Mas, afinal, quem é Haňt’a, além de alguém que em trinta e cinco anos compactou livros e bebeu cerveja suficiente para encher uma “piscina olímpica”? Um sujeito que habita um conformismo estranho – “essa era a minha sina, pedir perdão, eu até pedia perdão de mim mesmo por ser o que eu era, por minha natureza” –, porquanto aceita a bagatela que lhe é oferecida pelo destino, desculpando-se para tanto com motivos extraídos dos livros e do âmago da atividade que realiza. Parece-nos, contudo, encarar a vida sem consciência plena, capaz de estar permanentemente divagando. Ressalta ligeiro – até por não suportar bêbado – que bebe para que a leitura o impeça de cair num sono profundo ou lhe cause um “delirium tremens”. O contraditório se insere com força na vida de Haňt’a, pois bem o sabemos se comunicando sem cautela, descobrindo que “os céus não são caridosos, nem os céus, nem qualquer homem sensato”, mas poucas palavras são de fato suas, haja vista a confusão gerada a partir da absorção de frases alheias.
Literatura e Cultura - Mendes Júnior
13 maio, 2015
Mas, afinal, quem é Haňt’a, além de alguém que em trinta e cinco anos compactou livros e bebeu cerveja suficiente para encher uma “piscina olímpica”? Um sujeito que habita um conformismo estranho – “essa era a minha sina, pedir perdão, eu até pedia perdão de mim mesmo por ser o que eu era, por minha natureza” –, porquanto aceita a bagatela que lhe é oferecida pelo destino, desculpando-se para tanto com motivos extraídos dos livros e do âmago da atividade que realiza. Parece-nos, contudo, encarar a vida sem consciência plena, capaz de estar permanentemente divagando. Ressalta ligeiro – até por não suportar bêbado – que bebe para que a leitura o impeça de cair num sono profundo ou lhe cause um “delirium tremens”. O contraditório se insere com força na vida de Haňt’a, pois bem o sabemos se comunicando sem cautela, descobrindo que “os céus não são caridosos, nem os céus, nem qualquer homem sensato”, mas poucas palavras são de fato suas, haja vista a confusão gerada a partir da absorção de frases alheias.
25 abril, 2015
Uma partida de xadrez
3. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas II. 1ª ed. São Paulo: Globo, V. 2, p. 211, 1999.
04 julho, 2011
Cadernos de Viagem - Potsdam
30 maio, 2011
Cinema
Lendo o último livro do espanhol Enrique Vila-Matas publicado no Brasil, pela Cosac Naify, chamado Dublinesca, deparei-me já nas primeiras páginas com a citação do filme Spider (2002), do excelente diretor canadense David Cronenberg, que também tem em seu currículo Crash (1996), eXistenZ (1999), A History of Violence (Marcas da Violência) (2005), entre outros. Aliás, Vila-Matas faz mais do que uma simples citação: durante a passagem, o protagonista Samuel Riba é convidado por sua esposa, Celia, a assistir ao filme, e, durante sua exibição, há uma aparente tentativa de fazê-lo perceber ter características do personagem Spider, que vive solitário e incomunicável num mundo inóspito. Bem, é isto que nos mostra: "Volta a achar que sua mulher está tentando ver como ele reage diante da figura de Spider, para poder assim medir seu próprio grau de demência e burrice".
Prontamente - por ainda não ter visto o filme - resolvi não prosseguir na leitura até que resolvesse esta a qual considerei uma falha, pois sempre fui presenteado com fortes emoções durante e após os filmes de Cronenberg. A falha, a bem da verdade, era enorme: Spider é espetacular, e não menos a atuação de Ralph Fiennes, no papel de Spider, e a fotografia de Peter Suschutzky.
Logo na sequência inicial, acompanhada de uma música sublime e triste, vemos Spider descer de um trem com uma expressão de desconforto, balbuciando sons incoerentes, retirando de dentro da calça uma meia surrada com algo em seu interior. Após conferir um endereço, segue por ruas londrinas vazias, com a pequena mala em uma das mõas, recolhendo, durante o trajeto, objetos inúteis que encontra jogados, até chegar a East End, bairro em que passou sua infância. O endereço é de uma pensão que acolhe doentes mentais e só mais adiante sabemos que ele vinha de um hospital psiquiátrico.
