25 janeiro, 2008

Caixa de madeira VII


25/01/2008.


Durante mais de cinco meses o menino apenas recebeu a visita de médicos. Aliás, muitos e muitos médicos. Até de profissionais mais graduados, tanto de Sobral, cidade circunvizinha, quanto da capital. Mas não houve estudo nem compêndio capazes de decifrar aquele mistério da medicina. Enquanto isso, a pobre criatura se definhava num minúsculo quarto de hospital, que ficava encostado da lavanderia, nos fundos do prédio já bastante desgastado pelo passado. Diante do maquinário, que funcionava vinte e quatro horas para deixar brancos os lençóis e as camisolas dos doentes que lá também estavam alojados, a quentura era desumana: as paredes pareciam chapas de ferro superaquecidas. Apenas um ventilador de poucos centímetros fazia de conta aliviar tamanho sofrimento. Além do mais o pouco ar que se respirava era sufocante – o pior possível –, portanto, tinha-se a sensação de que a qualquer instante os pulmões explodiriam. Tudo intragável. Como se não bastasse, sentia-se correr pelas narinas um azedume intenso proveniente da mistura de vômito com fezes e urina. O leito muito se parecia com uma carceragem. As necessidades fisiológicas, contudo, mesmo expostas e convivendo diariamente com o menino e um batalhão de moscas, indicavam não se tratar de um defunto, pois, desde o dia da internação, o menino sequer havia dado uma palavra. Era como se estivesse em um coma estranho, ou seja, semelhante a um ser aleatório, tal qual um boneco, mas um boneco que respirava, porém mal e parcamente. A situação, por assim dizer, era lastimável. Como aquela era uma área de isolamento, tão-somente brechas horizontais na porta de madeira grossa permitiam a entrada da luz natural, e por elas se via uma coisa miúda deitada num pobre colchão ao chão.
Espinosa, o chefe da Enfermaria, (um senhor barrigudo e asqueroso), aproveitou para escalonar os enfermeiros de forma a não chegar perto do menino, que muitos, pelos corredores do hospital, já denominavam de “Peste”. Ou seja, Espinosa, embora responsável pelo setor, foi o primeiro a abandonar o navio, renegando por completo a ética profissional. E, diante da autoridade que lhe era conferida, decidiu que apenas um enfermeiro por vez poderia se aproximar do quarto da “Peste”. A bem da verdade, todo o cuidado era pouco diante de uma doença inclassificável, que pusera uma cidade inteira em alerta, justificava-se Espinosa. A diretoria aprovava a atitude segura de Espinosa. Abria-se, com isso, um poço de vaidade a proporcionar ao Espinosa um incentivo extra, que às vezes tinha forma e cheiro de dinheiro, enquanto noutras era um obrigado e passar bem.
Seria penoso e falso não insinuar que a população mastim e o tacanho sistema de saúde massapeense não estavam preparados para recepcionar tamanho incômodo da natureza, ainda mais se tratando da “Peste”. Colocar num saco de lixo preto e jogar tudo fora era razoável. Tanto é verdade que algumas senhoras carolas, que reunidas formavam a nobreza católica de Massapê, foram permitidas discursar na tribuna da Câmara Municipal e exigir dos representantes do povo a expulsão do menino e da mãe prostituta daquelas imediações. “As coisas não funcionam dessa maneira”, alegou um edil jovem, que prontamente foi tachado de inimigo e comunista pelas velhotas.
“Repilo o nobre colega”, interrompeu o Vereador João Sapateiro, eleito por um descuido na apuração às avessas do pleito, “Esse pedaço de gente mastigado pela fragilidade humana é grande e perigoso como uma arma mortal! Talvez, daqui pouquíssimos dias, - e não se admirem – estejamos todos nós apodrecendo numa cama sarnenta! Coitado da gente, isso sim. É assim que penso e dou meu voto no sentido favorável”, encerrou.
