27 setembro, 2007

História de um desocupado qualquer


Sem data.


Não lia bem, porém entendia que na leitura havia algo relacionado com a noite e, portanto, usava para justificar as noites mal dormidas. Não se permitia devaneios, mas tão-somente um realismo nu e cru de uma cidade sem rei. Nas horas mortas, entre meretrizes e desvalidos, deparava-se hermeticamente com o braço esquerdo da existência puxando-lhe por vielas escuras, levando-lhe aos bares mais sórdidos. Bebia muito conhaque e sempre de maneira sôfrega, como se sentisse nojo de qualquer coisa, como se repudiasse aquilo que estivesse ao alcance dos olhos, mas sua proximidade com as mentiras era mais uma natureza da entrega do seu corpo e alma, nada enobrecida. Gole, gole, gole... Vociferava contra as formas de poder utilizadas pelo homem em seu benefício, embora não fosse tão claro, mas não era um anarquista nem coisa parecida. “Caro colega, em Pinhais do Frade, o vilarejo em que nasci, a gente vivia feliz” – remoia um passado velhaco e de pouco para comer, tentando contar causos esquecidos nos farelos das estações para o primeiro desacreditado. Não era habituado do trabalho: nunca achou que as gotas de suor valessem mais do que esforço mal recompensado. Gostava mesmo era de televisão: assistia à programação que lhe caía nas vistas: novelas, programas de auditório, reclames, tudo, embora não gravasse a essência das coisas e, em poucos minutos, um vazio intrigante pinicava sua cabeça feito piolho. Em meio à escuridão, divertia-se com as estrelas: “Umas até caem do céu”. Aliás, o céu era o lugar em que pretendia estar no futuro próximo, já que nessa encarnação só lhe restava aguardar uma outra vida, pois doravante nada mais havia. Para qualquer inferno que fosse, de imediato, procurava garantir o pedaço mais sossegado, quiçá o que fosse possível se fingir de morto. Admirava as estrelas por não conhecer o dia de olhos abertos – durante a manhã, sono, na tarde, cura, à noite, zona (perfazendo-se, desta forma, um ciclo vicioso). Tinha amigos: bêbados, taxistas, mulheres, travestis, milicianos e garçons. Não tinha esposa nem filhos, pois, tal como Brás Cubas, não iria deixar esse triste legado para quem quer que fosse. Não que tenha se debruçado na história de Machado de Assis, mas, assim como aquele, sofrera de uma enfermidade – doença para lá de exótica, porém doença: Merencefalia Ociolítica Progressiva. Era uma espécie de enfermidade degenerativa trazida pelos próprios portugueses, por ocasião da colonização, causada pelo ócio profundo. Destruía, em primeiro lugar, o poder de ação e reação e, em pouco tempo, os neurônios, levando o ser humano do estado letargo à morte. Aos 45 anos, não lembrava nem o nome. A doença agravou-se. Até que, numa bela manhã, foi surpreendido pela navalha de um cobrador – um acerto de contas pelo tempo perdido.

Moral da história, segundo Millôr Fernandes: “Quem mata o tempo não é assassino: é suicida”.

Mendes Júnior
Photo by Mendes Júnior.

25 setembro, 2007

Ontem e Hoje






Poesia, sem data.








Num tempo, em algum lugar,
quando as rosáceas não exalavam amor
e a brisa não tinha frescor,
vi o enlace dos teus olhos
em minha negra — triste — face
e sorri... chorei... fui além.
Vejo, nesta hora, a minha amada,
em tipo meu lépido,
que não isenta nunca de brandura.
Assim, sempre...

Mendes Júnior
*Photo by Paula Bonneaud, "Écorce 2".

Noite baixa e Dia claro e Sonhos




Poesia, sem data.






