30 agosto, 2007

Questões sociais e de conhecimento no pensamento positivo

Auguste Comte
ARTIGO, 29/08/2007.

Analisando o trabalho Há uma ordem imutável na natureza e o conhecimento a reflete: Auguste Comte (1798-1857), de Maria Amália Anderly, encontramos uma interessante abordagem sobre a teoria criada pelo francês Auguste Comte, no caso, o Positivismo, especificamente tendo por base sua obra maior: “Discurso sobre o Espírito Positivo”, donde podemos, a priori, nos questionar sobre as leis do universo e da sociedade como sendo imutáveis. Obviamente, tal assertiva foi (bem) aceita no século XIX, o que não podemos afirmar para a contemporaneidade. Como exemplo, registra-se que a idéia de ordem e progresso teve grande valor por ocasião da construção de nossa República, inclusive servindo como lema na bandeira pátria.

Antes de adentrarmos no mérito da questão, ressaltamos que a base do pensamento positivista foi sustentada em meio aos conflitos políticos vividos pela França durante o século XIX. A idéia de Comte era de que permanecesse o poder na mão da burguesia, pois, com isso, defendia a “simples” manutenção deste poder, já que desta maneira aquele vigente seria fortalecido e evitaria ameaças revolucionárias e, conseqüentemente, ter-se-ia um Estado sedimentado. Além do ideário político, Comte cria “visões” científicas – a sociologia – e funda uma religião social, “como base de uma pretensa reforma social” [1], o que claramente é apontado por alguns como contradição no posicionamento, embora fosse relativamente entendido que a reforma social era conseqüência da ciência que estava criando.

De acordo com leitura do “Discurso sobre o Espírito Positivo”, o termo positivo dá a noção de conflito entre o útil e o ocioso, a certeza e a indecisão, o preciso e o vago – que não se confunde com certeza nem indecisão – e o emprego da palavra “positivo” contrário ao de “negativa”, enfim, consiste na substituição do absoluto pelo relativo. A bem da verdade, considerava que o Positivismo era justamente o desenvolvimento do pensamento humano, no que chamou de lei dos três estados: estado teológico, como início da inteligência do homem; o estado metafísico, uma mudança em relação ao primeiro estado; e, por fim, o positivo, no qual se percebe a impossibilidade do absoluto, buscado o ser humano priorizar o “raciocínio” e a “observação”. Tais estados são decorrentes de uma evolução histórica, que se pode pensar como evolução – um desenvolvimento de espírito e conhecimento. Assim considerado, a evolução é contínua e linear, ou seja, segue sem rupturas, como também Comte pensou para o caso da história, que seria “um conjunto de fases imóveis em si mesmas, que num contínuo se substituem umas às outras, de forma que cada estágio é superior ao anterior”[1]. Seguindo o raciocínio, chega-se ao estado superior em que há o crescimento do espírito, que, por sua vez, torna-se positivo. Comte entende que essa ordem constitui a condição fundamental do progresso.

Aqui, então, surge a concepção de ordem que Comte determinou como uma transformação ordenada em que não é possível mudanças violentas e, portanto, permanece “num contínuo”, bem como a idéia de progresso, que leva a um melhoramento linear. Assim, tem-se um avanço (progresso) em linha reta e uma ordem preestabelecida permitindo o desenvolvimento do espírito e o pensamento, de acordo com leis já estabelecidas. Comte nos diz que ordem e progresso são inseparáveis.

Outra concepção da teoria positivista é de que é considerado conhecimento real apenas aquilo que pode ser observado, senão vejamos:

“(...) Seja qual for, porém, o modo, racional ou experimental, de proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica” [2]

Para Comte, os fatos são acumulados pela observação, que é submetida à imaginação, que permite fazer a relação entre eles, estabelecendo leis gerais e invariáveis. Entende-se que o pensamento científico é baseado na observação desses fatos e nessas relações, que são determinadas pelo raciocínio. Para o conhecimento científico positivo não é possível hipóteses, mas a certeza e a precisão; não admite dúvidas, indeterminações ou especulações. No entanto, Comte também aceita que o conhecimento possa ser relativo, já que o homem somente o alcança diante de sua condição, ou seja, a transformação e a incorporação fazem com que o homem utilize o conhecimento de forma mais ampla e com mais fatos, mas nem tudo pode ser observado por ele. Uma coisa, no entanto, Comte deixa muito claro: não é admitida qualquer indeterminação e/ou acaso nos fenômenos da natureza.