“O respeito que nutro por Vossa Excelência é soberano, no entanto não seria demais lembrar que o ora expediente não está sob votação, mas apenas reluz um clamor da nossa sociedade, o qual nos faz estar aqui de ouvidos atentos”, retrucou o jovem vereador.
Houve um burburinho no plenário e os presentes se embicaram divididos, pois no instante em que se vaiava também se aplaudia. Era a primeira vez que acontecia uma intromissão no cotidiano da câmara. Historicamente, desde a emancipação do município, a pauta nunca sofrera um revertério tão escabroso, com exceção da manhã de há dez anos em que um vereador de oposição tentou assassinar um da situação por divergência de mando num curral eleitoral. Outra mudança era na quantidade de pessoas; não cabia sequer uma agulha naquela “palhoça”.
É claro que as senhoras berraram noites a fio a fim de que o mundo inteiro comparecesse àquela sessão, pelo simples fato de que o interesse era global e, portanto, ninguém poderia ficar de fora – era preciso criar massa na reivindicação, colocar fermento no grito e fazer volume no embate. Isto feito, as senhoras valorosas tentaram demonstrar uma vez mais a força que sempre souberam emanar de cima para baixo – uma obediência cega –, mas que tampouco era unânime, haja vista as palavras bem conduzidas de Nonato Julião, vereador antigo, que professava em seu quinto mandato, e que se encarregou de pôr fim à questão, pelo menos de modo temporário: “Precisamos, precipuamente, descobrir qual a enfermidade da criança, sob pena de estarmos cometendo um grave erro. Nada mais desumano do que escorraçar o irmão de nossa morada: da única morada”. De repente, uma reza às alturas empapuçou a casa do povo: “Oremos, senhores, pela vida de todos!”, clamou a secretária da câmara, que tomava nota num bloco de papel da penúria desarrazoada que se instalara com a divisão dos pares. Um alguém, desobediente na reza, clamou pela decretação de estado de calamidade pública, em alto e bom som.
A viúva não se dignou a ir assistir à sessão. Foi incentivada pelas colegas de meretrício a se defender da leviandade do povaréu chinfrim, mas preferiu ficar empombada na casa de dona Jussara a se aprumar para a íngreme e considerada impossível tarefa. Já era mais do que suficiente se ater com a dor estúpida da saudade, que ora se contemplava no menino, ora se lembrava de Nepomuceno. “Em que paragem andava o maldito Nepomuceno?”, perguntava para si, no banheiro, de frente ao espelho com bordas laranja.
O sol não dava trégua. O calor não erredava. Dos infernos ficava o couro cabeludo e as idéias rareadas se entupiam de ansiedade. Massapê não possuía medidores públicos de temperatura – seria produzir provas contra si, haveria de dizer o rábula bêbado à beira da calçada do Poder Judiciário –, porém estava para mais de quarenta graus, com toda a certeza. Há muito não caia uma gota de água naquele chão e a previsão era de permanecer assim pelos próximos dias. Em outras épocas, sempre no começo do ano, o período era de chuva. As nuvens até ficavam carregadas, formando um manto cinza a cobrir cabeças, mas o destino de agora das gentes de Massapê era de estar diante de um céu escroque. Enquanto os agricultores padeciam à espera de um milagre, na vil expectativa de que aquela escuridão toda se transformasse em temporal, cada vez mais se anunciava uma seca jamais vivida no clarão das pedras do sertão.
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior.