Noite baixa... dia claro... sonhos
por que são sonhos.
Acordaste junto ao meu peito
ao meu pensamento
puro
ao meu canto
doce
ao meu dia
vívido
à minha lembrança
de teu riso solto
à minha esperança
de nunca se acabar
com teus olhos nos meus
sem mesmo saber quais os teus
quais os meus
com profusão
(com)tentamento
caminhando por dia claro
e por entre teu puro riso solto
que é vívido
e que tem um doce
que nunca se apagará
dos meus sonhos
nunca.
Mendes Júnior.
* Photo by Hyvrard, " A Star is Born".

24 setembro, 2007

Bachelard (1884 – 1962) – Ruptura epistemológica para explicar o novo espírito científico – I

Gaston Bachelard


ARTIGO, 03/09/2007.

“A verdade é filha da discussão,
não da simpatia”.
(Gaston Bachelard)

Uma das principais obras do francês Gaston Bachelard é “O Novo Espírito Científico”, cujo título original é Le Nouvel Esprit Scientifique, escrito em 1934. Não deixemos, no entanto, de citar “A Intuição do Instante” (L’Intuition de l’Instant), escrita um ano mais tarde, também de fundamental importância para entender o pensamento de Bachelard. Sem dúvida, e antes de mais nada, ressaltemos que o filósofo foi responsável por influenciar sobremaneira aquilo que se passou a pensar a ciência e todo um contexto analítico, bem distante das regras apregoadas pelo Positivismo de Auguste Comte, daí – momento em que podemos afirmar ainda – não ter se deixado prender à idéia de uma filosofia ortodoxa, o que lhe concedeu a alcunha de o “filósofo do não”. Isto, em miúdos, significa dizer que Bachelard acreditava que a história do pensamento não era contínua, mas com rupturas, revoluções e cortes epistemológicos. A bem da verdade, Bachelard foi um crítico e defendeu, para a construção da ciência, o racionalismo setorial e aberto, onde havia uma evolução por meio de conflitos. Para ele, o conhecimento necessitava ser aprofundado e aberto para ser considerado ciência.

É inevitável, contudo, que façamos, num primeiro sentido, uma distinção pertinente com o conceito positivista: para este, a certeza era algo concreto e visível, enquanto que Bachelard entendia que não existia nenhuma “certeza”, já que a realidade (certeza) seria construída e interpretada em função da criatividade do espírito de cada sujeito. De acordo com o filósofo, ao abordar o agnosticismo positivista, ou seja, a admissão, por parte desta acepção filosófica, de uma ordem de realidade que não pode ser conhecida, diz: “trata-se de um realismo de segunda posição, de um realismo em reacção contra a realidade habitual, em polémica contra o imediato, de um realismo feito de razão realizada, de razão experimentada (...)” [1]. A experiência científica, portanto, é uma razão confirmada e não proveniente de algo meramente desconhecido. Isto muda completamente o papel do cientista no século XX, já que este deverá depurar suficientemente os fenômenos científicos para se certificar dos seus resultados. Voltando às palavras de Bachelard: “Assim, independente dos acontecimentos que se amontoam e trazem mudanças progressivas dentro do pensamento científico, vamos encontrar uma razão de renovação quase inesgotável para o espírito científico, uma espécie de novidade metafísica essencial (...)” [1]. É interessante observar que o sujeito (cientista) fará uso de uma pensamento vinculado à racionalidade (razão) baseado em alguns pressupostos, levando-se em consideração para este caso o psicólogo, tais como: visão do homem, visão da psicologia, conceitos da teoria do novo espírito científico, dinâmica psíquica e um método de trabalho. Com a razão teríamos a constituição de (novas) idéias sobre o mundo – a formação dos a prioris e a posteriores.