Comte também estabelece uma distinção de ciências em abstratas e concretas: as ciências abstratas têm por objeto a descoberta de leis que regem diversas classes de fenômenos, enquanto que as concretas “consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes” [2]; as outras ciências são consideradas secundárias. Comte divide as ciências abstratas e concretas em astronomia, física, química, filosofia e física social, as quais devem utilizar método único, o que não significa que elas devam se submeter aos mesmos procedimentos de investigação, mas se refere à aplicação da filosofia positiva a todos os ramos do conhecimento. De acordo com Maria Amália Anderly, “a garantia de uma unidade do método a todas as ciências está associada ao que Comte talvez considere seu grande empreendimento: a criação de uma física social, ou uma sociologia”.

Com a teoria positivista, entende-se que qualquer subordinação ao poder, certamente, corrompe a ordem preestabelecida, sem contar que induz a falsa noção de haver diferentes grupos sociais com interesses opostos e insolúveis. Portanto, é necessária uma ordem para que as instituições permaneçam fortes, daí programa social de Comte, que se baseava em dois pilares: educação universal e trabalho para todos. As idéias de Comte eram coerentes no sentido de evolução, desenvolvimento e transformação de espírito, a fim de refletir de forma positiva nas idéias e na moral.

Então, voltamos à religião criada por Comte: a religião da humanidade, a qual dizia que deveria ser trabalhada a vida moral e não a material – permitir reformas necessárias ao progresso do espírito positivo. Comte, através do Positivismo, consegue a coerência ao combinar ciência e religião.

[1]. Há uma ordem imutável na natureza e o conhecimento a reflete: Auguste Comte (1798-1857), de Maria Amália Anderly;
[2]. COMTE, Auguste. Discurso sobre o Espírito Positivo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

Mendes Júnior.

28 agosto, 2007

Num dia chuvoso


2007.


Ontem conheci um homem. Estava chovendo. Não sei por que sempre quando chove conheço uma pessoa. Outro dia, protegendo-me dos pingos d’água debaixo de uma marquise, conheci um mendigo. Conversamos sobre muitas coisas, mas o que mais me impressionou foi sua facilidade em tratar de política financeira, coisa de que nada entendo. Começou falando de um negócio de taxa de juros, câmbio flutuante e inflação. Fiquei só balançando a cabeça e a única vez em que ele fez o mesmo foi quando eu disse que a inflação estava menor do que à época dos fiscais do Sarney.

Pois bem, conheci mais um homem: muito sério para o meu gosto – sou mais do tipo sorridente, brincalhão e despojado. Ele estava todo engomado, dentro de uma camisa de tecido bom, e calçava um pisante lustroso nos pés pequenos. Acho que o cabelo lambido era proveniente de uma boa mão de gel – não parecia apenas molhado. Sou mesmo muito dada, fui bater do lado dele no sofá da sala de espera. Senti sua loção de barbear: um cheiro forte de eucalipto. Sua boca carnuda me pareceu instigante. Todos que têm bocas carnudas também exibem línguas poderosas, de fazer arrepiar inclusive aquele fio incrustado na pele bem-coberta. Este homem não poderia ser diferente. Não era mesmo. Vi que folheava uma revista de fofoca. Sou mesmo uma safada, puxei bem devagar a ponta da saia para que minhas pernas ficassem mais visíveis. Problema: o danado sequer tirou a vista da porcaria da revista.

