26 abril, 2011

Guedali galopando rumo ao seio de Abraão




Moacyr Scliar (1937-2011) faleceu recentemente, mas não é por este triste motivo que abordo O Centauro no Jardim (1980), mas por se tratar de uma obra interessante que não descuida de interpretações. A coincidência, no tocante ao pesar da notícia, é que estava justamente imerso em sua leitura quando descobri que o imortal era mortal. A bem da verdade, a dilatada obra do porto-alegrense, que caminha pelo conto, crônica, romance, literatura infantil e ensaio, que soma mais de oitenta livros, é que podemos classificar de imorredoura. E há que se questionar: como alguém conseguiu escrever tanto, mesmo mantendo a profissão de médico? Sem dúvida, é admirável.

Moacyr Scliar guiou parte de sua obra pelo fantástico e pelo enfoque na tradição judaico-cristã, e O Centauro no Jardim segue ambas temáticas, acrescentando aqui a mitologia. O livro chegou a ser incluído na lista dos cem melhores livros relacionados à história dos judeus dos últimos dois séculos, elaborada pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, em 2002. Também se destaca da “prateleira” de Scliar por ter sido um dos mais traduzidos: inglês, francês, espanhol, alemão, sueco, hebraico e russo –, além de adaptado para o teatro na Alemanha.

O Centauro no Jardim é construído a partir de períodos definidos em capítulos, através de datas e lugares, mas com componentes narrativos que remontam ao passado. Inicia-se com um Guedali, o centauro-narrador, tranquilo e aparentemente feliz, comemorando seus trinta e oito anos, ao lado de sua mulher e de seus amigos, num restaurante tunisiano, chamado Jardim das Delícias, o qual passa a reconstruir os acontecimentos de sua vida. Observamos que o nome do tal restaurante é o mesmo de um famoso tríptico aberto do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), El Bosco, que atualmente repousa no Museo Nacional del Prado, em Madri. O tríptico (1504) retrata o pecado entre o céu e o inferno. Enquanto na lateral esquerda temos o paraíso, representando o último dia da criação, com Eva e Adão, na direita está o inferno, no qual o homem é condenado por seu pecado. Já no centro vemos o jardim e os prazeres da vida, em que a humanidade se entrega aos prazeres mundanos, com forte carga erótica. Uma sequência simbólica.

O calvário de Guedali tem início numa pequena fazenda no interior do Rio Grande do Sul. Ele faz parte de uma família judia, advinda da Rússia, que, ajudada por um tal Barão Hirsch, fugiu dos pogroms. Guedali narra seu próprio nascimento como se misturado ao susto dos pais e irmãos, e tem consciência desde cedo de que é diferente: “As primeiras lembranças, naturalmente, não podem ser descritas em palavras convencionais”. O fato é que Guedali nasce um centauro e, portanto, provoca uma série de desafios para família Tartakovsky, desde no sentido de seguir os preceitos judaicos até o de escondê-lo a fim de preservar a dignidade de todos, afinal, dificilmente seria considerado natural um ser metade homem, metade cavalo.

A questão conflituosa se trava quando Guedali descobre o prazer de cavalgar pelo campo, ao tempo que vai se apercebendo haver um mundo fora de seu esconderijo e das leituras, hábito que passa a cultivar enquanto trancafiado. Num descuido, durante um galope, é surpreendido por um vizinho e seus pais decidem se mudar para a cidade, fato que o torna ainda mais prisioneiro de seu corpo. Avista por lentes longíquas o amor – platônico, mas amor – e resolve que chegou a hora de abandonar a segurança de seus pares e enfrentar de uma vez por todos o mundo. Durante cavalgadas pelo desconhecido, conhece Tita, uma centaura. Apaixonam-se. Tomam, portanto, a decisão que iria mudar suas vidas: se transformar em seres normais após cirurgia realizada no Marrocos. A partir do sucesso deste empreendimento – chamamos assim – inicia-se uma batalha interna e individual entre os ex-centauros.

Interessante o exercício de assumir o papel dos dois personagens para tentar imaginar como nos comportaríamos se modificados a ponto de nos tornarmos outros seres. É incômodo, acredito. A identidade estaria em jogo, assim como a natureza humana e seus componentes psicológicos e sociais. Estaríamos desfocados e deslocados? Por certo, mas consideremos a possibilidade de sermos vistos como iguais, sem características físicas aterradoras. Mas não é tão simples assim. O fato é que Guedali é tomado por uma crise de identidade – permita-nos usar este lugar-comum –, quer voltar a ser centauro, pois é o seu instinto e, de verdade, nunca deixou de ser um centauro – eis a verdade que nos quer passar –, quer galopar pelos campos rumo aos seios de Abraão. Abre-se, então, a discussão pelo respeito ao diferente e à originalidade, a angústia do homem enfiado na sociedade contemporânea e a condição judaica. É salutar ainda o contexto político no qual se insere parte da história.