Outra questão que deve ser aprofundada é no que diz respeito à história, à idéia e ao pensamento. Para Bachelard, conforme citado, a razão formava-se por meio de uma construção de idéias, por exemplo, com aspecto de descontinuidade, havendo vários cortes epistemólogicos, considerados como negações, mas não confundidos com o “falsificacionismo”. Para essa construção, no entendimento do filósofo, havia alguns importante obstáculos, como o senso comum, a massificação de uma teoria e o pensamento igualitário. Era justo contra isto que lutava Bachelard: com as rupturas epistemológicas e o uso da razão poder-se-ia criticar e criar uma nova ciência, pois pensava que esta se desenvolvia em meio ao conflito. Daí, ser Bachelard conhecido como “filósofo do não”, mas explica, antes de um entendimento errôneo da questão: “Uma observação é, de resto, útil para previnir um equívoco: não há nada de automático nestas negações e não deverá esperar-se encontrar uma espécie de conversão simples que possa fazer com que as novas doutrinas entrem logicamente no quadro das antigas. Trata-se de facto de uma verdadeira extensão (...)” [1]. Enfim, a idéia do “novo pensamento científico” é a de que, através de pressupostos epistemológicos (negações, cortes, fragmentos, instantes), os produtos científicos devem não apenas ser simples descobertas, mas resultados de uma cuidadosa criação.

[1]. BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 1996.
Mendes Júnior.

22 setembro, 2007

Sem sentido


22/09/2007.


Rinaldo Galhardo despertou em estado de perturbação absoluta, mas isto por causa do dia anterior, que – diga-se de passagem – foi dos mais trágicos na sua vida. Logo cedinho, levaram-lhe as únicas moedas enquanto aguardava a condução diária, depois, diante da ausência do minguado dinheirinho, teve de ir caminhando até a repartição e, por esta razão, ao bater o ponto, foi levado à mesa do gerente para ouvir poucas e boas pelo atraso. Na mesma manhã, por intermédio de um companheiro de sala, descobriu-se traído por um antigo colega de colégio, chamado Pompeu, que há muito vinha tendo um caso amoroso com Leide, uma balconista que Rinaldo Galhardo se enamorava desde o começo do ano e que correspondia porém com um sentimento estranho, é bem verdade, mas somente agora entendia o porquê. Nada disso, até então, havia feito qualquer estrago ou mudança na expressão sempre econômica de Rinaldo Galhardo, a não ser uma bala perdida que acertou em cheio o seu peito, quando caminhava para o almoço pela Major Facundo, por ter sido confundido com um perigoso-cruel-assaltante-de-banco-há-tempos-procurado.

Não lembrava de muita coisa, mas aquela brancura toda no quarto, inclusive no pijama que agora vestia, denunciava um hospital – público ou privado? – era uma pertinente pergunta a ser feita, pois Rinaldo Galhardo não tinha nem para o ônibus de volta. Procurou por aqueles botões ao lado da cama que chamam enfermeira (ou coisa que o valha) para se certificar do que teria acontecido a ele, mas não havia nada que indicasse essa facilitadora comunicação, no entanto existia a mais antiga de todas: a voz. Absurdamente, Rinaldo Galhardo não conseguia falar palavra algum, não saía nenhum gemido por sua boca, enfim, ele estava mudo. Rinaldo Galhardo pensou tratar-se de um pesadelo, uma brincadeira de mau gosto do seu inconsciente, que teria ficado invocado com o impedimento imposto pela barreira de recalcamento, e assim lhe concedeu um bom beliscão, a fim de trazê-lo de volta à realidade, entretanto, mesmo podendo notar a mancha vermelha no braço, não sentiu dor.

Viu numa mesa de canto, dentro de um copo de vidro improvisado de jarra, um par de rosas amarelas. Quem as teria posto ali? uma visita? a balconista? alguém da família?, mas as perguntas se iam como vento pela janela aberta. Esticou o pescoço para tentar enxergar a paisagem fornecida pela única janela do quarto, mas sentiu como se estivesse flutuando e a náusea fez com que recostasse a cabeça no travesseiro e se deixasse como antes. Totalmente incompreensível, pensava Rinaldo Galhardo, e aquilo começava a minar sua paciência. Tentou gritar mais uma vez, porém forçou tanto as cordas vocais que ficou cego. Era o cúmulo o que acontecia a Rinaldo Galhardo: num quarto de hospital sozinho, sem saber o porquê, deitado numa cama sem fios ou aparelhos colados ao corpo, sem voz e, agora, cego. Precisava de ajuda para entender um mínimo.

