15 janeiro, 2007

Sonho


CRÔNICA*, sem data

Não sabia uma palavra sequer em francês, mas, quando desembarquei no Charles De Gaulle, a primeira coisa que pensei foi em comprar flores. Repeti ao taxista algumas vezes que gostaria de adquirir flores, mas fora no meu português rasteiro, só consegui encontrar esta palavra no inglês: “flowers”. Não adiantou; o senhor de bigode fino me sacou de frente ao Café de Flore. Sabia que estava bem distante do Marché aux Fleurs et Oiseaux, um dos últimos mercados de flores de Paris, mas, todavia, estava bem próximo a um dos redutos dos existencialistas nos anos do pós-guerra. Ali sentara Jean-Paul Sartre e sua companheira inseparável, Simone de Beauvoir. Mas hei de confessar, entre um gole e outro de café, que nunca entendi direito esta coisa de o ser e o nada. Fazia um calor insuportável em Paris, mas, mesmo assim, sai caminhando pela Boulevard Saint Germain. Às vezes, subitamente, chegava a parar para me perguntar qual a verdadeira finalidade da minha busca. E, muito embora não me privasse de palpitações, também questionei se havia razão para tanto. Mas ao chegar às margens do Sena, no Quartier Latin, escutei um fio de jazz no ar e sorri. Gostaria de ter visto meu sorriso. Talvez fosse o mesmo que por tantas vezes sonhei. Neste instante, deixei-me sentar sob a Pont St-Michel e espiei os lados para ver se alguém sorria tão lindamente quanto no meu sonho. Só havíamos o jovem, seu trompete e eu. Fiquei mudo como a água. Uma saudade estranha atacou-me o peito. Era como se alguém estivesse se afastando. É lógico pensar em Paris como uma cidade irrefutável na arte do amor. E eu pensei nela, alva como a bruma. Ela que para mim significava um sobressalto harmônico – condição sine qua non para que estivesse em plena Paris de Monet, na ânsia – quem sabe – daquelas tulipas avermelhadas que também faziam parte do meu sonho. Lindas flores que não consegui comprar. O que diria ela se me visse de mãos abanando, feito um mendigo a implorar à vida. Não iria me perdoar. Caminhei mais um pouco e resolvi pegar um táxi próximo à Shakespeare & Co. Desta vez me reabilitei e consegui chegar ao romantismo de Montmartre. O perfume bucólico me inebriou a ponto de lembrar de uma infância distante. “Sendo mais menino, percorreria esta colina com um piscar de olhos” – pensei. Mas os meus olhos estavam mais interessados nos retratistas que se aglomeravam na praça que era deles, mas que poderia ser de qualquer um, inclusive dela. Procurei seu rosto tela por tela. As linhas imaginárias dos pincéis múltiplos concediam-me uma pequena esperança. Tivesse eu a mão de um Modigliani, certamente, pintaria algo como o “Retrato de Uma Mulher”, embora com traços mais vivazes de quem eu imaginava existir. Aliado a papel e lápis afilado, encontrei uma mesa vazia no Café l’Abreuvoir. Servi-me de vinho e noisettes de carneiro, antes de tomar nota no meu diário de viagem. A folha branca fazia movimentos bruscos por causa do vento. Aquilo por um momento me perturbou. Mas o que mais me deixava inconstante era não saber por onde começar: eu não conhecia o nome dela, não tinha certeza de quem ela era e, muito menos, o que diria se me visse tão atordoado. Por acaso, não me senti na Paris de Hemingway. Estava desolado. Sai um pedaço para tomar um pouco de ar e aproveitei para fumar um cigarro. Na minha frente, em meio às baforadas, um pôr-do-sol maravilhoso; na estrada amarela, o seu sorriso dela, tal qual no meu sonho.
Mendes Júnior.
* Crônica selecionada no XXI Concurso Internacional de Primavera (SP). Publicada no site do Jornal O Noroeste, em 02/01/2007.

Uma flor


CRÔNICA*, sem data

Era preciso ter certeza de que Noronha não fizera isto. Um homem centrado como ele não comete um desvario desta magnitude. Um cidadão exemplar, casado; aliás, muito bem casado, diga-se de passagem. Trair Dona Flora era só o que faltava. Eu, particularmente, desde que me anunciaram o episódio, fui forte em afirmar que não acreditava nisto. Eu sou da cozinha do Noronha; eu o conheço. Sei que é incapaz de cometer um ato ilícito e, agora, envolvido com uma fulana qualquer, impossível. São falácias de quem não tem o que fazer. De fato, Noronha é o típico homem comum. Sua vida, sempre muito regrada, não lhe permite luxos desnecessários. O máximo que consegue é, uma vez a cada quinze dias, ir ao cinema – sua verdadeira paixão. Imaginemos a cena: o homem sai de seu lar acompanhado de sua bela esposa, vestido com seu único terno (branco, meio amarelado pelo tempo); entra em sua Variante cor de tangerina e segue para o cinema no centro da cidade. Ao chegar, procura fazer um agrado à madame e lhe compra um saco de pipoca com um copo de refrigerante. Assistem ao filme e retornam a casa. Pronto, este é o Noronha. Isto feito, durante os outros vinte e oito dias do mês, Noronha se divide entre o trabalho, as partidas de futebol pelo rádio e, de quando em vez, reclamar com a vizinhança que fez outra ligação clandestina com sua energia elétrica. Noronha é agente fiscal. Trabalha em nossa repartição, se a memória não me for tão cruel, desde meados dos anos oitenta. No nosso quadro de funcionários, talvez o único que adentrou por meio de concurso. Que eu saiba, nunca fez corpo mole aqui dentro. Sempre se utilizando da cortesia, Noronha é deste que podemos chamar de gentleman. Não aumenta o tom de voz, quando nervoso; no máximo, tira do bolso da calça um pequeno pente preto e escova alguns fios de cabelo que ainda lhe restam, antes de soltar uma frase fraca que mais parece uma melodia. Segundo ele, este ato o ajuda a pensar e a manter a calma. Agora, que tolice imaginar um homem tão polido envolvido com aventuras amorosas. Inda mais, com uma flor – que é Dona Flor – como mulher, o que faz um homem buscar outro alento que não este. Porém, Dona Flor não é flor que se cheire. Em suas mãos, Noronha já sofreu as piores humilhações. Casaram-se cedo e, antes disto, Dona Flor já mandava em tudo. Desde a hora em que deveria permanecer calado até o fato de limpar os solados dos sapatos ao entrar em casa, Noronha obedecia como um cão ao seu dono. Chegou a ponto de obrigar o pobre coitado a lhe entregar todo o ordenado, tão logo recebesse, a fim de garantir seus caprichos. Restou ao Noronha apenas o cineminha de quinze em quinze dias. Sem falar, ainda, que a infidelidade de Dona Flor adentrou a própria repartição e aportou, inclusive, no Pereira – este defensor ardoroso da fidelidade do Noronha. “Pereira, escuta. Foram somente dois ou três beijinhos, depois ela fugiu levando meu relógio. Mas o relógio era vagabundo, não valia nada” – justificou-se Noronha. “Noronha, seu cafajeste!” – replicou Pereira.

Mendes Júnior.
* Crônica selecionada no XXI Concurso Internacional de Primavera (SP). Publicada no site do Jornal O Noroeste, em 02/01/2007.
** Photo by Mendes Júnior.