28 abril, 2008

A relação da filosofia com a linguagem


Partindo do trabalho e pensamento do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, autor do célebre “Curso de Lingüística Geral” (Cours de Linguistique Générale), em 1916, vamos nos deparar com a definição de língua como sendo um sistema de signos, em meio às suas transformações e a seus sentidos, denominado de semiologia. Diz-nos Saussure que o signo lingüístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica, ou seja, é uma entidade psíquica de duas faces, respectivamente, o significado e o significante. Dentro deste contexto, o signo é regido por dois princípios: a arbitrariedade, já que o significante e o significado se associam de forma arbitrária, objeto de crítica, a qual nos deteremos parcialmente mais adiante; e o princípio do caráter linear do significante, em que os significantes acústicos estarão submissos ao tempo, já que seus elementos se apresentarão em forma de cadeia. Importa ressaltar que o significante estará sempre ligado ao significado, enquanto este possibilitará diversos significantes.
De acordo com a leitura de Michel Foucault, no entanto, Marx, Nietzsche e Freud teriam criado uma nova hermenêutica, ou seja, ao tratarem do signo sob a ótica de um novo conceito, mas isto no século XIX. Assim, aos signos, antes homogêneos, ou como queria Saussure: numa exposição em cadeia, foi criada uma outra possibilidade de interpretação, tornando-a infinita. É justamente neste ponto que encontramos a grande contribuição de Nietzsche, por exemplo, para a discussão acerca da linguagem. Nietzsche, a partir de então, passa a ser considerado por Foucault, além de filósofo, como um filólogo, e isto fica bem claro no prefácio que faz para o livro “O Nascimento da Clínica” (Naissance de la clinique), de 1967. Para Nietzsche, a linguagem não teria uma significação absoluta e, portanto, tudo aquilo que envolvesse o significado único de uma palavra – o que é? – perderia o sentido, abrindo-se espaço precioso para a interpretação, que seria, como já dito acima, infinita. Uma importante questão que deve ser observada é a de que Nietzsche põe em segundo plano o significado, pois aquilo que deve ser discutido é a diversificada linguagem do significante. À filosofia, de acordo com a idéia do filólogo Nietzsche, para o qual se trata a linguagem de uma ordem cultural, ficaria o encargo (a tarefa) de se ater aos muitos significantes.
A filosofia vai fazer uma reflexão radical sobre as condições históricas, diante de uma rede de linguagem, levando-se em consideração os seguintes pontos: legalidade, religião, moral, social, política, economia etc. Mas por quê? Por que as linguagens têm marcas diferenciadas, suscitando heterogeneidade, desvios, fluxos e acidentes. Tudo isto, entretanto, num processo de dominação, ou naquilo que Nietzsche chamou de teoria de forças: um verdadeiro estado de guerra, permeado por combates, imposto pela linguagem, no qual será estabelecido um sistema de regras, sistema este que terá valores morais, conceitos metafísicos e procedimentos lógicos, no dizer de Foucault, mas sem um significado originário. Bem, aqui, falemos da crítica recebida por Saussure quanto à arbritariedade da associação entre significado e significante. À época, outros nomes diziam que seria necessário, de certa forma, que o significado tivesse alguma (qualquer) relação com o referente, pois era inconcebível que aquele não apresentasse traços compatíveis com este. A meu ver, quando Foucault diz que os sistemas de regras “estão à mercê de forças, que deles se apossam”, influenciado por Nietzsche, vejo com receio este apoderamento, justo por não ser suficientemente capaz de compreender a inexistência de um significado originário para determinada coisa, e, ainda, por aquele fazer a leitura da interpretação como algo violento. Quanto à tarefa genealógica, entendo correta a idéia exposta: quando diz que a cada nova interpretação surge uma significação secundária, contudo, não elimina minha dúvida que adormece na interpretação primeira, pois, na minha opinião, esta significação secundária levará em conta o sentido originário, e qual força utilizada para este e por quê. Por exemplo, por que urso é urso e braço é braço? De que forma as duas coisas foram interpretadas? Quem os conferiu primeiramente o significado ao urso e ao braço? Conceber o processo de dominação para os significantes, criando uma nova orientação para o sistema de regras, é compreensível, mas não o vejo de que forma é aceitável quando se pensa para o significado.