De longe é fácil perceber que Spider tem problemas mentais, mas aos poucos vamos nos dando conta dos motivos que o levaram a ser quem é, ou acreditamos nisto. A partir de sua chegada à pensão, vai recontruindo inevitavelmente sua infância, de acordo com o que consegue lembrar - os fios da teia. Faz uso constante de um caderninho no qual escreve, com letras miúdas, frases em alfabeto imaginário, ou como diz Samuel Riba: "São sinais primitivos, paus ou pauzinhos dobrados, tão incompletos que não chegam nem a ser paus ou pauzinhos e, claro, não conseguem chegar a fazer parte do alfabeto de nenhum hieróglifo", e completa com uma sensação: "Produzem um verdadeiro pânico". Mas nada preocupa mais Spider do que alguém encontrar sua caderneta, a qual esconde sob o tapete do quarto, pois temos a impressão de que é nela em que vai tecendo as ilusões dispersas em sua memória.
O grande problema se baseia na morte da mãe. Responsabiliza o pai, que teria agido de forma brutal e, por fim, passado a viver com uma prostituta. Quando o assinato ocorre, ele ainda é uma criança, mas a narrativa do filme é feita com Spider adulto, o mesmo que desce na estação vestindo quatro camisas, embora esteja em pleno verão, revisitando, como simples testemunha atordoada, os acontecimentos cruciais do início da vida, até a prostituta assumir o lugar de sua mãe em casa. Difícil de ser observado que a mãe de Spider (Sra. Cleg), a protituta (Yvonne) e a dona da pensão (Sra. Wilkinson) foram vividas pela mesma atriz: Miranda Richardson. Importante detalhe, pois não apenas Spider se mostra perturbado na pensão com a presença da Sra. Wilkinson, mas nós também, pela confusão que Spider faz com as imagens.
O embate com as lembranças do pai assassino, vivido pelo irlandês Gabriel Byrne, aquele mesmo de Stigmata e Os Suspeitos, segue até o final, quando somos surpreendidos. A teia que Spider constrói não passa de um "emaranhado de cordas".
Por fim, ainda em Dublinesca, lemos que muito vagamente Spider lembra o personagem de Um homem que dorme, do francês Georges Perec (1936-1982), o qual ainda não li. Possivelmente, outra grande falha.
* Imagens extraídas do site www.imdb.com
29 maio, 2011
Música
Para um bom-dia-qualquer se faz necessário um som que se chame grande. Chet Baker pode ser traduzido assim: grande, enorme, gigante etc. Com a delicadeza que todo domingo requer, pois, de verdade, não se pode ofender tal dia da semana, sento-me ouvindo o disco da capa acima desde o comecinho da manhã. Trata-se de the art of the ballad (1998), composto por músicas gravadas em cidades diferentes (Nova York, Milão e Englewood Cliffs), para discos outros, como Chet Baker in New York, Chet Baker in Milan, Chet etc., entre os anos de 58 e 65, e remasterizado em 98 por Fantasy Studios, em Berkeley, Califórnia, por um sujeito chamado Kirk Felton.
O título do disco diz tanto, que Paul de Barros, responsável pelo texto que integra o encarte, escreve logo nas primeiras linhas: "Chet Baker believed in ballads. He believed in the idealized world of romance and beauty - and escape - that American love songs can conjure". Não só por isto, mas pela seleção musical, que vai desde Polka Dots and Moonbeams, Autumn in New York, Alone Together, I Should Care e I'm Old Fashioned, apenas para citar algumas, pois são treze deliciosas no total a serem consumidas.
Bem, parece que é isto, mas não, pois há um pouco de excelência musical em cada faixa, referindo-me aos músicos. Bill Evans, Paul Chambers, George Coleman, Roy Brooks, Philly Joe Jones, Herbie Mann, Pepper Adams, Connie Kay, Kirk Lightsey etc. são companheiros de Chet neste álbum. E, sem dúvida, dá para sentir a diferença de suas presenças. Há ainda a voz marcada e inconfundível de Chet nas duas últimas faixas do disco: na já citada I'm Old Fashioned e My Heart Stood Still.
Claro que the art of the ballad seria cultuado para uma noite romântica, servindo-se de um par agradável, cedendo aos prazeres escondidos no vinho e nos queijos, mas minha gata Amora - que se encontra agora esparramada no tapete musgo da sala ao lado do som - e eu entendemos que não há uma hora específica para Chet Baker, mas todas as vinte e quatro, desde que acreditemos também no amor.
