27 novembro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Freddie Hubbard


Abri mais uma vez meu baú do jazz e de lá arranquei dois grandes discos de um excelente artista: Freddie Hubbard, e os tais se chamam "Ready for Freddie" e "Open Sesame" (adorei este título). Eis que me aparece novamente o frentista me perguntando quem é Freddie Hubbard? De pronto lhe respondo que é o principal nome do trompete no jazz surgido depois de Miles Davis. Nasceu em Indianápolis (1938) e no começo da década de 60 juntou-se aos Jazz Messengers de Art Blakey, permanecendo até 1964. No entanto, a partir de 1966, passou a formar seus próprios quartetos e quintetos, tocando com muita gente boa: Max Roach, Eric Dolphy, Philly Joe Jones, Sonny Rollins, Slide Hampton, Jay Jay Johnson, Quincy Jones, Wayne Shorter, James Spaulding etc. A partir de 1976, Hubbard participou do grupo V.S.O.P. de Herbie Hancock - uma reedição do quinteto de Miles Davis dos anos 60, formado por Hancock, Ron Carter, Tony Williams e Wayne Shorter, ocupando o lugar que fora do próprio Miles. É importante ressaltar que seu som, mesmo tendo sido comparado a Miles, é diferente. Concordo com aqueles que dizem ser mais encorpado. É um grande improvisador, capaz de longos solos, onde nunca falta imaginação. Por problemas nos lábios, comum aos trompetistas, interrompeu a carreira nos anos 90. Bem, o primeiro disco de que lhes falei foi gravado em agosto de 61 e recomendo, principalmente por Arietis e Marie Antoinette, em que ainda há o "alternate take" de ambas. Quanto ao segundo, "Open Sesame", gravado um ano antes, a música que dá título ao disco é simplesmente fantástica, além de Hub's Nub, do próprio Hubbard. Vale dizer que McCoy Tyner é o pianista nos dois discos. Por fim, o selo é Blue Note.

Esteja dito.

Mendes Júnior

22 novembro, 2007

Os donos do mar



22/11/2007.

(Para melhor compreensão do texto, pedimos que ampliem a foto ao lado)

Das águas – então serenas – pareciam sair chamas, todas ardentes, pois todas as chamas são ardentes, e usurpadas das entranhas, tamanha amarelidão que ressurgia do espelho criado pelo mar, que não estava para peixes nem para tubarões nem para qualquer coisa que o valha, mas tão-somente para eles: os donos do mar, que se alimentavam do ar venturoso e do sal trépido, que tocavam suas bocas de forma a escancarar incontinente e denunciar o vazio, o oco, o nada, mas que, contudo, insinuava o prazer incompreensível, talvez porque as narinas dos donos do mar estivessem atulhadas de ilusões, devaneios e sonhos, que jamais se concretizarão, senão no próprio castelo levantado sob os olhos de uma ponte cravejada de animais menores oriundos da mãe-natureza, que recobriam suas finas pilastras e que não levavam a lugar algum, seja para cima ou para baixo, seja para quaisquer dos lados, pois não havia navios atracados fazendo sombra aos donos do mar, que ora era capitaneado pelo que se esticava na base horizontal e oriental de concreto deixada de lado um dia, com o rosto juvenil perdidamente em direção ao súbito teto, que provocava a tal chama que lhe banhava o peito desnudo e escorregadio de suor e lhe induzia a cerrar os magros olhos vermelhos enquanto o ora defensor se escorava no concreto vertical embevecido pelo milagre da felicidade, embora soubesse de que sensação assim é passageira e, de certa forma, cruel, mas de quê adiantaria caso fosse eterna, qual a serventia, pensaria o pobre defensor – o guardião do castelo –, castelo este à beira-mar, de vista gloriosa e de desenho imponente, que não tinha fim, que não oferecia destino, mas era o prazer dos donos do mar que lhes importava, pois não haveria mudanças até que a sereia resolvesse partir para o mais longínquo escondedouro e de lá não mais enviasse a magia do seu canto, mas a ora sereia saltava da ponte tão linda quanto seu sorriso – que inebriava a todos em sintonia com o perfume do mar, que alimentava um por um os donos do mar –, e era justamente da janela do castelo, corroída pela maresia, por onde a sereia observava a infinitude das águas, que eram mais dela do que de qualquer outro, no entanto solitária – desintumesceria seu coração –, portanto, preferia viver na companhia dos seres desolados daquele pedaço da água – eles eram reis –, além disto, se protegia da malfadada das gentes e era desejada feito o girassol, de mesma amarelidão, por outros dois rapazolas, que loucamente se jogavam aos seus pés, (perdão: cauda), como quem se aventura do alto da torre de um castelo, do castelo sem teto que era deles, que ficava no território marcado por eles, que riscava a ponte com eles, que queimava a pele deles, donde se via de longe, de muito longe, lá longe, o sorriso dos verdadeiros donos do mar.