20 janeiro, 2008

Spaghetti alla Dreywys


20/01/2008.


Levemente, com certa delicadeza, corta-se o tomate e a cebola. É bem verdade que os legumes e as frutas têm sentimentos. Não falam, é claro, mas duvido que não respirem. Se não, nada apodrecia. Eles percebem como os tratamos. Pois bem, com a faca em punho desliza-se pelo meio até formar pequenos cubos de cada coisa. Na panela, geralmente pequena, (afinal, trata-se de um almoço a dois), e em fogo baixo, o alho doura imerso no azeite, que deve ser bastante e de boa qualidade. O cheiro que exala e corre por toda a casa parece um perfume a induzir o estômago à fome. Após perceber a mudança na coloração do alho, é necessário juntar o tomate e a cebola à panela, deixando alguns minutos para que eles se entendam e se tornem grandes amigos. Enquanto isso, em ritmo mais afinado, atinge-se igualmente com uma faca as tiras de bacon tirando-lhes as capas sólidas. Na natureza nada se perde e tudo se transforma. A capa mais gordurosa deve ser deixada temporariamente de lado, ou seja, não deve parar na lata do lixo; aliás, coisa algum. É chegado o momento do bacon se juntar ao trio que há muito se desfaz alegremente na panela banhado em azeite. Neste instante, a fim de que o bacon seja bem cozido, aconselha-se usar uma tampa impedindo que a mistura receba o vento do começo da tarde. Sim, por que quem almoça cedo estará sempre fadado ao lanche, e isto é coisa de criança. O vinho tinto já pode ser aberto e devidamente degustado, mas não qualquer: talvez um argentino malbec. Caso opte pelo líquido dos nossos hermanos, outra boa pedida é o disco do Astor Piazzolla com o Gerry Mulligan na vitrola: “Summit” – um lindo casamento musical. E quando tocar Aire de Buenos Aires chame sua dama para uma dança. Tão logo demonstre ser um pé-de-valsa, retorne ao fogão e suspenda de forma razoável a tampa e do alto atire à panela punhados de estragão, de orégano e de pimenta-calabresa. O conjunto harmonioso agora pede passagem para a carne moída. A quantidade fica a critério, assim como a do sal. Enquanto a carne passa pelo processo de cozimento, vá desfolhando o pé de manjericão e acondicionando numa tigela com água, a fim de passar pela limpeza. Na minha modesta opinião, o manjericão deve ser generoso, pois o gosto que ele conduz e apura em qualquer prato é divino. Após determinado tempo, quando a carne estiver inteiramente cozida, junte um decente extrato e uma igualmente decente polpa de tomate a gosto e mexa tudo com uma colher de madeira. Entre um gole e outro do vinho, derrame um pouco da preciosa bebida no molho enquanto ele ainda estiver fervendo: o álcool irá evaporar e o molho permanecerá com um gostinho suave de uva. Além disto, jogue o manjericão e aquelas lascas grossas do bacon – isto ajudará a dar um sabor especial ao molho. Finalmente, para dizimar um pouco a acidez do molho, arremesse uma mancheia de açúcar e deixe mais um tempo a panela em fogo baixo. A partir de agora, deve-se ser atencioso com a massa. Nada de porcaria, mas uma grandiloqüente italiana (de preferência) e número 8. Na outra panela mais e mais azeite. O sal fica novamente a gosto. O vinho já estará pela metade, o suficiente para se esbaldar com a massa, pois esta não deve demorar muito no calor da água – é um crime não deixar o spaguetti – no caso – al dente. Depois de tudo nos conformes, quando o spaghetti já estiver encharcado de molho à sua frente, sacuda o provolone ralado e faça do seu prato uma menção às Cordilheiras dos Andes. Sirva ainda quente. Ah! E me disse um grande amigo quase italiano que usar colher para rodopiar o spaghetti é mui cafona naquelas plagas. Como última sugestão, não incitamos o excesso, pois tudo na vida pesa.
Mendes Júnior
* Photo by Luana Lima.

Pelas lentes da literatura


20/01/2008.