20 maio, 2011
Cinema
Muito sensível, charmoso e nostálgico o filme O Pequeno Nicolau (Le Petit Nicolas), 2009, do diretor francês Laurent Tirard, levando-se em consideração ser estabelecido como uma comédia. De fato, não deixa de sê-lo, entretanto, com contornos simbólicos, mostra uma face ingênua da relação familiar sob os olhos de crianças.
01 maio, 2011
Pesar
"Nunca me he considerado un escritor profesional, de los que publican una novela al año. Por el contrario, a menudo, en la tarde quemaba lo que había escrito a la mañana", declarou em certa ocasião a respeito de seu trabalho. Sabato, ao final de sua vida, se dizia "una especie de anarquista cristiano que sólo cree en la paz y en la justicia social". Eis a relação completa de suas obras, a partir dos títulos originais:
Ainda segundo o Clarín, era considerado um intelectual emblemático atormentado pelos problemas de seu tempo.
El túnel (1948)
Sobre héroes y tumbas (1961)
Abaddón el exterminador (1974)
Ensaios
Uno y el universo (1945, junto a Ben Molar y Julio de Caro)
Hombres y engranajes (1951)
Heterodoxia (1953)
El caso Sabato. Torturas y libertad de prensa. Carta abierta al general Aramburu (1956)
El otro rostro del peronismo (1956)
El escritor y sus fantasmas (1963)
Tango, discusión y clave (1963)
Romance de la muerte de Juan Lavalle. Cantar de Gesta (1966)
Significado de Pedro Henríquez Ureña (1967)
Aproximación a la literatura de nuestro tiempo: Robbe-Grillet, Borges, Sartre (1968)
La cultura en la encrucijada nacional (1973)
Diálogos con Jorge Luis Borges (1976)
Apologías y rechazos (1979)
Los libros y su misión en la liberación e integración de la América Latina (1979)
Entre la letra y la sangre (1988)
Antes del Fin (1998)
La Resistencia (2000)
España en los diarios de mi vejez (2004)
26 abril, 2011
Guedali galopando rumo ao seio de Abraão
Moacyr Scliar guiou parte de sua obra pelo fantástico e pelo enfoque na tradição judaico-cristã, e O Centauro no Jardim segue ambas temáticas, acrescentando aqui a mitologia. O livro chegou a ser incluído na lista dos cem melhores livros relacionados à história dos judeus dos últimos dois séculos, elaborada pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, em 2002. Também se destaca da “prateleira” de Scliar por ter sido um dos mais traduzidos: inglês, francês, espanhol, alemão, sueco, hebraico e russo –, além de adaptado para o teatro na Alemanha.
O Centauro no Jardim é construído a partir de períodos definidos em capítulos, através de datas e lugares, mas com componentes narrativos que remontam ao passado. Inicia-se com um Guedali, o centauro-narrador, tranquilo e aparentemente feliz, comemorando seus trinta e oito anos, ao lado de sua mulher e de seus amigos, num restaurante tunisiano, chamado Jardim das Delícias, o qual passa a reconstruir os acontecimentos de sua vida. Observamos que o nome do tal restaurante é o mesmo de um famoso tríptico aberto do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), El Bosco, que atualmente repousa no Museo Nacional del Prado, em Madri. O tríptico (1504) retrata o pecado entre o céu e o inferno. Enquanto na lateral esquerda temos o paraíso, representando o último dia da criação, com Eva e Adão, na direita está o inferno, no qual o homem é condenado por seu pecado. Já no centro vemos o jardim e os prazeres da vida, em que a humanidade se entrega aos prazeres mundanos, com forte carga erótica. Uma sequência simbólica.
O calvário de Guedali tem início numa pequena fazenda no interior do Rio Grande do Sul. Ele faz parte de uma família judia, advinda da Rússia, que, ajudada por um tal Barão Hirsch, fugiu dos pogroms. Guedali narra seu próprio nascimento como se misturado ao susto dos pais e irmãos, e tem consciência desde cedo de que é diferente: “As primeiras lembranças, naturalmente, não podem ser descritas em palavras convencionais”. O fato é que Guedali nasce um centauro e, portanto, provoca uma série de desafios para família Tartakovsky, desde no sentido de seguir os preceitos judaicos até o de escondê-lo a fim de preservar a dignidade de todos, afinal, dificilmente seria considerado natural um ser metade homem, metade cavalo.