Vou à luta. Depois de uns pigarros, comentei algo a respeito do frio que fazia lá fora e do meu desleixo por sair de casa com um vestuário tão inadequado. Ele sussurrou algo e foi a deixa para que eu perguntasse seu nome. Constantini – respondeu. Pareceu-me italiano, mas logo esclareceu ser argentino e que ainda criança foi descarregado na cidade de Porto Alegre, aos cuidados de uma família brasileira. A razão para tanto sofrimento seria a separação – Não estava preparado. Por que, então? Os pais eram comunistas e, devido ao caos instalado em “mi Buenos Aires querido”, resolveram rifar a cria alegando segurança. O homem não parava de falar e de se lamentar; começou a chorar. Tive vontade de pegar Constantini no colo, mas mal o conhecia; fiquei receosa de que não aprovasse minha atitude. Sou mesmo descolada, perguntei se ele vez ou outra bebia – uma forma de falar a respeito de assuntos mais simples. Disse-me que vinho, mas não os argentinos – que tinha pavor –, os chilenos e os portugueses, estes, sim, eram vinhos de verdade. E música, gosta de agito? O homem era adepto do tango. Carlos Gardel – disse-me. Completou se vangloriando por Carlos Gardel – que eu nunca o soube mais gordo – ter nascido francês.

Sou mesmo corajosa, perguntei se ele era casado. Ele ficou um pouco pensativo, olhou para o lado obliquamente, até que me disse que era divorciado; a mulher foi embora com um professor de português. Lá se foi o homem de novo chorando. Não tenho sorte com este tipo de homem, mas me deu pena e vou à luta mesmo: depois daqui bem que podíamos dar um pulinho lá em casa, moro aqui perto, o que acha? Ele topou sem titubear. Só então notou as minhas pernas roliças. Sou meio gordinha, mas quem não é? O homem quis acender um cigarro, mas a recepcionista do consultório o impediu com o dedo balançando propositadamente. Pela hora marcada, ele seria atendido antes de mim. Se ele já estava com o chororó frouxo aqui, o que fará quando sentar de frente ao doutor Pascoal e começar a relatar como andou a vida desde a última sessão. O meu problema era outro: queria muito acabar com o lance de me prostituir, mas não conseguia – nem era mais por dinheiro, era vício. Regularmente, a cada trinta dias, vou ao psiquiatra para tomar jeito. Esta foi minha quinta sessão e, ao sair com aquele ar de alívio, encontrei do lado de fora da clínica o Constantini fumando um cigarro. A chuva aplacara.

Mendes Júnior
* Publicado no Jornal O POVO, em 09/09/2007;
** Photo by Miro Svolik, "My Wife".

27 agosto, 2007

Caixa de madeira V


27/08/2007.


A viúva e o filho estavam vivendo numa casa de tolerância. Não houve outro jeito – o único bem da viúva, além do próprio menino, que queria sempre por perto, era o corpo, que dava para o gasto, sim, e a freguesia gostou da aquisição de dona Jussara, que era responsável pelas menininhas de Massapê. A fome é diabo que tem pressa e a viúva até arranjou um apelido artístico: Valquíria Callas. Mesmo sabendo de quem se trata o último nome, não podemos afirmar se ela conhecia ou não a história de Callas. No entanto, com nome ou sem nome, a viúva começou a se deitar com os machos da cidade e em pouco tempo já tinha rodado por pelo menos metade da frota. Era ruim o apurado e tinham os asquerosos. Chegou a fazer duas exigências antes de começar o serviço: nada de mulheres nem homens que gostam de bater – isto não topava -, aceitas por dona Jussara. Se fosse possível entrar na alma da viúva, talvez descobríssemos se ainda havia no peito saudades de Nepomuceno, que estava longe há muito tempo e que ela tinha certeza estar aprontando maluquices por aí. Coitado do menino – pensava a viúva – tão miúdo e já nessa dificuldade. Ao menino tudo era estranho e diferente donde vinha. Andou reclamando da fome algumas vezes, mas nada que torrasse a paciência da mãe – acostumara-se a passar horas sem nada comer.

