30 maio, 2007

Allegro, ma non troppo



20/05/2006

Era um lugar fétido e de uma aparência horrível. Não se podia descobrir, à primeira vista, qual a cor da parede: além dos escassos raios solares que adentravam pelas laterais da porta e por uma basculante, havia lodo por toda parte. Quanto ao cheiro, uma mistura de podre e mofo inebriava o ambiente. A vontade era de vomitar até cair o último cuspe. Percebia-se no piso uma estranha frieza (insuportável) e alguns resquícios de sangue; sangue este que media a linha mais escabrosa da tragédia.

Uma grande mesa, formada por azulejos quebradiços, dividia aquilo que aparentava ser uma das salas do Departamento de Estudos Biológicos. Por cima, uma gama de objetos intocáveis, desde bisturis enlameados até fezes animais. As prateleiras (duas espremidas num dos cantos) eram abrigadas por escritores russos, um tcheco e alguns americanos – estes de fazer dó – e, claro, os compêndios de uma medicina não tão contemporânea. Uma vitrola velha acostava-se numa cadeira. Em outras épocas, a música poderia conceber ao lúgubre recinto a paz derradeira, porém nem toda a obra de Mozart e Schumann seria suficiente para fazer suportar aquela desdita.

Espécie de balcão, produzido pela mesma estrutura da mesa, fixava-se à parede do fundo. Por cima, gaiolas vazias. O zelador pensou tratar-se de um pesadelo. Sentira como um enorme soco no estômago, ao ver tanto bicho morto espalhado. Não que conseguisse compreender o motivo de tanto rato junto, porém sabia – por ouvir dizer – que aqueles roedores iriam conferir ao doutor Praxedes o Título de Mérito do Dragão Azul (e sabe-se lá o que isto significava). Demorou a encontrar o telefone, já que pouquíssimas vezes teve seu acesso permitido à sala; quando muito, o doutor Praxedes liberava a entrada aos seus ajudantes de ordem, e só. Ao passar e notar a porta entreaberta, o zelador foi invadido por uma curiosidade demente. “Doutor, toca pra cá o mais rápido possível porque o causo é sério!”

Anos e anos de uma labuta incessante em benefício da humanidade e o que se ganha em troca?, senão o sabor amargo da derrota. Bastava a simples suspeição de que o ocorrido poderia ser intencional para tornar o crime ainda mais repugnante. O respeitabilíssimo doutor Praxedes, Chefe da Pesquisa, quase precisou recorrer à sua ciência quando contabilizou os bichos mortos: todos. “Onde andam aqueles imprestáveis que não viram isso acontecer?” O trabalho de sua vida no chão, estraçalhado, como se quem o fizera tivesse ódio correndo na veia. “Responsabilizarei aquelas criaturas, aquele casalzinho de merda que só queria saber de ficar se esfregando!” O pior é que doutor Praxedes tinha a razão a seu favor.

O zelador permanecia na sala, em silêncio. Não era letrado o suficiente para arrancar de dentro as palavras de conforto, tampouco tinha noção do porquê das grosserias desferidas pelo honrado doutor Praxedes. Para quem? Em pensar que o resultado da sua pesquisa correria mundo, seria citado em palestras, incluído em bíblias de medicina, de uma só tacada, doutor Praxedes derrubou a vitrola e sentou; queria chorar, mas a presença do zelador era um impedimento e, portanto, freou a lágrima. O zelador esboçou uma reação para tentar acalmá-lo e, prontamente, ofereceu-lhe um pouco de conhaque. Ao preparo da taça, o zelador percebeu no pedaço mais escuro da sala o que poderia ser o pulso maroto de qualquer vida. Pôde conferir que sorriam felizes e ficou enfurecido e contraiu o rosto e queria justiça. Doutor Praxedes o viu sair correndo da sala sem nada dizer e imóvel ficou até sua volta. “O que está havendo?” – perguntou doutor Praxedes, porém, ao levantar, apenas teve tempo de escutar o assobio do jato de raticida. “Doutor, foram eles! Tenho certeza! Os dois!”. Doutor Praxedes sentou novamente, só que desta vez chorou copiosamente.


Mendes Júnior.
* Crônica publicada no site do Jornal O Noroeste, em 27/05/2006;
** Quadro A Serpente e a Seriema, de Francisco da Silva.

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