Referências Bibliográficas:
ARRIVÉ, Michel. Linguagem e Psicanálise – Lingüística e Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2006.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.


Mendes Júnior
* Painting by Debordeaux, "Instant Couleur Orange".

17 abril, 2008

Acenderam uma fogueira em Itaitinga


Sem data.


Umberto Eco teve sua estréia na ficção com O nome da rosa, em 1981. Este famoso livro, que já foi inclusive às telas da sétima arte, é relevante para a literatura universal; sem dúvida, justificativas para esta afirmação não faltam. O escritor italiano, em boas páginas, tratou da questão da destruição de livros, neste caso, por razões religiosas. O nome da rosa era uma expressão usada na Idade Média – já que o ano é 1327 – para combater o infinito poder das palavras. E outro detalhe é que um dos personagens, Jorge de Burgos, um monge que serve de guardião da biblioteca de que trata nesse clássico, foi inspirado no escritor argentino Jorge Luis Borges – um apaixonado por livros. Para Borges, a leitura tinha um papel fundamental em sua obra, por isso, nunca abandonou o livro. Não se considerava melhor escritor do que leitor: “Mis libros (que no saben que yo existo) / son tan parte de mí como este rostro (...)”.
A vida de um livro – digamos desta forma –, no entanto, se confunde com aqueles que querem ceifá-la e os que a querem ad infinitum. O fato é que não é de hoje que interesses outros levam o livro à guilhotina, ou melhor, à fogueira. Por razões religiosas, políticas, morais, econômicas e guerras aos montes, a história nos conta que cerca de 75% da literatura, filosofia e ciência antiga escritas tenham se perdido. Como triste ilustração, poderíamos citar que, durante a Revolução Francesa, somente em Paris, foram queimados mais de oito mil livros[1]. Nossas lágrimas, se o tempo nos permitisse fazer uma viagem fantástica ao passado, imbuídos de uma mentalidade “borgiana”, por certo, seriam capazes de apagar toda essa chama atroz, que conseguiu diminuir a humanidade. Mas bem que nosso choro não precisa ir tão longe: basta que o levemos a Itaitinga – cidade situada na Região Metropolitana de Fortaleza, no Estado do Ceará.
Infelizmente, a despeito da nossa peculiar escassez de livros e de leitores, ainda existem pessoas que cometem o bárbaro “crime” de vender livros para uma sucata; aliás, quase duas toneladas de livros didáticos. Sim, sucata! Alguém, no entanto, há de se questionar por que os livros da criançada de Itaitinga foram vendidos ao sucateiro da primeira esquina. Será o tal sucateiro um colecionador de livros? Um mecenas? Um leitor voraz? Bem, estas perguntas só serão devidamente respondidas após a apuração pelos órgãos competentes. Depois de quatro meses, nenhuma vivalma foi punida. Paira um silêncio sepulcral. Em sua assertiva, o escritor Monteiro Lobato (é difícil não citá-lo) foi quem melhor definiu um País “não-bandalha”, ao anunciar que um País (de verdade) se faz de homens e de livros. Então, assim sendo, e matematicamente falando, se para cada quilo de livro o sucateiro pagou R$ 0,10, totalizando R$ 195,00, por certo, nosso País é bandalha e deve valer uma ninharia.
Sob o argumento de livros inservíveis, um(a) funcionário(a) da Prefeitura de Itaitinga vendeu ao “Neguinho da Reciclagem” – como é conhecido carinhosamente o sucateiro-comprador-de-livros –, uma montanha de livros – diz a denúncia[2]. Consultando o infalível Dicionário Aurélio, sabemos que a palavra “inservível” significa aquilo que não serve, aquilo que não tem utilidade, aquilo que não presta serviço. Pois bem, segundo a Secretária de Educação do Município, o termo é (foi) utilizado para identificar os livros com mais de três anos de existência. Sério? Sério! Portanto, senhoras e senhores, levantar-me-ei já e acenderei uma fogueira enorme que comporte minhas duas estantes com livros antigos, raros, de edições especiais e primeiras, carcomidos pelas traças, embriagados pelo tempo, ou, quem sabe, conseguirei o telefone de algum ferro-velho para levar daqui esses trambolhos inservíveis que ocupam parte da casa. Qual nada! Livro não tem prazo de validade e não merece nada disso. Não precisamos copiar um absurdo dessa monta, do contrário nossa história se dissiparia. “Onde queimam livros, acabam queimando homens”, disse o poeta alemão Heinrich Heine, ou reproduzindo o próprio Umberto Eco: "A história das civilizações é uma sucessão de abismos em que toneladas de conhecimento desaparecem". Veio-me ainda agora, à lembrança, a linda e conhecida foto-cena de três elegantes senhores, sobre os escombros da biblioteca Holland House, em Londres, no ano de 1940, após um bombardeio alemão, olhando cuidadosamente as lombadas dos livros sobreviventes nas gigantes prateleiras. Parecem homens solitários, mas não: estão com os livros.