O parque de diversões ainda estava em Massapê, e todo dia, no comecinho da noite, o menino se sentava num banco da praça para encarar a roda girando com suas luzes coloridas. A viúva prometera levá-lo ao parque assim que houvesse condições mínimas, mas ele não era apressado, contentava-se em apenas admirar a roda-gigante; também nunca se imaginara dentro dela, balançando na máquina mágica, como gostava de repetir à mãe. Mas a viúva ainda não terminara de pagar as dívidas que havia contraído para poder sustentar até ali os dois, e só conseguia na pele de Valquíria Callas. Embora a criaturinha soubesse de que forma a viúva ganhava a vida, sempre ficava ausente da casa durante o expediente, a fim de não encarar a mãe trabalhando; foi bastante para o menino vê-la com Nepomuceno nas costas do pai. Tudo bem que fosse afinado com Nepomuceno, mas seria exagero assistir ao adultério, assim como ficar num local onde homens e mulheres cediam aos prazeres carnais acompanhados pelo álcool e fumo, incluindo a própria mãe, seria sobremaneira um absurdo. Não conseguia esquecer uma briga entre dois homens por Cecília, uma fêmea jeitosa do Pará, em que tiros foram disparados.

Dona Jussara era uma má pessoa: acolheu a viúva e o filho no prostíbulo, desde que ela se vendesse e que, a cada deitada, metade do apurado fosse da casa e dez por cento para pagar a alimentação dos dois. Triste, pois lhe restava muito pouco, levando-se em consideração que também retribuíam conforme aquilo que julgavam valer: se fosse um bom sexo, bem; no caso de não ter sido, sequer desembolsavam um trocado. Isto valia para as noites com clientes. Se não aparecesse qualquer tarado, ficaria registrada a dívida para com dona Jussara, que já ia razoável. Nos primeiros dias a viúva chorou em demasia, tanto pela vergonha quanto pela dor causada pela introdução de membros desconhecidos. E havia o menino que passou a falar pouco e a emagrecer de repente. Numa das manhãs vomitou sangue bem na mesa do café, fato que deixou dona Jussara irritadíssima e por pouco não punha os dois porta afora, o que representaria mais uma calamidade na vida da viúva, que abandonara o marido para viver como uma praga na terra dos outros. Acharam que o menino estava com algum verme, pois volta e meia encontravam-no brincando com barro e certamente devia ter colocado a mão suja na boca – era isto que indicavam os sintomas. Deram-lhe uns laxantes e foram dois dias sem sair de perto do vaso sanitário; o menino ficou ainda mais magricela.

Do dia em que partiram rumo a Massapê, já havia se passado dois meses e meio e nada de Nepomuceno chegar. Às vezes o menino perguntava pelo tio, mas engraçado que nunca chorou por ele desde que se separaram, o que não significava que não sentisse a sua ausência, claro, mas o menino se demonstrava, mesmo novo, forte e inteligente. No fundo tinha noção de que não mais veria Nepomuceno e essa idéia ficava cada vez mais presa ao seu pensamento. O que o penalizava era não ter tido tempo de aprender a fórmula para se falar com morto, através da ventriloquia. Queria ser sabido como Nepomuceno e também com os mesmos poderes, pois desta maneira conseguiria ajudar sua mãe. Há muitas manhãs que vinha tentando fazer algo neste sentido, mas acabou demonstrando não ter tato: foi surpreendido ao abrir uma gaveta no quarto de dona Jussara; levou dela uma surra de chicote. Até então não havia apanhado na vida e a viúva ficou chocada quando soube do ocorrido; foi tomar satisfações com dona Jussara, mas, diante de outra ameaça de ir para o olho da rua, quedou seu ódio. O menino, no entanto, explicou que sua vontade era de fugir com a mãe dali, o que a fez cair em prantos. Os dois se abraçaram como nunca dantes. A viúva garantiu que pensava no mesmo, mas por enquanto melhor se aquietar ante a estupidez dessa bruxa.