Mendes Júnior

* Reprodução de O jardim das delícias extraída do site O fabuloso mundo da arte;

** Reprodução de capa extraída do site da Companhia Das Letras;

*** Imagem de centauro extraída de http://fantasyhorses.homestead.com/

15 abril, 2011

Com a palavra, professor Benjamim Schianberg





Não se sabe ao certo em qual local e data nasceu Benjamim Schianberg, professor e autor do livro O que vemos no mundo, para o qual também não temos o ano da publicação nem a editora. Mas é certo que sua obra pode ser considerada como um manual filosófico do amor, um dicionário de expressões de cunho entusiasta para enamorados, uma fonte de pesquisa objetivando esquadrinhar frestas do sexo, sobretudo uma carta de auto-ajuda destinada aos que se aventuram a tentar ponderar o imponderável, sondar o insondável e compreender o incompreensível. O eminente professor cunhou frases de ciência pertinente: “A grande desgraça é que as lembranças não bastam para confortar os amantes (...)”; descreveu tipos da natureza humana masculina: homens de sangue quente; divide com seus leitores técnicas apuradas de comportamento: vestir e despir o mundo; rotulou-se como um estudioso ocupado com as “fezes da alma”; tipificou a STTL – Síndrome da Transferência Total de Libido; proclamou que poucos homens, para a insatisfação destes, são fiéis de verdade; e, por fim, desbancou a segurança dos amantes apaixonados que, quase sempre negligentes, acreditam-se discretos: não são invisíveis, estando apenas ofuscados pela luz que eles próprios emitem. Vetusto o amor, faz-se necessária a leitura do professor Schianberg, a fim de enxergar este sentimento em meio à claridade e à lassidão.

Seria válido tudo o que foi escrito se existisse de fato um professor Benjamim Schianberg e se o mesmo tivesse escrito O que vemos no mundo. A bem da verdade, uma criação para servir de pano de fundo na história de um outro personagem, chamado Cauby – sim, igual ao cantor –, no livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, do paulistano Marçal Aquino. O curioso e hilário é que, mesmo Marçal tendo criado cuidadosamente um nome que sequer constava em sites de pesquisas e um livro nunca escrito, uma editora carioca pediu sua ajuda para localizar o tal escritor e publicar seu livro no Brasil. Infelizmente, não conseguiu.

Eu receberia as piores notícias..., sem dúvida alguma, trata-se de um título intrigante e charmosamente grande. Olhando rapidamente para qualquer estante de livros, dificilmente encontraríamos algo parecido. O próprio Marçal, durante uma entrevista para um programa televisivo, disse que não acreditava que alguma editora fosse capaz de se interessar em publicá-lo, mas, para sua surpresa, Luiz Schwarcz – Companhia Das Letras – aceitou o desafio.

A trama se passa basicamente numa pequena cidade do Pará, na época áurea para os garimpos e, portanto, desprotegida e nebulosa, envolvendo disputas de terra, emboscadas e mortes. O fotógrafo Cauby se apaixona perdidamente por uma mulher casada: Lavínia, uma ex-prostituta. A aproximação dos dois se dá pelo prazer da fotografia, embora ela encare o hobby como refúgio para um passado sofrido. Porém são as variações de comportamento de Lavínia que parecem sedimentar o interesse do amante, o qual encara como um grande desafio, a princípio, mas que aos poucos, contudo, se entrega feito paixão de adolescente. Por se tratar de uma diferença gritante, Cauby cria em sua cabeça duas Lavínias: Lavínia – a melancólica e comportada – e Shirley – “a que mijava de porta aberta”. As rosas, então, perdem a inocência quando o ciúme de Cauby começa a frequentar constantemente seu coração. Aliado aos desvios e sumiços da amante, Cauby intui ser correto desvendar a outra vida da amante, a que inclui seu marido, o pastor Ernani.

Ao largo do amor clandestino, na terra hostil, há outras versões deste sentimento e com elas seus desvios. Altino, tratado pela alcunha de “careca”, mantém um amor platônico por uma colega de profissão, Marinês, que o condenou a viver o resto dos dias naquele cafundó; Chang, “o china da loja”, vem representando o amor doente, o desvio, a tara, em seu aspecto mais tenebroso: a pedofilia, que o leva a um destino severo; Dona Jane, a dona da pensão, faz parte da gente do interior que cede o coração aos galanteios de forasteiro qualquer e no fim é abandonada sem comiseração; e a do próprio pastor Ernani que procurou converter a impura Lavínia com ditados bíblicos e se quedou em “arranques silábicos” esquecendo a existência do demônio.

Marçal disse em certa ocasião que seus livros não deveriam ser cunhados de policiais, haja vista que são romances ambientados naquilo que vê nas ruas, nas pessoas e nos movimentos do centro da cidade, nos diálogos e atos de gente comum, não sendo intencional que a história descambe para elementos funestos ou queira se encaixar numa determinada classificação literária. A tragédia em Eu receberia as piores notícias... torna seu desfecho exalando um cheiro podre – um bafejo de vômito – e de céu inube, como se tivesse o amor sido enganado pela brutalidade e loucura. Obliterado o destino comum, encontramos o silêncio como a mais ensurdecedora forma de nos alertar das últimas consequências do homem. Mas o trágico já se encontrava como a pedra fundamental do destino de Cauby desde o princípio – o amor é terreno sem limite: “(...) E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando. E tenho tempo de saber que não me deixa feliz o desfecho da nossa história. Terá valido a pena”.


Mendes Júnior

* 105, photo by Eduardo Segura;

** Marçal Aquino, photo by Bel Pedrosa;

*** Foto de capa extraída do blog Inutilidade Útil.