Mendes Júnior
*Photo by Isabela Pinho;
** Publicado no Jornal O POVO, em 02/02/2008.

21 novembro, 2007

Indicações Musicoliterárias

Sylvia Plath


Num Brasil tão averso à poesia, sou um leitor de poesia. Conheço (pessoalmente) outras duas pessoas que apreciam poesia e mais outras três que escrevem poesia, ou seja, somos seis desgraçados vivendo como anormais. Claro: há muito mais por aí: somos milhões. Talvez esteja sendo mui trágico com meu discurso, mas percebam quantas editoras publicam poetas e, quando estiverem circulando nas livrarias (que não são tantas), atenção às prateleiras que guardam Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa etc. Verão que para ambas poderemos usar as mãos para contar. No entanto não precisamos ser (sequer) parecidos. Estes já estão bem guardados no "O Homem Medíocre", de José Ingenieros. É por isso que não me constrange em nada alardear que a nova tradução de "Ariel", de Sylvia Plath, realizada por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo, pela Editora Verus, é espetacularmente linda. Vale conferir.

"A presente edição brasileira encara com seriedade os problemas de tradução que sua poesia oferece e a refaz num português tão atraente quanto é a apresentação gráfica deste volume, que - reordenando os poemas como a poeta desejara que os publicassem - inclui também seus manuscritos com as respectivas notas e correções".
(Nelson Ascher, Revista BRAVO!)


Esteja dito!


Mendes Júnior.

João dos Santos (ou manhã à moda impressa no jornal)


Sem data.


Depois daquela manhã, na 12ª Delegacia de Polícia, tudo poderia mudar. Enfim, retificar-se-ia a espúria escrita de que os nascidos da pobreza são dados ao banditismo. João Clisteres Bivandi dos Santos tinha vinte anos de fome e os dois primeiros anos da vida de parcas condições de sobrevivência, mas estava de pé para contar a história: vivo. Com vinte e dois anos, finalmente, arrumaria uma ocupação digna. É claro que tivera às fuças um ambiente propício às vias tortuosas da marginalidade, mas decidira cedo negar toda e qualquer facilidade advinda do crime.

João dos Santos – abrasileirando sua graça – nasceu de um parto mal sucedido: foram sete meses na barriga de uma meretriz, que vendia o esquálido corpo no Trenzinho de Chica Fulepão, e, ainda assim, conseguira ser cuspido de suas entranhas para tombar no solo infértil das ruas. O pai era um politiqueiro da cidade. Segundo as más línguas, deixou de visitar os lençóis amarfanhados quando soube que seu sêmen havia procriado uma criatura. Aos nove anos perdeu a mãe para um amante endiabrado, passando a viver de acordo com os domínios d’Ele. Entre noites em claro e profundo abandono, lutou para ver chegar (sempre) os raios de um novo dia.

Em suas idas e vindas pela praça da Sé, João dos Santos conheceu, além da escória da humanidade, seu Alfredo Tamboril, dono de um armazém de trigo. Acabaram "chegados" e seu Alfredo, por tanto escutar histórias do coitado João dos Santos, lhe ofereceu um emprego de estivador. João dos Santos não pensou duas vezes. Em vinte e dois anos, fora renitente em não cair nas armadilhas urbanas, o que lhe conferia uma firmeza de caráter. O trabalho era apenas consequência da sua força de vontade. Para tanto, seu Alfredo Tamboril exigiu o mínimo: um passado sem máculas, mas atestado pela polícia.

Acontece que na 12ª DP, ao tentar conseguir o documento que seria sua alforria do mundo dos vagabundos, houve um princípio de algazarra pelo roubo do telefone móvel da delegada de plantão. E alguém apontou o dedo para João dos Santos.

