29 maio, 2008

Indicações Musicoliterárias


"The meeting of Armstrong and Peterson marked one of the most catalytic moments since the day when Peterson met Norman Granz" (Leonard Feather).


A voz de Louis Armstrong é uma dessas coisas que marcam uma vida, uma paixão ou até mesmo uma ocasião mais simples. Seu jazz vocal é difícil de explicar apenas com as palavras, mas digamos que pudesse ser traduzido com uma canção: "Blues in the Night (My Mama Done Tol' Me)", ou muitas outras, tais como "Let's Fall in Love", "Sweet Lorraine" e "Moon Song". Digo que é impossível não ser tocado pelo disco "Louis Armstrong meets Oscar Peterson", principalmente se você estiver acompanhado de uma Madona amada, enquanto o coração se banha de um vinho decente e o corpo se enche de folha cubana. De julho a outubro de ano de 1957, na cidade fervilhante de Hollywood, no Capitol Studios, Norman Granz teve a brilhante idéia de juntar Armstrong e o The Oscar Peterson Trio para gravar esse disco. Antes da degustação é preciso entender que a paz de espírito (pode parecer piegas, mas...) é "conditio sine qua non" para compreender toda a beleza da obra, inclusive as três músicas de Cole Porter, que são "Just One of Those Things", "I get a Kick Out of You" e "Let's Do It". O selo é Verve Records. Ah! Sabe o grande amor da sua vida? Pois é nele que irá pensar.
Esteja dito.
Mendes Júnior

27 maio, 2008

"Night in St. Cloud"


27/05/2008.


Neste exato instante, sinto-me como se fizesse parte da paisagem de “Night in St. Cloud” – quadro a óleo pintado com incomparável sensibilidade por Edvard Munch, em 1890. Sou aquela criatura, relativamente densa, de chapéu longo à beira da janela, imerso em devaneios, em meio à quase escuridão e à melancolia. Apenas uma luminosidade da lua entrando em espiral nevoado pela janela em forma de cruzes, fazendo-me acreditar estar em Londres, a me sugerir também uma prisão; a claridade deixando o quarto na penumbra e com uma aparência de grandeza que sequer existia quando dia. Estou em Paris, não em Londres, e sou o poeta Emanuel Goldstein, amigo do criador, mas não quero a Morte, não anseio desaparecer nos próximos dias, não tenho o desejo ardente da consciência de finitude, nem quero ter nunca, ao contrário, aliás penso na mulher bela, de forma silenciosa e implacável à alma, aquela dama que me toma diariamente de assalto os sonhos nobres e os pecaminosos, por que não? É por ela tão-somente que se cobrem minhas lembranças de então, na página noturna de St. Cloud. E é na vida que me absorvo – como é capaz de peripécias, de retornos estranhos, sempre tão lúcida e perspicaz nos fazendo crer que algo de muito bom ainda existe nesse chão desesperado! – e vejo exatamente seu sorriso, que era tão doce e menino, mas que agora é forte e sensato. Sou Emanuel Goldstein olhando para uma cidade desfocada que não tem conhecimento de que é permissivo viver o passado tal qual o presente, e assim clama em prelúdios uma boca em chamas – eis as lágrimas a salgar os lábios de uma boca já em chamas – grito o nome dela, da linda mulher, pena que poucos ouvem a melodia, a cidade descansa, apenas os vagabundos estão de pé com seus cigarros ruins, e as mulheres públicas em assanhamentos sexuais, e os cães que ladram mas não mordem. Foi-se sua graça a temperar o vento frio da madrugada de fins de maio. Saborosos traços amarelos a me queimar os olhos de vidro lá fora. Era uma tarde quando a vi pela primeira vez depois de anos, muitos, vários, demasiadamente inconcebíveis para um coração arquitetado pela poesia. Ela, a amada, se surgiu como se surge uma rainha de Manet, e o vinho em seus graciosos dedos pereceu-me o mais valioso de todos os tesouros, mas havia seu sorriso, já cantado nesta prosa incomum, ah!, e é ele, o sorriso, que quero enxergar por entre as cruzes da janela nesta noite em St. Cloud; é ele que desejo inteiramente, assim como a própria vida, para ainda me ser contemplado vê-la, quem sabe amá-la.
Mendes Júnior
* Painting by Munch, "Night in St. Cloud".

19 maio, 2008

Quanto maior estiver...


19/05/2008.