[1] BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros – Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006;
[2] Jornal O POVO, 27 de fevereiro de 2007.

Mendes Júnior
* Publicado na Cronópios, em 16/04/2008;
** Photo by Daniel Curval, "Farenheit 451".

13 abril, 2008

Cadernos de viagem - Amsterdã liberal I


13/04/2008.


Lá se iam muitas horas dentro do carro. Apertados, pois éramos cinco, e quem nos garantiu ser aquele um automóvel para cinco criaturas, as considerou anãs, com certeza. Mas quando se está correndo a Europa, viajando por estradas secundárias, visitando cidadezinhas aconchegantes, de casas elegantes, vida pacata e silenciosa, quase a nos fazer crer que problemas ali são inexistentes, nem o calor do rígido verão europeu nos roubaria toda a mágica. Pois bem, como “insinuava” anteriormente, muito se passara. Não dava para considerar o tempo pelo céu, ou seja, além janelas, pois escurecer mesmo no verão somente quando noite alta, já se aproximando da madrugada, e aquilo era uma doidice que ainda não estávamos acostumados. De repente, atracamos em Amsterdã, na bela Amsterdã às escuras. Pensávamos em coisa de dez da noite, um pouco mais, um pouco menos, mas qual nada, já badalava a segunda hora do novo dia no eminente relógio da única torre de Oude Kerk, uma igreja de estrutura gótica construída no século 13, que ficava próxima a um dos muitos canais da cidade. E nos hospedaríamos bem perto dali, num albergue até gentil e confortável, não fosse administrado por freiras, o que significava que muitas restrições nos aguardavam. Não estávamos errados. Engraçado, e por que não dizer contraditório, se recolher num ambiente dessa natureza em plena cidade de Amsterdã, de tantas idas e vindas na “evolução da sociedade”, a seu modo, é claro, concordando ou não. Mas o fato é que não sabíamos quase nada sobre o bairro, que durante os quatro dias seguintes nos acolheria. No entanto nossos olhos, em progressão geométrica, nos davam certa medida da vizinhança. E nem poderia ser de outra maneira, do contrário, não estaríamos no Red Light District – o desinibido bairro da Luz Vermelha, onde as coisas aconteciam, onde tudo era permitido, possível e desnudo, sem frescuras nem constrangimentos nem reprimendas, onde o amor, mesmo fácil e barato, era válido, onde todos, homens e mulheres, se sentiam a la vonté. Aquela era parte da Amsterdã que queríamos desfrutar, mas não para usufruir das benesses da sua bem estabelecida liberdade sexual, que, por certo, nos chamava a atenção e nos causava cada vez mais curiosidade, acertadamente, e sim para entender como se comporta a diversidade cultural, seja do âmbito que consideremos. Não é simples quando se vive soterrado em dogmas e normas criadas por gente que existiu sabe-se lá quando e executadas por pessoas de quem não conhecemos mais os nomes. Acontece que em Amsterdã se respira um ar leve (sobremaneira), limpo, cristalino, brilhante, sem a “mancha escura do pântano”, sem que seja necessária a aquiescência dos seus pares, sem um ritmo pré-estabelecido – a música pode ser dançada em outro tom. É como se saíssemos de um aprisionamento secular, de uma cegueira perdulária e de uma empelota extremamente vedada – eis que desejo profundamente serem aceitas as minhas metáforas. De modo que é sensato acharmo-nos uma patota de náufragos, a ponto de sermos engolidos pela besta-fera de cabeça oca, bitolada, sem rumo, sem idéia de espaço, mas não no sentido físico – moral é o que quero dizer, pois esta prosa é moral (sem pretender ser moralista). Espere que qualquer dia levarei você ao bairro da Lua Vermelha (...).
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior (Canal 1 - Amsterdã).