De nada adiantava tentar entender. As ladeiras evocavam suas lembranças de quando vivia em Belo Horizonte na companhia de magos da literatura. Não gosto da palavra mago – lembra-me Paulo. Ela nos disse que fazia sempre um frio gostoso e preguiçoso em Belo Horizonte; mesmo no verão o tempo era criterioso com todos. Complacente, eis a verdade e o que queria realmente expressar. Tudo passava muito rápido, pensou Joselane com uma maçã na boca e a respiração ofegante de quem ainda não largara o vício do cigarro. Rodaríamos um curta-metragem para um concurso cinematográfico a ocorrer dali a dois meses em Roliúde, no sertão nordestino. Joselane foi eleita diretora simplesmente por ter conseguido arrecadar a maior parte da verba para a realização do projeto, fato este que deixou enciumado um cubano – que até então não tinha visto mais magro, chamado Alberto –, que acabou responsável pela fotografia, embora fosse bastante conhecido como roteirista. A bem da verdade, Joselane queria ser escritora e, assim como o farmacêutico que não consegue ser médico por incompetência, acabou terminando um curso relâmpago de cinema e abandonando as letras. Muitos aprovaram a segunda decisão. Esse era seu primeiro trabalho com a câmera e nos dissera em muitas reuniões que iria introduzir na história toda a sua verve literária, e mais ainda: os ensinamentos dos tais magos da literatura. Mas qual história? – quis saber o alemão responsável pela maquiagem, por meio de um português atravessado. – Silêncio! – foi sua resposta sem sombra. Imaginei, não obstante estarmos in loco, o nó cego dado na cabeça do casal de atores, bem como da figurinista, que nada tinha de concreto senão o desejo de ir embora com o seu mau hálito. Havia uma outra particularidade: Joselane adorava o preto e o branco, portanto, nada de cores. As vozes ainda deveriam ser discretas, inteligentes, engraçadas e sarcásticas, e não era oportuno qualquer diálogo, ou seja, o curta estava fadado ao público cult, o que representava, desde já, que todo o esforço despendido pela equipe e a dinheirama gasta não seriam de forma alguma recompensados. Qual o sentido da trabalheira? – indaguei, pensando se tratar de uma boa pergunta, mas logo vi a face de Joselane ficar encarnada de raiva e senti medo. Também preferia não ter permanecido para escutar a resposta: “O cinema nacional! Nós somos responsáveis pelo cinema nacional!” – respondeu, acendendo outro cigarro. Particularmente, não me sentia responsável por bulhufas, ao contrário, era tão-somente o iluminador, de nome Michel, que passaria um tempão segurando uma droga de barra de ferro. Joselane – vim saber muito depois – era mineira nascida da união de um austríaco fugitivo político com uma mexicana suada e fedorenta, e somente o escrivão de Congonhas sabia o porquê do nome Joselane. Éramos onze indivíduos no alto de uma colina “marrom” tentando cavar um orifício nas idéias de uma mulher incompreensível, doida de pedra, a fim de transformar aquela loucura num filme, não para concorrer devidamente a um prêmio – isto já sabíamos –, mas para realizar quem sabe sua orgia pessoal. Éramos seus fantoches e, em assim sendo, nos sentíamos órfãos e cada vez menos seguros. Mas alguém resolveu, acertadamente, colocar a direção na parede de fuzilamento, pois somente desta maneira sairíamos incólumes daquela aventura ficcional. – Então, afinal, qual o teor da história? – questionou o franzino ator, que não tinha estereótipo de galã. – A saída para o cinema está imersa na literatura e é assim que se costura a própria vida: na literatura. Os magos ensinam que apenas as palavras podem salvar o mundo do desterro que ora assola a todos – falou compassadamente Joselane, que pediu para que o casal de atores retirasse suas vestes. – O quê? A fala de Joselane atingiu em cheio a mocinha que faria par com o rapaz franzino. – Sim! Nus e juntos vocês irão recitar poemas de Baudelaire e salvar o cinema nacional. Vejam a oportunidade. Vamos à primeira tomada. Façam de conta que isto é um altar e se atirem aos pés da poesia.
Mendes Júnior
* Photo by André Adeodato.

19 janeiro, 2008

Notas de Jornal


Jornal Diário do Nordeste, 19/01/2008.

"Livro de estreante

Antônio Mendes Carneiro Junior me envia seu livro de estréia ´O Engraxate e outros contos´, que será lançado dia 13, na Oboé, e que vem a lume muito bem recomendado".

17 janeiro, 2008

Indicações Musicoliterárias

Freddie Hubbard


Há momentos na vida em que nos sentimos livres de todas as dores; como se aquele velho peso desse uma trégua ou mesmo exorcizasse; as roupas ficam mais finas e os cabelos voam com menos cerimônia; as pessoas parecem sorrir mais e melhor; e a música corre acalorada pelas veias. Pois bem, para mim, esse momento é quinta-feira, ou seja, hoje. E, para tal, coloquei na vitrola mais uma vez o mágico Freddie Hubbard: "The Artist Selects", disco este que apresenta uma maravilhosa proposta. Não é exagero - antes que digam algo - indicar Hubbard duas vezes, (posto que já o fiz em outra oportunidade), mas faço assim de forma acertada. Como o próprio título sugere, há uma reunião de pérolas de Hubbard, tais como Breaking Point, Birdlike, Crisis (escrita "during the Cuban missile crisis") e Up Jumped Spring. Algumas gravações têm datas distintas, mas a qualidade é uma só: Blue Note, ou seja, perfeita. A turma é composta por grandalhões do jazz: Art Blakey, Herbie Hancock, Joe Henderson e Elvin Jones. A declaração de Hubbard que abre o encarte é bem interessante: "You know who was my idol when I was growing up? Chet Baker. He played so pretty - I used to buy his music books and play along with him".
Esteja dito.
Mendes Júnior