O menino viu a foto da mãe, ou melhor, de Valquíria Callas fixada em um poste na praça. Era uma propaganda que dizia na noite seguinte seria comemorado o aniversário da Casa de Dona Jussara e as atrações da festa eram a viúva e uma loira novinha, cujo nome não conhecia – só a vira uma vez. Ele, no entanto, não se assustou ao ver sua mãe toda vestida e pintada de puta, pois não se tratava da primeira vez que isto acontecia, porém não era bom sentar ao lado daquele cartaz. Levantou-se e, maliciosamente, retirou do poste a foto de Valquíria Callas e a escondeu no bolso da bermuda. Voltou a se sentar e a olhar o giro da roda.

Mendes Júnior
* Photo by Jeremy Webb, "Floor Figure".

23 agosto, 2007

Indicações Musicoliterárias

José Alcides Pinto

Depois de merecidas férias na Argentina - Buenos Aires e Mendoza - e um tantão de vinho tinto e cigars Montecristo, volto alegremente às publicações, no caso, com as minhas modestas indicações, (pois quem sabe alguém as esteja lendo). Sem delongas, fui induzido a me apaixonar pelo álbum Zamazu, do pianista cubano Roberto Fonseca, através do Dj Marquinhos e do poeta William Lial, professores da boa música que lecionam na Desafinado. O disco chega às lojas pela Biscoito Fino e foi gravado na ponte Cuba-Brasil. É saboroso de escutar pelas misturas do afro- jazz e da música brasileira, como nas faixas Zamazu e Zamazamazu, e também por causa do jazz puro, como Llegó Cachaíto, com o homenageado no contrabaixo, e Clandestino. Uma particularidade que não pode ser omitida: Roberto Fonseca trabalhou com dois grandes nomes do Buena Vista Social Club: Ibrahim Ferrer (El Niejo) e Omara Portuondo (Mil Congojas). O vinho deve ser Mapema (Malbec) 2004.

Mais uma vez cito o Dj Marquinhos: foi o músico quem me garantiu que adquirir The spoiler, do grande Stanley Turrentine, era uma acertada decisão - não estava errado. Importado, ou seja, com um precinho "salgado", porém mágico e completo. As faixas You´re gonna hear from me e Maybe september nos provam o quê Turrentine saber fazer (e muito bem) com seu sax. Gravado em New Jersey (1966), tem o selo impecável da Blue Note, e conta ainda com Bob Cranshaw, McCoy Tyner, Blue Mitchell e outros. Um detalhe: os dicos hoje encontrados trazem uma faixa que não fez parte do original - Lonesome Lover. Para combinar: uma noite, uma companhia e uma garrafa de Zuccardi Zeta 2003.

Por fim, estou relendo Cem anos de solidão, pois até hoje não consigo acreditar que alguém possa ter construído uma narrativa tão forte, mas aos ciganos de Macondo tudo é possível, diria um velho amigo. Gabriel García Márquez indico a qualquer hora, em qualquer lugar e a qualquer tempo, mas quero aproveitar o final destas mal traçadas linhas para fazer uma justa homenagem ao poeta e romancista José Alcides Pinto, tão esquecido nestas plagas; nascido no Alto dos Anjicos de São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, no Ceará, no Brasil, sua literatura é universal. São mais de sessenta livros... sim, mais de sessenta! Alguns títulos são raros, mas toda busca, quando vale, deve ser incessante, e isto serve para os livros do José Alcides - que não gosta de ser chamado de "senhor", mas de "poeta" ou de apenas "você" -, tais como O amolador de punhais, Fúria (segundo o próprio, escrito durante 24 horas seguidas), Relicário pornô, Senhora Maria Hermínia (morte e vida agoniada), A divina relação do corpo, João Pinto de Maria (biografia de um louco), O Criador de Demônios, Estação da Morte, O editor de insônias etc, etc, etc. Indico também o trabalho do Paulo de Tarso Pardal - O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto - para os interessados, claro.

Esteja dito.