Rinaldo Galhardo pensou como devia ser diferente já nascer cego e perder a visão depois de velho, tendo tomado conhecimento das cores, das formas, do bonito e do feio. Nada fazia sentido, no entanto, com uma elegância surpreendente, esfregou os olhos inválidos e construiu imagens disformes de cor amarelada. Lembrou do par de rosas que estava ao seu lado e imaginou seu cheiro, mas não passou da tentativa, pois também estava privado do olfato. A vida é mesmo um desafio e, por vezes, confusa e preclara de ser abatida. Rinaldo Galhardo, em meio à sua cegueira, conseguiu no vazio lembrar, mesmo que de forma muito limitada, do que havia acontecido no ontem e sabia ter levado um tiro. Passou a mão pelo corpo, para encontrar exatamente o local atingido, mas já não havia as sensações provenientes do contato. Aquela situação maluca levara-lhe a um descontentamento no peito e só então atinou que o tiro fora no lado esquerdo dele, ou seja, no coração. Pobre Rinaldo Galhardo...
Mendes Júnior.
* Photo by Hyvrard, "Pongo nº 1".

Manual de sobrevivência em época de eleição (ou uma volta ao templo do futebol)


13/07/2006


Foi dado o pontapé inicial das eleições deste ano. Acabada a Copa do Mundo, é momento de decidir quem serão nossos representantes para os próximos quatro anos. Tal qual o esporte bretão, a vitória se dá de forma coletiva. O “p” se coliga com o “p” que, por sua vez, alia-se ao “p”, que traça uma proposta de jogo e vai a campo. Ganha aquele que apresenta as melhores táticas, diante dos momentos mais críticos; alguns até revertem placares indecentes, através do fair play ou da prática antidesportiva. Porém não há aqui a famosa caixinha de surpresas (onde tudo pode acontecer) nem seremos meros espectadores inertes, movidos por uma sensação irracional. É necessário não esquecer de que somos cidadãos e de que vivemos em um território, aparentemente, democrático; portanto, somos nós os donos da bola.

A primeira grande jogada é conhecer os candidatos. Eles sempre serão muitos; alguns jamais sequer ouvimos falar ou o vimos falando; outros nem iremos imaginar disputando uma vaga – há tempos ociosa – de síndico de nossa favela vertical; têm aqueles que vão estar de férias (leia-se: licença) e que, claro, não interromperemos; e, finalmente, dois ou três que acreditam nas próprias palavras eleitoreiras. E os sérios? Estes vocês encontram, vez ou outra, escondido em algum lugar no gramado. Em meio aos jogadores, existem os narcisistas, os maquiavélicos, os profanos, os frígidos, os esdrúxulos, os apolíticos e os laranjas – só para citar algumas letras do alfabeto. E os sérios? Lá vêm vocês novamente com esta história. Eles estão na letra “s”, pronto!

Nunca é demais estar atento à publicidade partidária, afinal, a ciência eleitoral ainda não foi capaz de elaborar maneira mais (in)eficaz de colocar o eleitor cara-a-cara com seu representante. Porém, muito embora haja um bombardeio sonoro e uma poluição visual, é preciso ter em conta de que nem tudo é perfeito. Santinho e outdoor, por exemplo, são cópias fidedignas de uma genética, às vezes, longe da beleza. O candidato não deve ser escolhido pelo que tem fora, mas pelo que permeia suas intenções. É bom tomar cuidado com os candidatos que endereçam cartas às residências. Num país heterogêneo feito o nosso difícil acreditar que o correio não tenha se enganado quando enviou para Irauçuba uma carta idêntica a que entregou em Fortaleza. Para aquela proposta indecente de pintar o muro de nosso lar dê uma vaia moleque e corra pela tangente. Aproveite para esquecer o palanque munido de cantores sertanejos – nós não queremos mais ouvir falar de circo.