(Voz). Um poema relativamente célere que resolveu em voltas o labirinto humano. Em meio ao caos de maio e aos adjacentes da serra, chovia gotas de cristais no café requentado com leite de cabra. E já era manhã quando o espetáculo foi anunciado e o pão com manteiga deixado na ponta da mesa. A toalha de plástico não insistiu com o desjejum. O pão escorregou. Vexou-se a ponto da cadeira de bambu, que tinha o encosto frouxo, ficar também deitada ao chão de terra batida. (Barulho de queda). Era um moleque ainda, de andar de pés descalços, roupa furada, sem cueca e nariz escorrendo. Uma pipoca doce à porta. (Gaitada sonora de felicidade). Catorze ou Quatorze centavos o ingresso. Precisaria engraxar dois sapatos apenas, somente dois, um mais um sapato para o tanto da entrada com a pipoca. Preços populares. Depois do banho, somente após, o lustre em alguém. Palhaços, mágicos, animais, mulheres, enfim, o trapezista. (Aplausos de aprovação). Sonhava no ar, no céu, na lua enquanto entornava o corpo na rede olhando pela janela. (Batida de coração). Nada de bicicleta. Asas! Asas! Asas! (Grito). E a mão escorregou, pegou o vazio. (Agitação ou Espanto). O balanço correu sozinho nas alturas. Havia uma tela de proteção, uma rede, uma teia. Sorte do trapezista. Foi por pouco, muito pouco. (Silêncio).
Mendes Júnior
* Photo by André Adeodato, "Teia de cristal".

Nietzsche – O nascimento da tragédia


Sem data.

Logo no primeiro capítulo da obra “O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo”, cujo título original é Die Geburt der Tragödie oder Griechentum, escrito em 1872, Nietzsche esclarece:

“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações (...)” [1]

Assim, Nietzsche começa a tecer comentários a respeito do que considerava as condições trágicas do ser humano. Encontrou nos dois deuses gregos da arte, Apolo e Dionísio, a contraposição, quanto a origens e objetivos, natural no homem. Mas por que as duas figuras gregas? No entendimento do filósofo, foram os gregos que “pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existência e as ‘dores do mundo’, sem subterfúgios moralistas” [2]. Considerava ainda que os gregos haviam conseguido dominar de forma exemplar o caos dos próprios impulsos. E Apolo representaria a forma simétrica, o estímulo para o puro, o ponderado, a ordem, a moral, a nobreza das figuras, enfim, considerado a arte do figurador plástico (bildner), enquanto que Dionísio, como deus da música, simbolizava o fim tenebroso e desmedido, o excesso, o desejo e a orgia, nada menos do que a arte não-figurada (unbildlichen). Estas características (impulsos) às vezes caminham de maneira harmônica, outras vezes seguem fecundando discórdia, o que acabaria por instigar as “produções” a as “lutas” – a arte, por assim dizer –, “através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica (...) tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática” [1]. Desta forma, a tragédia seria a composição da alma (Apolo) com o corpo (Dionísio).

Tal idéia fazia parte do pensamento do – à época – jovem Nietzsche, que não acreditava ter o homem uma natureza boa, além do que era cético também em relação à ciência e à racionalidade; para ele, a arte, principalmente representada pela música de Richard Wagner, que mais tarde causaria conflitos, significava a restauração da cultura trágica. A bem da verdade o pensamento filosófico de Nietzsche cria a chamada crise da razão e de valores, ao tentar realizar um diagnóstico fiel da situação do homem moderno, mas não no sentido meramente da negação, mas através da contestação do absoluto. Com isso, Nietzsche buscava o pensamento de novos valores.

[1]. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000;
[2]. GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: PubliFolha, 2000.

Mendes Júnior
* Painting by Javier Alonso, "Womem # 09".

13 maio, 2008

À soleira


13/05/2008.