Mendes Júnior.
* Photo by Silvana Tarelho

19 agosto, 2007

Todas as mulheres


08/03/2007.
“As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração”

(Chico Buarque)

Romualdo achava que todo homem deveria, obrigatoriamente, ter uma conta numa floricultura; ele tinha há anos. A mãe de Romualdo vivia reclamando pelos cantos que o filho era antiquado, meio envelhecido, fora de moda – um chato de verdade. Romualdo apreciava instrumento de sopro, uma voz mais aguda, uma toada sem graça nem balanço, quase teatral, e um estribilho romântico e tenro. Aprendeu a dedilhar um violão porque entendia que a serenata era uma forma honesta de declarar qualquer tipo de amor, mesmo o mais inconseqüente de todos; até se inscreveu numa aula de canto. E lá estava Romualdo metido num caderninho fedorento rabiscando uns versos infantis, com rimas pobres, porque era considerado, vejam só, o poeta da rua. A mãe nem gostava desta história: seresteiro e poeta são sinônimos de vagabundagem. A mãe tinha razão, mas Romualdo nunca recitara um verso sequer nem jamais se pusera ao pé de uma janela; mulher nenhuma havia sido contemplada com o amor de Romualdo, um querer bem substantivo e primitivo. Por quê? A mãe não soube dizer e levou o menino às vias da demência: o que faz um porta-retrato vazio na cabeceira do Romualdo? Um papel em branco no lugar de um sorriso? Nada era tão colorido quanto aos olhos de Romualdo. Era assim que enxergava a mulher: uma quantidade infinita de cores que se misturam umas às outras sucessivamente, correndo lado a lado por uma atmosfera imaginária, formando novas tonalidades, cada uma mais formosa do que a outra; sem fronteiras, um azul mais verde mais vermelha mais amarela mais branca era a pele da rosa que Romualdo via sempre na floricultura que ele tinha uma conta, como bom homem que era, mas que não chegara nunca a enviar ao coração de uma mulher, de uma única mulher. A mãe lavou as mãos uma dezena de vezes, levou a casa pares e mais pares de um final feliz – arranjado, mas feliz –, gastou rios e rios da voz da experiência, mas qual experiência?... não era Seu Nonô o parceiro da vida toda? Romualdo ia além; era difícil para ele sintetizar a mulher, transformá-la em um sonho tão somente, idealizá-la senão múltipla e diferente. Ele sentia-se feliz por achar que valia a pena pensar assim, por mais que às vezes fosse incompreensível o seu amor; não a ele, mas aos que submetem a vida ao aluamento da dúvida, da ignorância e do desrespeito em desfavor de um bem precioso que é o suspiro da mulher. Certa vez, não muito tempo, Romualdo beijou uma mulher, colou os seus lábios aos lábios de uma outra pessoa, e foi de uma ternura, e não poderia ser diferente, e Romualdo nunca esqueceu o doce mais doce do mundo, embora não soubesse identificar a fruta porque se parecia com sapoti, com manga, com ata e tinha cheiro de baunilha. À sua cabeça corria muitos nomes, muitos rostos, muitas belezas, muitas fortalezas e muitas gentes. Romualdo levantou-se da cadeira, havia feito um novo poema, talvez virasse letra de música, talvez parasse nas cordas do seu violão, talvez chegasse ao coração de uma mulher. Sua mãe haveria de perguntar pela bendita mulher de Romualdo, mas isto porque ela não percebia que seu filho tinha todas as mulheres do planeta, amava todas elas, como se todas fossem apenas uma, ou apenas uma fosse todas, tão lindamente lindas, grandes, completas e prontas. Romualdo não poderia escolher uma – e estava certo –, seria um leve toque de insensatez se assim o fizesse. Romualdo não pensava a mulher senão perfeita. E qual a mais perfeita? Nenhuma, todas são perfeitas, cada uma à sua maneira. E a rosa de Romualdo era das mulheres, todas.