Certifiquemo-nos de que iremos rir, chorar e odiar o horário eleitoral gratuito. Por alguns instantes (às vezes intermináveis) sua televisão – que você ainda nem terminou de quitar o crediário – lhe proporcionará irretocáveis atuações. Nem toda dramaticidade do mundo deverá fazer você perder de vista o porquê da sua atenção: precisa-se de um candidato. Não esqueça de tomar nota do número da camisa do jogador predileto, já que isto não é feio: feio é não ter para quem passar a bola. Aproveitemos, pois pouquíssimas coisas permanecem gratuitas nesta época do ano. E se por acaso você for acometido por um certo déjà-vu, não se engane, eles não são os mesmos desportistas da Copa passada, apenas que resposta de jogador de futebol é quase sempre igual.
Mendes Júnior
* Publicado no Jornal O Noroeste, em 14/07/2006;
** Photo by Jeremy Webb, "Back Study".

19 setembro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Juan José Millás

Estou, há dias, envolvido misteriosamente com temas relacionados à psicanálise, behaviorismo, epistemologia e outras questões afins; também tenho me ocupado com a releitura de Cem anos de solidão, conforme dissera em outra oportunidade, no entanto, mesmo me restando quase nada do tempo, abri um espaço precioso para conhecer de perto a literatura de Juan José Millás. É claro que já ouvira falar a respeito do escritor nascido espanhol (e muito bem, é verdade), mas o que até então não havia experimentado era algum tempero de sua obra, que é vastíssima, diga-se. Alguns títulos ainda não têm tradução em nossa língua, o que de pronto pode ser considerado um pecado editorial – igual a tantos cometidos diariamente nessas plagas. Ficarei na torcida para que, com a entrada da Editora Alfaguara no Brasil, esse e outros problemas sejam minimizados.

Juan José Millás foi bastante influenciado por Dostoiévski e Kafka. Suas novelas expõem, de forma clara, uma visão angustiante do ser humano, e isto me foi possível constatar com a leitura de Laura e Julio, livro este publicado recentemente pela Editora Planeta. Trata-se de um casal, Laura e Julio, que, por decisão dela, se separam logo no começo da trama, enquanto o vizinho e amigo Manuel permanece em coma numa cama de hospital. Julio, por sua vez, sem ter muito aonde ir, resolve ocupar o apartamento de Manuel, no entanto sem que ninguém saiba. Pouco depois, assume (relativamente) a “figura” de Manuel e começa a se descobrir numa nova vida, donde também nasce uma curiosa relação com uma menina de seis anos de idade. Uma das pérolas da narrativa é a convivência “conflituosa” de Julio com o estranho e a lucidez, diante dessas situações todas. A novela é muito curiosa e vale a leitura, apenas ressalto alguns erros, provavelmente de revisão, ao longo de suas páginas.

Um pequeno trecho de Laura e Julio:
“La noticia del accidente divide la tarde del sábado en dos partes con la limpieza con la que un bisturí separa la carne. Por la expresión de su mujer, Julio calcula que una vez que resuelvan las cuestiones de orden práctico tendrán que enfrentarse a un desamparo excesivo, por lo que, al objeto de retrasar ese instante, propone varias cosas inútiles que ella ni siquiera escucha. Pasados unos minutos, cuando Laura regresa a su cuerpo como el pájaro regresa a la jaula tras haberse golpeado contra las paredes, se dan cuenta de que no tienen la llave del piso de Manuel (aunque él sí dispone de la de ellos), lo que les imposibilita entrar en él para buscar el teléfono o la dirección de un pariente en el que delegar la ejecución de los trámites. Y del dolor. Es entonces cuando Julio cae en la cuenta de que han mantenido una familiaridad sorprendente con una persona de la que lo ignoran casi todo. El problema es que su matrimonio, sin ese individuo, resulta ya incompleto. La atmósfera destemplada y húmeda de la tarde penetra en el piso y roza, como un suspiro fúnebre, el ánimo de la pareja. Por la televisión, encendida aunque muda, pasan el anuncio de un perfume que inaugura la campaña de Navidad”.