10 janeiro, 2008

A separação


10/01/2008

“Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo”
(Chico Buarque)


O cão morreu de desgosto. Isto por ter patas de elefante. Qual a serventia para um cão vira-lata ter patas tão grandes, senão para espinafrar o dono e vice-versa? Uma lástima de criatura amassada, sem lei e sem medida, que se encorajou pelas bandas da capital de um território qualquer deixando para trás o diabo do cão a morrer de solidão. Nem com pisada delgada se entra em casa de joão-de-barro, quanto mais engolir osso duro de roer, tal e qual uma forquilha bem entrevada. Ainda assim ficou à porta durante um bocado de tempo esperando que o velho se guiasse pelo caminho de volta, mas ele não se deu por conta e se aboletou na caçamba de um caminhão fuçado enquanto o animal gemia feio olhando de lado e roçando o nariz à altura do peito pelado. Ficou ao pau da mesa uma tigela verde de plástico apinhada de fubá com leite, para inchar a barriga barrenta e resolver um dia e meio o desjejum do canino, e uma lata com água salobra vinda da poça de lama que ficava à sombra de uma pedra lascada. Até aquele instante, os dois, o velho e o cão, como pai e filho, marido e mulher, dividiam a pequena morada de alvenaria no distrito da Estrela de Epsilon, na parte de baixo da serra roseta: no Cruzeiro do Sul. O velho passou bem uns vinte dias na cadeira de macarrão se balançando e fitando o bicho: levo, não levo, levo, não levo... nem havia como, concluiu baforando o cigarro de palha – em cidade grande e avexada um animal vazio e maricas como aquele seria atropelado até por uma formiga ao virar a primeira esquina, além do mais com uns pezões como os que carregava levaria um povaréu inteiro a correr de assustado – uma coisa horrível, uma aberração, um estropício – só atrapalharia quem queria ganhar novos ares de vida (uma ponta no sapato cansado). Provavelmente seria sacrificado. Antes ele do que um desconhecido. O velho, do alto do caminhão, se despediu dele com um breve abrir de boca, que aproveitou para cuspir uma gosma preta de fumo mastigado. O cão pensou que o motivo da separação era suas patas de elefante – sentia-se envergonhado – e se matou não tendo mais para quem latir.
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior

09 janeiro, 2008

Era melhor não ter perguntado nada


Ele vinha apressado, suado, em uma completa exaustão. Calor, fazia muito calor. O sol, nesse dia, era mais do que sol; estava abafado a ponto de esquentar a cabeça e confundir as idéias. Era um final de tarde de uma sexta-feira, uma boa ocasião para tirar o enfado em um estúpido copo de cerveja. Começo de fim-de-semana; tempo variando entre escaldante e mormacento; a sensação brasileira do dever cumprido. Tudo propício.
Com passadas largas, a distância ia diminuindo gradativamente. Aliás, sua ligeireza estendia-se ao juízo, pois, não agüentando o desperdício de um segundo sequer daquele precioso tempo, o seu objetivo precípuo era chegar e , a partir daí, beber e tirar totalmente a velha camisa de pano ruim, um tanto desbotada, que já vinha sendo desabotoada desde quando, subitamente, ultrapassou o enorme vestíbulo da repartição pública, depois de ter, praticamente, escorregado pela imponente escadaria. Assim, foi descobrindo que a liberdade era um direito eminente na Constituição Federal Brasileira.
Nas ruas de Walbéria, o movimento começava a ter um maior aguçamento àquela hora, em que carros e pedestres desfilavam de forma irregular e bestial. Pelo menos, assim pensava. Todos atrapalhavam a sua marcha pertinente em caminho e desenho. Mas, claro, seria o desejo de também chegar; aliás, todos queriam chegar a algum lugar. E ele, mais do que ninguém.
Freneticamente, ao passar por lojas, notava que os letreiros das vitrinas eram como os mosquitos que o perturbavam durante toda a noite em seu humilde lar: imperceptíveis e de ínfima alusão. Mas, repentinamente, um deles despertou sua já empoeirada curiosidade, pois ele, meus senhores, era um funcionário público. Na verdade, um autêntico funcionário público.
- Truísmo! - ele leu e , como se era de esperar, não entendeu nada.
Parou; olhou novamente; coçou a cabeça.
- Isso não faz sentido algum, um absurdo.
Certamente, o absurdo maior era o dele de ter achado um absurdo. Não tinha a menor idéia do que aquilo significaria aqui ou na China.
Como ficava na fachada de uma loja da extrema direita da outra calçada, tentou se aproximar a fim de que aquela insanidade fosse resolvida. Mas, para sua glória, tudo se encontrava no mais absoluto abandono, só escombros, o que lhe deu uma maior margem de certeza da falta de significado para essa palavra, que, talvez, não constasse nem na Enciclopédia da repartição. Era mesmo um tapado.
Dali a pouco, conseguira, enfim, chegar aonde tanto queria: Bar do Charuto. Era um lugar de muita sujeira que mais parecia uma mercearia, daquelas em que se cospe no chão. Total desprezo por parte do dono, em termos de asseio, que deu este nome ao estabelecimento porque morou um tempo em Cuba e voltou com uma mania de fumar charuto, nada mais justo. O ambiente não era lá dos mais familiares, onde se pudesse ir acompanhado de alguém que se respeitasse. Na verdade, moscas de todas as espécies; bêbados à beira do balcão de madeira desgastado pelo uso; sacas de cereais espalhadas pelos quatro cantos; e muito barulho.
Ele gostava de ir a esse lugar na sexta-feira porque era o dia do encontro dos pseudo-intelectuais. Digníssimos senhores reuniam-se em uma mesa a fim de discutir as questões atuais do país; todos moradores das redondezas que não tinham o que fazer em casa e iam dar provas de total babaquice em público. Nosso, não menos digníssimo, funcionário público achava bonita a maneira como eles se expressavam, o palavreado difícil, nada mais que isto.
Porém, como quem não quisesse nada, dirigiu-se à mesa dos nobres cidadãos e despachou:
- Algum de vocês sabe o que quer dizer Truísmo? - estampando um sorriso malicioso na face como se estivesse querendo testar todos.
Entreolharam-se nervosos, com sorrisos maliciosos, por acharem, aparentemente, uma piada, mas era sério. Eles não entenderam bem o motivo do questionamento, mas escutaram de forma clara cada letra da pequena palavra. Triste. Aquilo não era apenas uma reunião semanal para colocar os assuntos em dia; saibam, era um encontro de intelectuais e, assim se considerando, não poderiam ser derrotados por uma simples dúvida.
Ficou claro o constrangimento; pairou no ar a decepção de todos os quais sentavam àquela mesa. Talvez, melhor seria não estar por ali naquele momento, embora pudessem contra-atacar:
- Meus caríssimos colegas, trata-se de uma questão fenomenológica, onde há uma relação entre o ser e o seu interior, ou seja, nada mais é do que o ser enquanto ser - disse um deles.
- Será que esse simplório termo não estaria abordando o caráter associativo entre duas coisas? - rebateu o outro.