“Tu tá preso, cabra safado! É muita audácia! Na própria Delegacia!”
“Não roubei! Foi o moço que estava sentado do meu lado. Vi quando ele pegou o negócio e saiu correndo”.
“Aquele lá nós conhecemos das redondezas. Não é metido com celular. O lance dele é som de carro. Tu escondeu? Fala logo, seu merda!"
“Seu polícia, só vim aqui pra pegar uma folha corrida pr’um emprego. Tenho nada, não!”
“Mas é um escroto mesmo! Fala logo! Cadê o celular? Vamos, porra! Diz logo, se tu não quiser apanhar na frente de todo mundo!”

João dos Santos ficou mudo. Levou um soco na boca do estômago vazio.

Portanto, como observado, João dos Santos, de história pregressa irretocável, foi confundido com ladrão e preso, perdendo a oportunidade única que tivera na vida. Uns dizem que foi por causa do preconceito, já para outros o determinante foi seu lado paterno. A certeza que se tem é a de que João dos Santos partiu em busca da folha corrida limpa e alcançou, sem querer, os antecedentes criminais.



Mendes Júnior
* Texto publicado no Jornal O POVO;
** Photo by Sigal Avni, "Untitled".

16 novembro, 2007

O problema são as cartas


16/11/2007.


Tudo é possível quando a morte se anuncia. Mas voltemos esta narrativa. Quero começar o texto ainda vivo. No entanto, para não ultrapassar os limites, nada mais do que pouco tempo antes de uma bala perdida se encontrar justamente no meu peito. Genalva me garantiu que a resposta para os males da minha vida estava nas cartas, portanto fiquei sem escolha: confiava plenamente naquilo que Genalva me dizia e, obviamente, em tudo que me mandava fazer. Pronto. Estava com um bom jogo. Não tinha como ser diferente: a mão era minha e o apurado mudaria meus próximos dias. Não era tanto, mas o suficiente para comprar umas galinhas e umas cachaças. Genalva era uma escrota! Ganhei! O barbudo asqueroso que estava ao meu lado fez menção de não acatar o decisório da mesa, mas percebeu a tempo que não seria uma atitude acertada naquele distinto boteco. Estonteante, diante da euforia pela vitória, ofereci uma rodada de bebida para todos. Percebi que o prêmio só dava para as cachaças. Sobrou o suficiente para uma partida de dominó. Acho que Genalva, ao falar em cartas, quis dizer jogos de um modo geral. Talvez não: perdi! Fiquei sem um puto no bolso e o desgraçado que ganhou sequer pagou a própria bebida. Perdi para um sujeito que não bebia. Porra, Genalva! E a criatura ainda me falou que eu não sentiria a menor vontade de ir embora. Cacete! Me deu uma gastura ficar olhando aqueles vagabundos jogando em plena manhã de terça-feira. Cartas, Genalva? Claro! Não eram as cartas do baralho, mas da cartomancia. Sou um retardado! O barbudo ainda me olhava atravessado quando parti. A situação mudava de lado: andei duas quadras e lá estava uma placa em madeira: cartomante. Sorte, Genalva! Esperei outras duas pessoas antes de ser atendido. “Não consigo ler o seu futuro” – disse-me a velhota. – “O quê?”. Acontece que, além de ter perdido meu precioso tempo, acabei enjoando o cheiro do incenso e quase vomito o turbante da velha. Não vomitei, mas desmaiei. Como não querer ir embora? Genalva vacilou feio! Ainda quiseram se aproveitar de mim. “Mas a senhora não me disse coisa alguma” – aleguei antes de sair sem pagar. O pior foi descobrir pouco depois que ela havia dito. Azar, Genalva! Fui baleado! A partir de agora falo na condição de morto. Genalva tinha toda razão: era nas cartas, embora tenha errado num ponto que considero de menor importância. Está tudo tão frio. Porcaria! Genalva, vem me buscar que estou odiando!


Mendes Júnior
* Photo by Chema Madoz, "Playing Card".

13 novembro, 2007

Seu Percival


13/11/2007.