Mendes Júnior.
* Photo by Anya Bartels-Suermondt, Reading Man, N.Y. Manhattan;
** Publicado no Jornal O Povo, em 19/08/2007.

Um casal de cinema


De longe, parecia ser um casal terno. O rapagão, muito bem aprumado dentro de um risca de giz, gastava parte do seu tempo alisando o bigode, com um pequeno pente. A moça, porém, de pele-morena-clara, cruzava as pernas deliciosamente a cada frase concluída. Impressionava-me a forma e a candura como lidava com a longa saia. O constante entrelaçamento de pernas não era causa para deslizes. Muito pouco se via além do pano. Não poderia afirmar se sua veste era coisa de grã-fina, por duas razões: primeiro, ser desprovido de conhecimentos técnico-estilísticos; em segundo plano, estar fisicamente distante. Sempre escolho mesas da entrada de qualquer recinto que vá, por ser afeito a pequenos detalhes, quase delitos, sem contar que não suporto a idéia de sentar em fundo de bar. E aqueles dois, que ora me chamavam a atenção, haviam se apropriado de um espaço afastado de tudo e de todos, inclusive dos garçons, dos toaletes e da tabacaria.

Mesmo entretido com um pedaço do Frango à Passarinho e uma boa dose de Rhum Barbancourt, bati na mesa e disse baixinho: “Um casal de cinema”. Observei cada gesto e nada de atropelos. Logo se via que os dois tinham classe. Poderia até nem ter a cédula, mas se portavam com tal elegância que invejei a pose do refinado. Se pudesse por segundos sentar-me diante de tão distinta dama, talvez não conseguisse sequer imitar o cavalheiro. Um conhecido meu diria se tratar da inauguração de um relacionamento que cedo ou tarde fará parte do mesmo balaio de tantos que se vê por aí. Discordaria com muita franqueza. Posso estar enganado, mas percebo na troca de olhares uma cumplicidade antiga. Era como se estivessem fazendo pela centésima vez jura de um amor que há anos se sabe eterno. Por estar deveras envolvido, deixei-me levar ao centro do bar, quebrando uma velha tradição. Gardênia, meu garçom dileto, abriu sua boca sem dentes com espanto.

Na vitrola, Ninguém me ama, de Antônio Maria. Repentinamente, uma leve sensação de que a conhecia. Fitei-a tentando lembrar se da drogaria ou de alguma fila de padaria, mas os anos me permitem apenas o luxo de flashes desta natureza, jamais qualquer certeza. Meu interesse era tamanho que comecei a imaginar o que os sussurros pronunciados, tanto por um quanto pelo outro, significavam. Por certo, frases que fogem à compreensão daqueles que nunca amaram de verdade ou sofreram por este mesmo amor. Nesse ínterim, as mãos do rapagão deslizavam pela face imóvel da moça, como um pintor que desafia a delicadeza no tocar da brocha junto à parede novinha em folha. Ele usava uma aliança na mão direita.

Apostaria o dedo menor como se tratava de um pedido de casamento preliminar. Na verdade, adoraria que fosse. Não era. Mal terminara o último gole de qualquer coisa que degustava, a moça levantou-se graciosamente e, com a mão direita desprotegida de aliança, deu uma tapa no gentil hombre, despedindo-se silenciosamente. Ao passar por mim, com sua beleza sutil e uma lágrima perdida, duvidei ser seu vestido um italiano.

“Gardênia, mais um, por favor”.

Mendes Júnior.
* Photo by Kim JI HAE, An Empty Bed;
** Publicado no Jornal O Povo, em 19/08/2007;
*** Publicado no Jornal O Noroeste.

03 agosto, 2007

Habitual




03/08/2007.