Esteja dito.

Mendes Júnior.

18 setembro, 2007

Meia-noite


23/04/2006.


Que poderia dizer da meia-noite se agora é a única a me fazer companhia, se neste exato instante é quem me toma todas as mágoas passadas? Sinto-me tal e qual um bicho inseguro e, amiúde, permaneço imóvel e sem direção. Estou tão próximo do desespero e da dor! Não esporádico meu pensamento se alimenta de algo insistentemente amargo. Mas sou sabedor de que nada dura para sempre e, quanto menos eu esperar, eis que surgirá (repentinamente) o fiapo tão desejado de uma esperança (lúbrica) – a única que de fato não morre (ou será o contrário), daí acreditar no amanhã como quem crê na extremidade do suspiro da bendita angústia. Os ponteiros inimigos denunciam a chegada de mais uma virgem madrugada. Outro fato do qual estou certo é de que não há relógio que alardeie ao marcar meia-noite.

E mesmo se estivesse expondo uma noite festiva ou quem sabe religiosa – na incomum tentativa de garantir, decerto, uma absolvição –, não justificaria a presença deles naquela rua àquela hora. Na hipótese poderia repetir a narrativa triste que noutro dia me chegou, para a qual não dei qualquer crédito, até pelo absurdo da minha franqueza, mas isto não traduziria o real. Por meio deste coração – que um dia certamente não será de outro – percebi tratar-se de um momento qualquer, num lugar qualquer, durante uma meia-noite qualquer. A cena: uma mãe, uma criança de colo e duas crianças já crescidas. E aquilo nunca saiu da minha cabeça.

É impressionante a capacidade que temos de armazenar desastres (pois é desta maneira que concebo). Basta uma leve topada e lá se vai o pensamento seguindo por um rumo sob o qual não temos nenhum controle. Às vezes fazemos viagens longínquas com um simples acorde ou toque de fragrância. No meu caso, meias-noites levavam-me por um labirinto escuro e maldito. Não me permitia a memória apagar o rosto daquela mãe. Poderia desenhar os traços de seu nariz e de sua boca, caso fosse necessário, mas não há alívio para tanto. Deparo-me, no entanto, enxugando suas lágrimas e acalentando seu desespero. Não seria capaz de fustigar minha expressão insalubre. Por instantes não tirei os olhos do rebento que se acomodava em seu regaço. Os dois outros pequeninos batiam freneticamente na minha janela, que nem sequer colheu suas digitais. Eram quatro mãos abertas chamando-me e clamando por um punhado de atenção; talvez viradas para o céu esperassem uma alma caridosa a lhes saciar a fome. Não consegui desviar a vista daquela criatura sentada à beira de calçada esperando sabe-se lá o quê da vida. Durante segundos, não mexi parte alguma do corpo.

Mas o movimento nos faz novamente humanos e seria (in)compreensível encontrar alguma beleza lá fora. Imaginemos – não como poetas – que nas ruas muitos se digladiam pela sobrevivência. Pisei fundo: medo?, não sei, mas fugi, no entanto não imaginava que o meu maior medo viria enlaçar minh’alma até agora. Talvez aquela mãe sem paradeiro tenha atestado na minha face uma forte vergonha. Não queria que eles estivessem ali. Não deveria ter sido comigo. Poderia ser com qualquer um, mas foi comigo, justamente comigo, que nada fiz por essas tristes vidas. Embora tarde fosse o tempo, queria agora ser um angorá e ter passado a noite com aquelas crianças brincando e se deixando brincar. Meia-noite e essa vontade de chorar.

Mendes Júnior.
* Photo by Lourdes Grobet, "Blue Demon".

14 setembro, 2007

Visita ao poeta


14/09/2007.