Colei meu rosto à janela da cozinha, (batia-lhe um vento morno de maio), e lá fora, demonstrando força para mais dois dias de sol, seis homens de preto seguravam um caixão brilhoso pelas alças ardentemente douradas. Comentei com Neuza que era assim que queria os móveis daqui de casa: um brinco de luminoso! “Óleo de Peroba”, foi o que Neuza me advertiu para incluir na lista da próxima feira, “para madeira e ‘Brasso’ para os metais e aderentes”. Descansei o aparelho de barbear na bacia de plástico vermelho com água ensebada, a fim de assistir ao cortejo de forma lisonjeira. De relance, olhei-me no pequeno espelho que Neuza usava para pentear as madeixas castanhas, que estava parcialmente escorado em dois tijolos reutilizados na janela: metade da minha cara era uma bunda de criança, a outra metade uma “mata viçosa”. Percebi que estava muito mais velho do que aparentava “anteontem” e assim sucessivamente. Logo atrás do caixão, junto do padre, vinham a mulher e as duas filhas do morto. Ela ainda formosa (mesmo depois das (pré)ocupações da doença do marido: lepra?), bem aquinhoada pela natureza dos anjos, tinha os traços do corpo delicadamente cuidados, por certo, indiferentes ao desgaste daquele pardieiro de cidade empoeirada e nojenta. Caminhava calmamente dentro de um fino vestido cinza, que descia em rendas de “Lambda” até os joelhos, deixando-lhe as alvas e grossas batatas das pernas expostas a olhares gulosos e inescrupulosos feito o meu. Um laço largo próximo aos seios portentosos tomava o lugar do cinto. O véu, um pequeno mosquiteiro negro, cercava maliciosamente seus olhos, sua boca e seu queixo finos. Pedi a fofoqueira da Neuza que me esclarecesse se havia sido de lepra mesmo ou de tuberculose a causa da partida do doutor Queijada Torres de Azeredo. “Cobreiro!”, disse-me com a boca cheia de galinha desfiada com cebola e pimentão, enquanto se limpava num pano de prato encardido, que trazia junto ao ombro indecente, ou seja, nu! “Um santo homem morrer de cobreiro! Onde já se viu isto? É o fim dos tempos!”, falou Neuza com dó do infeliz e de quem mais morrera de cobreiro. “Pensei que tivesse sido lepra. Falaram até que estava sem as duas mãos. Um pecado!”, falei. Disse a última frase para dentro, apenas para mim, mas Neuza, “A Orelhuda da Mamãe”, escutou: “Por que pecado, por quê?” Optei pelo silêncio, talvez em respeito ao morto, talvez para não discutir uma vez mais com Neuza, talvez por não querer falar nada, mas pensando se seria possível viver ao lado daquela mulher sem a chance de tocá-la, apertá-la, pegá-la de jeito de cabra macho. Seria o pior de todos os castigos, o mais cruel e insano formigamento para a alma, o mais desumanamente torpe entrenó para garganta – à flor da pele, arrepiei o fio do pêlo do dedo do pé quando atinei que agora ela era uma viúva. Fosse eu um sujeito de poesia e de posse, deixaria Neuza na miséria, me achegaria na viúva com galanteios e prendas, e passaria noites e mais noites debruçado no seu cangote, que há de ser o mais cheiroso da paróquia. Até criava as duas meninas como se minhas fossem – ainda assim valeria o esforço. Reparei no olhar arredio do padre, que despejava água-benta em excesso no povo, como se quisesse banhar a cidade inteira de benção. Achei um baita desperdício. Sequer é ele quem paga pelas coisas da igreja. Com o vinho não seria esta bondade toda. Minha testa ardia da claridade. “Isso é lá hora de enterro!”, foi meu gorjeio de clemência. “Neuza, dá cá um pedaço dessa galinha!”, pedi. “Há quanto tempo Rita de Cássia anda com a tabaqueira do papai?”, perguntei, apanhando novamente o aparelho de barbear e sentindo falta lascada do fumo.
Mendes Júnior
* Painting by Natasha Rosenbaum, "Under Construction".

11 maio, 2008

Indicações Musicoliterárias



Infelizmente, não almoçarei com minha mãe hoje. Creio que todos estão almoçando com suas mães, afinal, eis seu dia, senão todos. Já descobri que lá em casa se vai de risoto de frango e um creme de uva, sob o atento molhar de uma chuva inofensiva que desce desde ontem na Princesa do Norte - uma feliz trégua ao calor quase sempre insuportável e imanado ao solo da cidade - um presente às guerreiras que ainda acalentam marmanjos como nós. À distância dos corpos, às inconsequências de nossas falas, à saudade do abraço que não demos e à falta de senso das gentes, um olhar de reprovação e um canto de arrependimento pela falta. Falando em canto, amanheci disponível ao tango "Adiós Nonino", talvez pelo domingo das mães. "Adiós Nonino", sem dúvida, é uma das coisas mais belas que meus ouvidos puderam escutar até o presente instante, embora uma das mais tristes também. De cada dez vezes que me proponho a escutá-la, em cinco oportunidades choro um choro de órfão. Mas Astor Piazzolla não é apenas isto nem tampouco (somente) "Muerte de un Ángel". Aqui, duas dicas bem distintas da música de Piazzolla para desfrutar no domingo das mamas, embalado por um tinto de Mendoza: "Piazzolla - Complete Music for Flute and Guitar" e "Astor Piazzolla - The soul of tango, Greatest Hits". Bem, vamos por partes. O primeiro disco é clássico. Trás as Cinco Peças para violão de Piazzolla: campero, romántico, acentuado, tristòn e compadre - uma mistura de tango e muitos efeitos instrumentais, composta em 1980. No mesmo dico temos os tangos para flautas, docemente levadas pelo flautista Irmgard Toepper, nascido em Beckum, Westphalia. Por fim, a magnífica junção do violão e da flauta, que é denominada a história do tango, ou seja, a "Histoire du Tango, for flute and guitar", dividida em bordel, café, nightclub e concert d'aujourd'hui. O violão segue por conta do argentino Hugo Germán Gaido. O disco foi gravado na igreja Martin Luther, em Detmold, na Alemanha, de 14 a 17 de março de 1998, seis anos depois do falecimento de Piazzolla, e é um pecado de bom.
O outro disco é uma espécie de coletânea. Na capa se vê uma bela imagem de bandolim em vermelho sobre um fundo branco. Um álbum duplo em que é possível ouvir um Piazzolla grande com orquestra, com "Le quintette", com "Le quintette de tango contemporain", com "Le sextette" e com "Le noneto", além de canções gravadas para o cinema de Fernando Solanas: os filmes "Sur", com a música "Vuelvo al sur", o vocal de Roberto Goyeneche - "El Polaco", e "Tango, el exilio de Gardel", de 1988 e 1985, respectivamente. Os clássicos "Adiós nonino" e "Muerte del Ángel" se misturam com "Libertango", "Tres minutos con la realidad" e "Tango Ballet", bem como com os concertos para bandolim, piano, corda e percussão "Allegro Marcato", "Moderato" e "Presto", gravados ao vivo no primoroso e imponente Teatro Colón, Buenos Aires, em 11 de junho de 1983. A música de Piazzolla lembrada em dia de brilho. Gracias, hermanos!
Esteja dito.
Mendes Júnior
* Painting by Anya Gerasimchuk, "Piazzolla".