03 abril, 2008

Indicações Musicoliterárias

Oscar Peterson

"Night Train: The Oscar Peterson Trio" é um disco docemente implacável. Gravado em fins de 1962, pelo selo Verve, teve a rica produção de Norman Granz, uma das figuras mais importantes dos bastidores do jazz, ou seja, um nome que faz parte da história do jazz mesmo sem ser músico. Para se ter uma idéia, eram seus contratados Ella Fitzgerald, Dizzy Gillespie, Benny Carter e Clark Terry. No entanto, antes de tecer qualquer comentário a respeito do ora invocado disco, que não poderia ser mais pertinente, principalmente pela perda recente de Oscar Peterson, é importante esclarecer a relação entre os dois. No ano de 1949, já fazendo relativo sucesso na sua Montreal, paragens em que nasceu nos anos 25, Oscar Peterson se recusava a abandoná-la. À época trabalhava numa rádio local, quando foi persuadido por ninguém menos do que Norman Granz a integrar a "Jazz at the Philharmonic", que já corria os Estados Unidos acompanhado de celebridades como Roy Eldridge, Zoot Sims e Ray Brown. Foi também Norman o responsável por sua estréia nos EUA, em setembro de 1949, no Carnegie Hall. O sucesso maior não demorou. Passou, então, a tocar em trios. O mais famoso era composto por Ray Brown e Ed Thigpen, justo os homens que estão ao lado de Peterson no "Night Train". É bem verdade que alguns críticos o censuravam por suas misturas e por absorver sons de moda, contudo seu virtuosismo era incomparável, considerando ainda que virtuose é quem faz o difícil parecer fácil, eis outra boa argumentação; tocar arpeggios simultâneos com as duas mãos parece um argumento irrefutável porém; ganhar oito prêmios Grammy, em que um deles foi concedido pelo conjunto da obra, entre centenas de outros prêmios nem é de bom tom mencionar, mas...; gravar cerca de 200 discos e tocar com grandes nomes como Louis Armstrong, Count Basie, Charlie Parker, Roy Eldridge, Duke Ellington, Nat King Cole, Stan Getz, Dizzy Gillespie e Ella Fitzgerald é considerável. Para finalizar, uma curiosidade: seu pai, que também era músico, anunciou abandonar a carreira desde que seu filho prometesse ser o melhor. O pai acabou procurando outra ocupação.


1 Happy-Go-Lucky Local (aka Night Train)
2 C-Jam Blues
3 Georgia On My Mind
4 Bags' Groove
5 Moten Swing
6 Easy Does It
7 Honeydripper, The
8 Things Ain't What They Used To Be
9 I Got It Bad (And That Ain't Good)
10 Band Call
11 Hymn To Freedom
12 Night Train - (previously unreleased)
13 Volare - (previously unreleased)
14 My Heart Belongs To Daddy - (previously unreleased)
15 Moten Swing - (previously unreleased, rehearsal take)
16 Now's The Time - (previously unreleased)
17 This Could Be The Start Of Something - (previously unreleased)


Esteja dito.

Mendes Júnior