas não durou mais do que um punhado de sal.

Nossa mais nobre milícia tentava inutilmente afastar os curiosos que se acotovelavam em frente à banca de jornal. Um chega pra cá; um chega pra lá, e tudo que se conseguiu foi uma embrionária roda. Visto o fato dessa maneira, procurava-se em vão indagar o que acontecera ao pobre desconhecido. Eu mesmo cheguei a buscar informações, mas não havia naquele fim de mundo alguém capaz de elucidar o episódio. “Certamente, uma bala perdida” – e ficava nisto. Comecei a costurar na minha cabeça um crime passional; aliás, comecei a imaginar Rosa, ali, deitada com suas madeixas bem tratadas submersas nesta poça de lama e coberta por este quarto de pano vermelho cedido por um qualquer. A Rosa era pra lá de vaidosa e isto me causava um ciúme doentio. Hei de discordar do poeta, quando diz que o tal do ciúme é o perfume do amor, pois, em outras épocas, agiria diferente: seria o autor intelectual, o mandante e o executor cruel. Já este amor me durou alguns centavos na manicura e a dor de ser traído por um sujeito nascido e batizado “Ricardo Leão Treze de Engenho Novo”.

Obedecendo ao patrão nosso de cada dia, um ambulante veio me oferecer medalhinhas santificadas. Escolhi a de Santo Expedito. Custou-me a passagem de volta para casa. Carmem era devota de Santo Expedito. Os pés de Carmem eram parecidos com o do falecido (que Deus o tenha), porém um pouco mais achatados do que o comum e redondos. Observei a platéia e vi uma senhora gorda chorando. “Será parente? Sua esposa?”. Nessas horas não encontramos palavras de conforto necessárias à ocasião, ainda mais um qualquer feito eu, por isso, resolvi permanecer em silêncio, quietinho no meu canto; aliás, mais ou menos, pois a todo momento levava um empurrão. Por uma fresta, observei os cabelos grisalhos do homem caído e pensei: vive-se aquilo que nos foi concedido – nem mais nem menos –, mesmo que o fim se dê no centro da cidade em um dia nublado. Acho que neste ano vai ter inverno. “Que horas, colega? Vixe, como é tarde”.

Neste momento, um baixinho com a farda da Guarda Municipal pediu passagem para o rabecão. Notei um certo ar de desapontamento nos populares. Acho que talvez quisessem uma maior dramaticidade; no mínimo saber de quem se tratava ou o porquê do óbito; uma televisão que fosse. Mas nada demais. Na posição em que se encontrava, o cadáver foi suspenso pelos peritos e transportado para o fundo daquele baú fúnebre. Ainda tive tempo de ver cair o fiapo de lençol que o cobria a face e uma pequena gota de sangue a lhe escorrer o peito. Lembrei-me de Coralina, uma moça bem criada, a quem amei efusivamente. Nunca me importei por ela ter dentes horrorosos e uma gengiva mais frágil do que cristal. Às vezes, ria um riso vermelho. Coralina durou um pouco mais: um tratamento de tártaro. A partir daí, o dentista era a bola da vez.


Mendes Júnior.
* Crônica publicada na coletânea Encontros, da Editora Guemanisse;
** Photo by Mendes Júnior.