15 janeiro, 2007

Uma flor


CRÔNICA*, sem data

Era preciso ter certeza de que Noronha não fizera isto. Um homem centrado como ele não comete um desvario desta magnitude. Um cidadão exemplar, casado; aliás, muito bem casado, diga-se de passagem. Trair Dona Flora era só o que faltava. Eu, particularmente, desde que me anunciaram o episódio, fui forte em afirmar que não acreditava nisto. Eu sou da cozinha do Noronha; eu o conheço. Sei que é incapaz de cometer um ato ilícito e, agora, envolvido com uma fulana qualquer, impossível. São falácias de quem não tem o que fazer. De fato, Noronha é o típico homem comum. Sua vida, sempre muito regrada, não lhe permite luxos desnecessários. O máximo que consegue é, uma vez a cada quinze dias, ir ao cinema – sua verdadeira paixão. Imaginemos a cena: o homem sai de seu lar acompanhado de sua bela esposa, vestido com seu único terno (branco, meio amarelado pelo tempo); entra em sua Variante cor de tangerina e segue para o cinema no centro da cidade. Ao chegar, procura fazer um agrado à madame e lhe compra um saco de pipoca com um copo de refrigerante. Assistem ao filme e retornam a casa. Pronto, este é o Noronha. Isto feito, durante os outros vinte e oito dias do mês, Noronha se divide entre o trabalho, as partidas de futebol pelo rádio e, de quando em vez, reclamar com a vizinhança que fez outra ligação clandestina com sua energia elétrica. Noronha é agente fiscal. Trabalha em nossa repartição, se a memória não me for tão cruel, desde meados dos anos oitenta. No nosso quadro de funcionários, talvez o único que adentrou por meio de concurso. Que eu saiba, nunca fez corpo mole aqui dentro. Sempre se utilizando da cortesia, Noronha é deste que podemos chamar de gentleman. Não aumenta o tom de voz, quando nervoso; no máximo, tira do bolso da calça um pequeno pente preto e escova alguns fios de cabelo que ainda lhe restam, antes de soltar uma frase fraca que mais parece uma melodia. Segundo ele, este ato o ajuda a pensar e a manter a calma. Agora, que tolice imaginar um homem tão polido envolvido com aventuras amorosas. Inda mais, com uma flor – que é Dona Flor – como mulher, o que faz um homem buscar outro alento que não este. Porém, Dona Flor não é flor que se cheire. Em suas mãos, Noronha já sofreu as piores humilhações. Casaram-se cedo e, antes disto, Dona Flor já mandava em tudo. Desde a hora em que deveria permanecer calado até o fato de limpar os solados dos sapatos ao entrar em casa, Noronha obedecia como um cão ao seu dono. Chegou a ponto de obrigar o pobre coitado a lhe entregar todo o ordenado, tão logo recebesse, a fim de garantir seus caprichos. Restou ao Noronha apenas o cineminha de quinze em quinze dias. Sem falar, ainda, que a infidelidade de Dona Flor adentrou a própria repartição e aportou, inclusive, no Pereira – este defensor ardoroso da fidelidade do Noronha. “Pereira, escuta. Foram somente dois ou três beijinhos, depois ela fugiu levando meu relógio. Mas o relógio era vagabundo, não valia nada” – justificou-se Noronha. “Noronha, seu cafajeste!” – replicou Pereira.

Mendes Júnior.
* Crônica selecionada no XXI Concurso Internacional de Primavera (SP). Publicada no site do Jornal O Noroeste, em 02/01/2007.
** Photo by Mendes Júnior.

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