A questão conflituosa se trava quando Guedali descobre o prazer de cavalgar pelo campo, ao tempo que vai se apercebendo haver um mundo fora de seu esconderijo e das leituras, hábito que passa a cultivar enquanto trancafiado. Num descuido, durante um galope, é surpreendido por um vizinho e seus pais decidem se mudar para a cidade, fato que o torna ainda mais prisioneiro de seu corpo. Avista por lentes longíquas o amor – platônico, mas amor – e resolve que chegou a hora de abandonar a segurança de seus pares e enfrentar de uma vez por todos o mundo. Durante cavalgadas pelo desconhecido, conhece Tita, uma centaura. Apaixonam-se. Tomam, portanto, a decisão que iria mudar suas vidas: se transformar em seres normais após cirurgia realizada no Marrocos. A partir do sucesso deste empreendimento – chamamos assim – inicia-se uma batalha interna e individual entre os ex-centauros.
Interessante o exercício de assumir o papel dos dois personagens para tentar imaginar como nos comportaríamos se modificados a ponto de nos tornarmos outros seres. É incômodo, acredito. A identidade estaria em jogo, assim como a natureza humana e seus componentes psicológicos e sociais. Estaríamos desfocados e deslocados? Por certo, mas consideremos a possibilidade de sermos vistos como iguais, sem características físicas aterradoras. Mas não é tão simples assim. O fato é que Guedali é tomado por uma crise de identidade – permita-nos usar este lugar-comum –, quer voltar a ser centauro, pois é o seu instinto e, de verdade, nunca deixou de ser um centauro – eis a verdade que nos quer passar –, quer galopar pelos campos rumo aos seios de Abraão. Abre-se, então, a discussão pelo respeito ao diferente e à originalidade, a angústia do homem enfiado na sociedade contemporânea e a condição judaica. É salutar ainda o contexto político no qual se insere parte da história.
Mendes Júnior
* Reprodução de O jardim das delícias extraída do site O fabuloso mundo da arte;
** Reprodução de capa extraída do site da Companhia Das Letras;
*** Imagem de centauro extraída de http://fantasyhorses.homestead.com/
15 abril, 2011
Com a palavra, professor Benjamim Schianberg
Não se sabe ao certo em qual local e data nasceu Benjamim Schianberg, professor e autor do livro O que vemos no mundo, para o qual também não temos o ano da publicação nem a editora. Mas é certo que sua obra pode ser considerada como um manual filosófico do amor, um dicionário de expressões de cunho entusiasta para enamorados, uma fonte de pesquisa objetivando esquadrinhar frestas do sexo, sobretudo uma carta de auto-ajuda destinada aos que se aventuram a tentar ponderar o imponderável, sondar o insondável e compreender o incompreensível. O eminente professor cunhou frases de ciência pertinente: “A grande desgraça é que as lembranças não bastam para confortar os amantes (...)”; descreveu tipos da natureza humana masculina: homens de sangue quente; divide com seus leitores técnicas apuradas de comportamento: vestir e despir o mundo; rotulou-se como um estudioso ocupado com as “fezes da alma”; tipificou a STTL – Síndrome da Transferência Total de Libido; proclamou que poucos homens, para a insatisfação destes, são fiéis de verdade; e, por fim, desbancou a segurança dos amantes apaixonados que, quase sempre negligentes, acreditam-se discretos: não são invisíveis, estando apenas ofuscados pela luz que eles próprios emitem. Vetusto o amor, faz-se necessária a leitura do professor Schianberg, a fim de enxergar este sentimento em meio à claridade e à lassidão.
17 janeiro, 2011
Ausente
"Mário, Surpresa, hein! Bebo um vinho nesta noite chuvosa em sua homenagem. A música é de rachar o ouvido. Estou escrevendo aquela história que arquitetamos, mas que você abandonou alegando melancolia. Mando notícias. Abraços afetuosos, Mário. P.S. Envio-lhe uma fotografia para que tente sentir o perfume da noite."
** Cafe Museum Viena, by Mendes Júnior.