Ao José Alcides Pinto

Ontem visitei um poeta, mas não um poeta menor, como deixou em testamento Bandeira, que tampouco precisava pedir perdão por isto – vaidade? claro que não: nele habitava a estrela da vida inteira –, nem há que se admitir tão-somente o fogo das constelações e seu risco brevíssimo, pois era belo belo belo e poeta assim não precisa se ir pra Pasárgada, embora não tenhamos a dádiva de transmutar o destino alheio e, certamente, estará lá, com ou sem mesuras, estendido numa cama simples acompanhado de uma doce prostituta, as duas escolhidas como se nunca as tivesse possuído, zombando de nós (invejosos) mas de maneira saudável. Como lhes falava, ontem visitei um poeta, e é gostoso ouvir a poesia brotando do próprio cotidiano, da existência da fala sem a camisola de escritor, das coisas comuns a quaisquer comuns como nós, gente que ri do óbvio e pensa ser louco o mais ajuizado dos homens, pois, não debulhem o abacaxi, somos (todos) uma cambada de neuróticos, me dizia Freud na “Interpretação dos Sonhos”, que de pronto aceitei sem questionamentos. Chamou-me poeta e quis saber de mim se eu rabiscava alguma coisa ou se algum dia da minha luta havia escrito um poema qualquer ou se já olhara uma página vazia como para uma mulher a ser explorada com a delicadeza de virgem, com lápis em punho, mas não, poeta, quem sou eu para transformar angústia em poesia, senão um reles contínuo que adora uma sacanagenzinha? Vim em sua morada, com o respeito necessário, pedir-lhe humildemente que assine essa edição, pois é aniversário de uma namoradinha e ela adora suas histórias – passa o tempo inteiro com o volume debaixo do braço, pra cima e pra baixo – e gostaria de fazer uma surpresa. Ofereceu-me um pouco de refrigerante e me advertiu de que não o chamasse de senhor, por hipótese alguma, apenas de poeta. Vou aceitar um copo, obrigado, poeta. Nunca havia estado próximo de alguém que eu considerava tão importante, por isso demorei um pouco para dominar a bebida na minha mão, que tremia de respeito. Não havia mais ninguém na modesta casa, que ficava no final de uma vila no centro, e nas molduras coladas às paredes descascadas da sala apenas recortes antigos de jornais com imagens de um escritor quando jovem. Veio-me novamente Bandeira: “Não tive um filho de meu./Um filho!...Não foi de jeito.../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu”, e isto ficou soando falso tão logo adentrou pela estreita porta de madeira uma de suas filhas, disse-me. Seu nome confesso não lembrar, mas há relação com algum país – acontece que não sou bom com identidades nem com datas. Pegou uma caneta de tinta preta sem tampa e virou cuidadosamente a capa do livro. Via-se uma mão frágil, que denotava muita idade, da qual eu era sabedor, mas passei a duvidar a partir de então: lucidamente me contava histórias e mais histórias de pessoas que eu não conhecia, o que não me impedia de enxergar a riqueza dos detalhes e de sorrir quando engraçado; havia satisfação no relato, denunciando um leve apreço por visitas. Mas me esclareceu: poeta não sofre de solidão, ele tem a poesia e isto é o bastante. Pediu-me licença para apagar o fogo e, a passos lentos, arrastando com os pés um chinelo de borracha, dirigiu-se à cozinha. Não entendia por que eu fazia associação entre Bandeira e ele, entretanto, durante o minuto que durou para voltar à sala, cantei baixinho: “O dia vem, e dia adentro/Continuo a possuir o segredo grande da noite”, mas por quê?, talvez por achar que aquele homem, à minha frente, apenas queria a delícia de poder sentir as coisas mais simples da vida e para todo o resto oferecia sua intensa arte. Perguntou-me a quem deveria ser dedica a homenagem. Enquanto escrevia o nome de minha amada, conclui que ele não carecia de nada mais, pois, assim como poucos, já nascera poeta. Agradeci pela gentileza e me despedi prometendo voltar um dia. Passar bem!
Mendes Júnior
* Photo by Peter Rodger, "New Orleans, 1997";
** Publicado na Revista Cronópios, em 02/06/2008;
*** Publicado no Jornal do Leitor, Jornal O POVO, em 14/06/2008.