Quem nunca partiu dilacerado, feito um cachorro sem dono e prosa, ultrapassando obstáculos por cima de obstáculos tortuosos, logo cedinho, no limite da lua e do sol, a fim de alcançar a velha e conhecida condução de todo dia, na tentativa quase atlética de cumprir o rigoroso horário do expediente? Quem nunca sentiu o gostinho de chegar ao trabalho todo ensopado, seja de chuva ou suor, e ainda assim, a despeito de todo o esforço, que certamente não será reconhecido, não conseguir bater o ponto naquele estúpido horário? Quem nunca se viu na iminência de ser gentilmente sacado do quadro de funcionário da tal repartição, que há bons anos consome suas energias e sua paciência, pois, de repente, o mundo escolheu lhe pregar uma baita peça e acabou por desordenar seu dia e sua vida, já tão cheia de desencontros? É impossível que o pobre-sofrido-trabalhador-brasileiro, principalmente o moribundo que vive nos grandes e gélidos centros comerciais, não tenha levado uma sonora sova de impropérios do empregador ou de seu pelego por ter perdido a droga da hora do apito da fábrica, independente da explicação, se verdade ou lorota, se com deslisura ou honradez ele falou que não foi sua a culpa pelo atraso, mas do trem, do metrô, do coletivo, do engarrafamento ou de um abalroamento, não importa, levando em consideração que o trânsito hoje em dia está um caos, e ainda ser alvejado por lições de moral, pois a responsabilidade não admite brechas e a lei laboral não resguarda o malandro, o vagabundo e o desidioso, ao contrário, fere com ferro e fogo quem não madruga, e ainda têm os desafortunados que ficam recolhidos numa cela abrilhantando a bota de cano longo, lendo a bíblia e fumando cigarro sem filtro. Tenho um colega no jornal que não se cansa em ressaltar que não há mal que não possa ser piorado. Ele tem toda razão. Hoje mesmo, como se tivesse há pouco saído de uma internação de duas semanas no hospício, com rosto e camisa amassados, barba por fazer, precisando ser escaldado, de aspecto maldito e amedrontador, e com o diabo do ponteiro dos segundos azucrinando minha graça, eis que passa um carro bacana a toda por uma poça d’água, à altura do meio-fio, dando-me um banho de lama com vigor. Nossa! Um anúncio do Bingo Jamaica veio parar na minha testa, colado, e olhe que metade da minha vestimenta era branca. Bem dito: era branca! Imediatamente lembrei do colega: não há mal que não possa ser piorado – já estava atrasado; agora, passei à condição de atrasado e enlameado, muito embora ainda tenha sido vilipendiado dentro do ônibus: uma moça muito bonitinha me pegou com a cabeça escorada na janela, dormindo irracionalmente, com um fio de baba escorrendo pelo canto da boca, e não se furtou em me chamar de porcalhão, o que não era para menos, no entanto, ninguém gosta de ser ofendido, ainda mais na frente de muitos. Não preguei os olhos até chegar no batente; também não tiraram os olhos de mim, isto percebia com facilidade. Antes mesmo de pegar um cafezinho, o editor do jornal me chamou em sua sala para dizer que me daria a derradeira oportunidade de permanecer empregado no Diário Novo, razão esta que me fez muito agradecido, pois não era o momento de ficar sem a renda dos obituários – tinha de acertar umas contas com um prestamista durante os próximos cinco meses, e com este tipo não se brinca. Meu colega de trabalho – o tal que para ele o mal sempre poderia sofrer um upgrade – estava redigindo uma matéria a respeito de um andaime rolante que despencou do quinto andar de um prédio em construção, matando três operários; ele ria da declaração do dono da obra, pois este afirmava que aos seus empregados era obrigatório o uso de equipamento de segurança, embora nenhum dos três estivesse portando sequer capacete no momento da fatalidade. Veja que disparate, o desse senhor, disse-me munido de certa indignação. No entanto, o que evitaria a morte de uma pessoa que sucumbe do quinto andar de um edifício?, perguntou-me. Respondi-lhe que nem milagre e indaguei sobre os mortos importantes do dia. Até o presente momento, ninguém, enfatizou.


Mendes Júnior.
* Publicado no Jornal do Leitor, Jornal O Povo, em 12/07/2008;
** Photo by Chema Madoz, "Eyelashes and time".