Estava bastante lúcido o fato de que o que eles queriam era prolongar a discussão, ou debate, até que alguém manifestasse uma opinião mais acertada. Mas a delicadeza e a sutileza da situação tomavam rumos diferentes. Ninguém conseguia estabelecer uma linha de raciocínio, complicando totalmente a inteligência e cortando ao meio a felicidade dos “conferencistas”.
- É um sinônimo para assegurar o real significado vivido por um determinado episódio - disse o da ponta, causando risos no outro que, com um cigarro à boca e em meio à fumaceira, considerava-se o mais sábio de todos por causa de suas viagens pelo mundo; viagens estas feitas com o dinheiro do povo, já que se sabia de seus negócios escusos com um órgão do Governo Federal.
Alguns se levantaram a fim de tecer comentários de forma mais instigante, mas não adiantava, pareciam incapazes.
Desmoralização ou falta de conhecimento? O fato é que uma palavra como essa, à primeira vista, tola, poderia causar o linchamento moral e até o rompimento do grupo, pois começavam a chamar a atenção das pessoas que estavam espalhadas pelas demais mesas do bar e, como se não bastasse, queriam também opinar.
- É um animal!
- Significa o amor entre dois animais antes do coito.
- É a aparição do diabo nesse novo milênio, em que criancinhas, depois desse dia, irão nascer sem cabeça.
Impensável! Eles eram um grupo fechado e ninguém poderia se meter nos assuntos de que tratavam, mas a situação estava fora de controle. Foi um erro aceitar uma dúvida de um sujeito sem a menor expressão. Era uma vergonha; o fim.
Até o fumador de charuto dono do bar, que não tinha o primeiro grau completo, sentiu excitação para também participar e saiu-se com essa:
- Gente, não será alguma comida do estrangeiro?
- Ha, ha, ha! - risos.
O tapado, causador da discórdia, permanecia calado esperando a sua hora de vomitar palavras desconexas. Esperou, esperou, até que...
- Quando me deparei com tal palavra, prontamente me veio à cabeça que a mesma não tinha significado. Estou certo disto.
A confusão foi formada. Inexistia entendimento, todos falavam ao mesmo tempo. Na verdade, gritavam. E, com isso, os goles de cerveja faziam-se mais constantes, o que levava o fumador de charuto dono do bar a uma satisfação que se estendia ao bolso.
Porém, existia uma única pessoa dentro daquele antro de “pura harmonia” que ainda não havia se dado conta daquilo que se passava. Aliás, mantinha-se com o pensamento longe da realidade. Se alguém estiver se perguntando se isto é possível, eu diria que não, mas, meus senhores, só estúpidos levariam por tanto tempo uma pergunta como a que foi feita.
Era um padre, com batina e todos os outros adereços, quem bebia goles homéricos de conhaque sentado a uma mesa de fundo. Absorto por completo, tinha o olhar fixo em uma gaiola pendurada por um fio que vinha do telhado. Dentro da gaiola, um canário belga de um amarelo bem forte. Assustado, o pássaro tinha rapidez em suas ações. Mas, nem assim, a atenção do padre de batina bebedor de conhaque foi desviada. Estava cheio de compenetração e de álcool na corrente sangüínea.
Alguns já tinham se aboletado sem esperança de que se conseguisse resolver o embate; outros, persistentes, pediam mais um trago sem menção de arredar o pé.
- Já sei! - gritou um sujeito que usava uma camisa do América carioca. - Já sei! Essa expressão significa estar meio a esmo, ou seja, quer dizer o “don’t mind” do inglês; é não estar nem aí.
Mas poucos gostaram dessa explicação. E um outro sujeito, que se dizia professor de inglês, tentou corrigir a pronúncia do “don’t mind” sem êxito, já que os ânimos estavam espelhados em outros resultados.
Cansados, humilhados, destratados, expurgados e outros “ados”, os pseudo-intelectuais davam-se por vencidos. Aqueles que estavam de passagem não mais falavam, pois percebiam a desilusão em cada olhar; faces abatidas. O dia era mesmo negro. Não se tinha saída, era conviver com essa decepção pelo resto da vida e das idéias.
- Que diabos é Truísmo? - falou um mais excedido pelo álcool.
Nesse momento, passava por esse pobre coitado, que Deus o guarde, o padre de batina bebedor de conhaque, que tinha se levantado para pendurar mais um vale no Bar do Charuto e ir com o seu olhar misterioso. Porém, não podia deixar de ouvir àquela interrogação tão trôpega que fora feita em seu alcance. Fez o seu rabisco num pedaço de papel-madeira e, quando ia saindo, disse:
- Mas isso que você está querendo saber é tão evidente que não precisa de explicação - falou alto e compassado.
E foi indo lentamente, ensaiando uma melodia em seu assobiar desarmonizado.
Burburinho!
Silêncio!
Desde esse fatídico dia, meus senhores, não se tem notícia de nenhum outro encontro feito pelos pseudo-intelectuais.
Mendes Júnior
* Conto selecionado no V Prêmio Ideal Clube de Literatura;
** Photo by Mendes Júnior.