04 maio, 2008

Fatídica manhã de maio chuvosa


04/05/2008.


Todos da associação são testemunhas oculares e outros, por ouvir dizer, de que tento, dia após dia, encontro após encontro, charuto após charuto, licor após licor, (o de cereja me arde por dentro, um fogo!), me recuperar do trauma deixado pela fatídica manhã de maio chuvosa. Fui até em doutor de doido para tentar tirar o vexame das lembranças. Tive de tomar uma gororoba de remédios, cada um mais colorido do que o outro, mas não houve jeito de sossegar o meu anzol. “Medo desgraçado de viver aquilo outra vez, dona Carmelúcia!” Antes que eu me esqueça: a associação de que falo é a famosíssima Associação Pacatubense dos Iconólatras Anônimos – APIA, que é dentetora de honrarias das mais prestigiosas de que se têm notícias todas as gentes sergipanas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, bem como das mais vetustas também, por seu trabalho de clamor social e profícuos resultados junto às mulheres-donzelas, (ou aos homens, por que não?), condenadas ao martírio de viver agarradas à imagem-retrato de cantores de musiqueta de solfa, com seus romantismos exacerbados a incutir poetices nas caraminholas frágeis e incautas. A igreja, por sua vez, acertadamente, já tinha se manifestado contrária a idéia desses tipos candangos desde o começo do ano. Isto foi justo quando seu Salvador Patrício de Ramos, distinto e equilibrado membro da quinta geração da dinastia dos Ramos, oriundos de Alcobaça e Braga, dos séculos negros, além mares, e meu padrasto, determinou ao capelão a proibição de músicas de solfa em atos públicos. E que também fosse recomendado às famílias de índole, durante a exposição dos sermões, sempre tão cheios de pertinentes dizeres cristãos, a mesma proibição no seio privado. Só assim seria resguardada a magnânima fama da cidade. É bem verdade que o problema era comigo, tão-somente comigo, um rapagão sem lhufas de casamento nem moça a lhe rodar os cílios, que foi açoitado pelo padrasto na praça dos Quirinos Rodrigues, numa fatídica manhã de maio chuvosa, enquanto se enamorava com uma foto de “Sertãozinho, Menino-Flor”, um bandoleiro-cantante, debaixo de um indaiá-rasteiro, ao lado do busto do Coronel Pergentino, que havia servido na Guerra do Paraguai mas que não vencera uma única batalha de que se possa saber nos anais guardados na casa do Monsenhor Salazar, bibliófilo de primeira linha. Fiquei possesso com tal atitude; desassossegado com o modo torpe com que fui tratado; era um ser grotesco que me apunhalava, apunhalava, apunhalava os quartos na frente da gentalha, que ria, ria, ria do meu infausto destino. Fui levado por uma coisa, não tive domínio, quando me vi, estava beijando a fotografia, acariciando a fotografia, sedento pela fotografia, e uma mão grossa e cabeluda a me açoitar – meu padrasto indignado. Agora, (coitado de mim), compartilhava meu pecado com dona Carmelúcia, senhora tão rezadeira! Já me prometeu muita oração. Vamos ver. Por enquanto, nada. Sempre que degusto um bom licor de cereja, canta aos meus ouvidos “Sertãozinho, Menino-Flor”, com sua voz rouquenha a me ouriçar a pelugem. O amor tem das suas barreiras (desconhecidas), que só numa fatídica manhã de maio chuvosa podem ser descobertas.
Mendes Júnior
* Painting by Tsang Kin-Wah, "I love you".