09 março, 2008

Uma manhã musical


À menina da manhã inteira

Hoje amanheci com um grande carinho no pescoço – sou fascinado por qualquer coisa que façam no meu pescoço – ou melhor, no cangote –, ainda mais quando se recebe recheado de sinceridade – do amor da gente. Minha pele fica deveras ouriçada. Talvez seja normal em todos os que se enamoram, mas em mim há um componente extra: sinto vontade de declarar amor eterno à mulher, ao mundo, à vida... Peço a gentileza de um minuto tão-somente para eu pôr na vitrola velha a doce e incansável voz de Johnny Hartman, que também é forte e marcante, e que deduz em compassos o início de uma manhã maravilhosa. Que posso mais querer? É tudo que tenho e de que preciso para respirar febrilmente: a flor amada ao lado com os olhos entreabertos, roçando de déu em déu em meu corpo sua boca molhada, fazendo juras de uma felicidade até os últimos dias de nossas vidas, ou, quem sabe, como cantou o poeta maior-apaixonado: enquanto dure, e as finas mãos circulando pelo tapete da alma. O cheiro é de um doce ainda morno, que sequer saiu da panela, mas que não precisamos esperar para tal a fim de provar a delícia de se fazer e saber mulher, basta tecer o dedo em rodopios e experimentar o âmago do prazer pleno que agora está espalhado pela boca, pelo coração e pela cama inteira. Os lençóis se formam em figuras de anjos musicais que nos querem pertos, acesos e romanticamente harmoniosos, cobrindo-nos de florais e sons de damascos com seus interlúdios de madre-pérola. Tudo está exposto contra uma janela escancarada onde ninguém nos observa, ao contrário, fazem questão de ainda dormir para não atrapalhar o ornamento da dança, enquanto chora o céu em parcas gotas de água límpida e renovável, molhando delicadamente o chão que há muito precisava estar fresco para esperar a corrente da nova estação. Nada que banhe a mão posta no corpo suave que se inebria com o saxofone de Coltrane e a voz de Hartman. Nunca houve no velho prédio manhã tão nobre – mas não creio que saibam disto, ninguém. Os jornais estão ao pé da porta, mas nada interessa: as notícias do indigente sepultado, os conflitos no cone-sul, as eleições do outro planeta, o futebol medíocre do domingo, enfim, nada tem tanta relevância que não os dois ali deitados, se acariciando respeitosamente, prometendo um amanhã de sonho, tudo perfeito, – mesmo sabendo não ser assim na vossa aldeia –, ressaltando que a lua está cada dia mais bonita e a bossa nova cada vez mais nova, e há tantos livros a serem lidos, tantos discos à margem dos ouvidos, tanto a fazer para melhorar a vida, no entanto há o amor... Incondicional... Há o sentimento que é declarado minuto a minuto. Mais um beijo no cangote e um derretimento de sorrisos cúmplices e mais uma vez eu te amo aos arcanjos do teto alvo, feito as camisolas jogadas ao chão, que já não têm mais o porquê de outrora, enquanto lá fora o mundo chora de felicidade.
Mendes Júnior
* "Interzaar (End of Wait)", by Rashmi Gawali.

Um comentário:

Unknown disse...

Amo...
Amor. incondicional!