03 setembro, 2007

Manual de sobrevivência no centro da cidade


26/04/2006.


Às vezes, para nos sentirmos (mais) humanos, necessitamos de uma viagem ao centro da cidade. Seja de uma qualquer, todos são praticamente iguais. É importante, desde já, fazer o alerta no que se refere à classe social: não há diferenças sociais no centro da cidade. Pouco importa se sua locomoção dar-se-á por meio de um automóvel do ano ou de uma condução coletiva, pois você irá desbravar ruas e ruas a pé. É isto mesmo: a pé! Uma observação entre uma coisa e outra: a dificuldade de achar um bom estacionamento para o carro. Entenda como o bom local para parar seu veículo um lugar seguro, com atentos vigilantes e que não tenha de pagar uma tarifa antecipadamente. Raro, não! Pois bem, melhor seria desembarcar num ponto de ônibus com o ar despreocupado.

É apropriado, antes de sair pela porta de casa, ler a meteorologia no jornal. Nunca se sabe quando vamos ter sol ou um dia nublado com pancadas de chuva. Um esforço extra para achar aquela velha sombrinha vale a segurança. Mesmo que não chova, pode-se perfeitamente proteger o penteado daqueles pingos chatos dos ares-condicionados dos prédios comerciais, enquanto desfrutamos do passeio. Outra dica é parecer que estamos indo a um velório de um amigo do amigo: nada de enfeites, jóias e coisas do tipo. Chega-se ao extremo de aconselhar as mulheres que não levem o salto e a bolsa; quando muito, uma bolsa surrada. O dinheiro segue na meia, desde que esta tenha um firme elástico agarrado à batata da perna. Costuma-se dizer que no centro existe muito malandro para pouco besta. Por fim, uns óculos escuros.

Chegando à praça principal (todo centro tem uma praça para situar seu “coração”), é hora de escolher o que fazer. As opções são diversificadas, mas preferimos citar apenas três: comprar, ir a um banco e deixar metade do ordenado ou perambular, simplesmente perambular. Uma amiga costuma dizer que no centro tudo é mais barato. Cuidado! Muitas vezes o barato sai pelo olho da cara. O bom mesmo é bater pernas, sem compromisso, com a solitária moedinha para um robusto gole d’água. Porém, se você for da ala dos parcialmente consumistas, pouco dinheiro; já se for daqueles que só saem com um robusto cartão de crédito, tenha um pouco mais de juízo do que da última vez. O importante é, independente da razão, não esquecer de observar as pessoas, como são tantas, engraçadas e sérias – não se preocupe com encontrões, pois isto acontece com freqüência – e as antigas construções. O centro é o retrato fiel de uma cidade.

Em determinado instante, você vai se sentir enfadado. Duas horas prorrogáveis por mais meia hora são suficientes. Pode estar certo, esse é o seu limite para tanta poluição visual e sonora. São muitas as propagandas que já deve ter recebido ou ouvido, desde uma promoção de aniversário de alguma loja de eletrodoméstico até uma financeira oferecendo dinheiro sem consultar se sua ficha está no ponto de passar cera de tão limpa. Mas antes de partir, leve para casa uma singela lembrança deste espaço tão democrático que é o centro: uma borracha para panela de pressão. E, se tudo correr bem, siga em paz e assobie feliz, pois você acaba de visitar um lugar onde não há cor, credo, nacionalidade nem partido político. Seja cidadão e ajude a revitalizar o centro de sua cidade.
Mendes Júnior
* Publicado no Jornal Expresso do Norte, em 14/10/2006;
** Photo by Francesc Catalá Roca, "Madrid".