15 agosto, 2008

Laranja


Celeste chorava copiosamente ao meu lado. Estava deveras constrangido, pois as pessoas mais próximas, que queriam assistir à apresentação, se sentiam incomodadas com aquela ladainha fanhosa, e a todo instante pediam silêncio, com o indicador colado à boca, o que poderia ser considerado mais do que natural – grosseria grande era o comportamento de Celeste. Desde muito antes, dentro mesmo do carro, ela esboçava um berreiro, embora tenha conseguido manter o rosto enxuto até a primeira vodca. Celeste continuava estranha. Além de todas as esquisitices, era a única pessoa no mundo que bebia vodca sem gelo. Pedia apenas uma laranja cortada ao meio e espremia uma banda por dose, às vezes alterando tão-somente a coloração. Havia uma legião de amigos que sempre votava contra Celeste encarar a vodca nesses moldes, já que volta e meia se excedia e acabava por se arrepender no dia seguinte de alguma bobagem que cometia, no entanto, com a promessa de tudo acabar bem, enfiava a bebida praticamente em estado bruto – quase uma fogueira descendo pela goela; quase uma roseta de arame farpado rasgando a alma.
O fato é que ainda não conhecia o porquê do desalento de Celeste e aquilo ficava cada vez mais desconsertante.
“Qual o problema, Celeste?”
Celeste fazia de conta que não era com ela e sequer se dignava a virar o rosto para o meu lado. Fixava o olhar no palco. Tinha um cigarro no canto da boca. Sentia pena de Celeste: ela vivia solitária num minúsculo apartamento, sem gato, sem cachorro, sem parente, sem marido, só com seus livros e discos. Disse-me certa vez que companheiros mais sinceros do que os livros e os discos não há – “Eles nunca o abandonam”.
“E eu, porra?”
Mas Celeste me fez um carinho no pescoço e entendi que eu também era importante para ela. Estávamos nus, deitados no tapete da sala, escutando Freddie Hubbard e fumando um baseado. Tínhamos acabado de fazer mais um sexo sem compromisso. Na vida, raros são os momentos de plena paz e Celeste sabia como fisgá-los: pediu um minuto e foi até a estante apanhar um livro. Celeste não era magra, mas não se podia dizer que era gorducha. Celeste era a mulher na medida para o meu gosto. Ao andar, suas mamas balançavam, e me dava prazer ficar observando os movimentos tanto das tetas quanto das nádegas de Celeste, que também se deslocavam de forma peculiar, muito embora com mais timidez.
“Olha que coisa bonita!”, disse-me Celeste, abrindo Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, para ler um trecho. Antes, ressaltou que se tratava da história de uma interessante mulher.
(O pensamento de Teresa se destacava do corpo desconhecido que elaborara para sua alegria; cansava-se de sua felicidade, experimentava a saciedade do imaginário prazer – inventava outra evasão).
Terminou e ficou parada, esperando que eu dissesse alguma coisa, mas ainda tentava entender se havia relação entre Teresa e Celeste. Talvez não houvesse, apenas uma passagem ficcional, ou, quem sabe, poderia haver até demais: Celeste estava inclinada a pensar um mundo sem os escrotos de plantão e repetia em tom solene que sua maneira de enxergar a porcaria da vida havia mudado: estava cansada e cagando para gente feito eu.
“Eu, porra?”
Celeste me pediu sinceras desculpas. Enlouquecia. Há dias vinha desenvolvendo uma revolta incomum e, portanto, que não levasse em consideração algumas coisas de que falava. Gostava muito de mim, tranqüilizou-me, completando: na amizade não temos de nos explicar, mas entender que todos sofremos e que não por isto deixamos de amar uns aos outros, e era isso que queria de mim naquele instante da sua vida: compreensão e reciprocidade dos sentimentos, não só quando na magia legítima do sexo, mas por todo o sempre, mesmo que isto custasse uma lasca do couro das costas. Celeste era pragmática na maioria de suas falas, apenas no afloramente da inibida veia poética é que surgia com um certo obscurantismo, que me deixava imerso num enorme ponto de interrogação. Qual a Teresa? Qual a Celeste? Continuamos, ao som de Arietis, bebendo e dando tapas no baseado. O cheiro da mão de Celeste tinha assumido a conotação cítrica da laranja enquanto a minha parecia estar dentro de uma luva de ervas.
Realmente, notara que Celeste estava variando de humor ultimamente. O pior é que não se entregava, não queria conversar sobre o mal que a atormentava. Claro que eu insistia, mas não havia meio de decifrar a nova Celeste. Ela me perguntou o que eu achava dos poetas malditos, mas, mesmo que quisesse, não seria capaz de dizer algo atraente e preferi me quedar no silêncio. Melhor do que dizer babaquices. Sou daquele tipo que quando não domina determinado assunto me calo rápido, a fim de não passar vexame desnecessariamente.
“A Celeste agora só se ocupa com os malditos” – falou na terceira pessoa, e isto me deixou ainda mais intrigado. – “Franceses são uns merdas fodões! Você não acha?”
Os raios da manhã já entravam pela janela. A noite e a madrugada se foram bandidas. Resolvi tomar um banho quente na banheira de Celeste. Não sei se pela vodca, pela maconha ou pelo cansaço, mas Celeste, ao tentar cortar uma laranja, acabou acertando a mão, abrindo uma fenda de médio porte, e o sangue se misturou ao cheiro da laranja. Contou-me o que aconteceu quando entrou na banheira, pois fiquei assustado ao notar a água se avermelhando.
“Porra!”

(...)

Celeste não parava de chorar.
“Qual o problema, Celeste?”
“Nada”.
“Mas como nada? Você está mal e persiste na idéia de não se abrir comigo. Por quê?”
“Por nada”.
No acanhado palco da boate, um tal de Juan Miranda entremeava no piano baladas cubanas e jazz. Achei que Celeste fosse aprovar meu convite, mas só me decepcionava.
Lembrei de Teresa. Melhor: do pouco que conhecia da personagem de Mauriac. Queria saber mais sobre sua história, entretanto me restava unicamente o fato de que Teresa estava cansada da felicidade, e talvez fosse esta a tormenta de Celeste: cansaço. Mas Celeste nunca foi feliz, portanto, sua fadiga poderia ser de tudo: da vodca, da laranja, do sexo, da solidão, de mim ou do Juan Miranda, que agora tocava uma habanera, chamada Mariposita de primavera, menos por excesso de felicidade. Celeste era uma mulher arrasada desde que sua irmã falecera num acidente de automóvel. Assim como Teresa, não conhecia muito da irmã de Celeste, apenas que era mais nova e que recebia os cuidados da mais velha, pois cresceram diante da ausência dos pais. Celeste era tudo que a menina tinha e vice-versa, razão pela qual ficou desamparada quando ligaram no meio da tarde avisando da fatalidade.
Celeste me propôs irmos para o seu apartamento. A laranja estava exageradamente doce e aquilo lhe causava náuseas. Achei que fosse brincadeira de Celeste jogar a culpa na laranja, mas vi que ainda chorava e preferi não aborrecê-la com minhas teorias de comportamento. Claro que aceitei ir com Celeste, raramente a contrariava. Durante o caminho até o carro, senti uma enorme vontade de segurar sua mão, porém a desocupada era a que tinha a cicatriz e eu não achava confortável. Na outra, um cigarro enodado de batom escuro.
“Celeste, tenho pena de você”.
“Também tenho”.
“Por que então não me fala o seu problema?”
“Você não iria entender”.
“Por que não tenta?”
“Você não vai entender”.
“Por quê?”
“Vai à merda!”
Talvez o pensamento de Teresa explicasse a nova Celeste; talvez explicasse qualquer coisa. Não é a felicidade o âmago da questão, mas se apartar do corpo que ora nos é desconhecido, amargo e podre, é mudar tudo, é correr léguas até o gozo, é vestir uma outra fantasia, seja ela de Apolo ou Dionísio, é sujar o rosto quando necessário, é pagar o preço.
Celeste já não chorava. Celeste já não cheirava à laranja.
Mendes Júnior
* Conto selecionado no Prêmio de Literatura Unifor 2007
** Photo by Mendes Júnior

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante!!! Gostei mesmo. Parabéns!!!

Geraldo Canuto
Diamantina / MG