Nada era mais estranho,
naqueles minutos de angústia,
do que minha nudez ao vento da alameda
de um jardim desconhecido
.
(História do Olho – Georges Bataille)


Retirada a aposentadoria, o que fez seu Percival? Com uma merreca no bolso, junto da imagem miúda de São Francisco de Assis, lapidada em pedra-sabão, adquiriu uma passagem de ônibus leito, e foi a Tutumé visitar quem ainda vivo estava na grandiloqüente família Junqueira da Silva, que há tempos rareou em mandar notícias via postagem. Percival Junqueira da Silva Neto já há muito passeava pela casa dos oitenta e, após um susto dado pelo velhaco coração imerso em nuvem de fumaça e desgosto, sentiu que passara e muito da hora de voltar a Tutumé, mas ainda assim quis a força do destino e o suspiro da saudade que seu Percival atinasse para o fato de que ainda se revestia da galantaria de um touro reprodutor e havia o ânimo firme para cheirar umas menininhas na casa de Madame Chica Fulepão e delas tirar um sarro mais-que-gostoso; ora, queria aproveitar enquanto a verdasca do touro reprodutor respirava. Talvez mais do que isto – seu Percival não escondia. Tutumé era uma baita cidade, até o surto de depressão, em meados dos anos vinte, que deitou a população quase por inteira. Dizem que foi logo após a temporada de um circo de ciganos. Muita gente não sustentou o troço, lembrava seu Percival, e acabou se valendo de tiro, de corda grossa, de veneno para ratazana e de afogamento: “Era o fim dos tempos! Era o fim dos tempos!”, murmurava seu Percival, que à época namorava uma donzela de pêlos escuros e volumosos, olhar manhoso e couro alvo, que terminou seus dias tenros pulando de uma ponte, entre Tutumé e Manuaba do Norte – pelo menos era a versão propagada nas cercanias, pois o corpo nunca fora encontrado. Ela atendia por Rosa – nome justo. Seu Percival ficou desconsolado: perdeu a criatura mais fogosa da face da terra. Foi nesse momento que decidiu seguir viagem por direção torta e tão cedo precisar retornar a Tutumé, terra de povo, agora, sisudo e estranho. Ele também sofreu bastante com a onda de depressão e por muito pouco não deu cabo da própria vida – por muito pouco mesmo, no entanto ele já era um touro reprodutor – não se desvaneceu. O mais dolorido foi mesmo o trágico suicídio de Rosa, com quem deitava numa redinha todo comecinho de noite para um chamego. Era aquele perfume de princesa que cegava seu Percival e, por esta razão, já havia comprado anel e tudo o mais para as formalidades legais do noivado. Queria passar a vida inteirinha com Rosa, mas a história foi interrompida pela covardia dela, que sequer deixou um bilhete dizendo “adeus, Percival!” Nada! Seu Percival se segurou para não chorar dentro do ônibus – ele era um touro, não podia esquecer. Cinqüenta anos entre Tutumé e ele – uma separação reflexa pela compleição da bunda de Rosa: que coisa louca! que gostosura! Seu Percival não insistiria em viver sem aquela maravilha e achou por bem sair correndo de Tutumé, mas, aos oitenta e qualquer coisa, decidia retomar uma lembrança bem guardada junto ao sexo de Rosa. “Era a felicidade! Era a felicidade!”, suspirava seu Percival, o touro reprodutor.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Untitled 25 (From the Soumaya Series)".

09 novembro, 2007

Suplantaram o Ribeiro


09/11/2007.


“Suplantaram o Ribeiro!”
“O quê? O Ribeiro fez o quê?”
“Não! Suplantaram o Ribeiro! Você não sabia?”
“Não! Não sabia! Mas quando foi isto? Como foi isto? O Ribeiro parecia ser uma pessoa tão direita...”
“E continua sendo. Ele é a vítima. Ele foi suplantado lá na repartição, ontem mesmo! Mal chegou do cafezinho, pronto: suplantaram o coitado do Ribeiro!”
“Escuta, mas o Ribeiro de quem você fala é aquele que comeu cocô quando era menino?”
“Este mesmo! Você com certeza lembra dele. Ele é aquele homão de cor indiana, casado com a Rita de Cássia, que alguns dizem que é a maior safada da paróquia”.
“E o Ribeiro é chifrudo?”
“Olha, particularmente, acredito que sim. Veja bem, a mulher outro dia estava lá no bar do Osvaldão num assanhamento de cobrir o rosto das atitudes. E isto ainda era pela manhã!”
“Mas qual o problema do horário?”
“Amigo, mulher que fica dando mole para outros machos em plena luz do dia não tem um pingo de caráter. Sem contar que bebia. Bebia! Está escutando?”
“Pena do Ribeiro... Ele não merecia tanto...”
“Meu caro, a vida é tinhosa! Por isso defendo o pensamento de que é na criancice que a pessoa decide seu trajeto. Veja, o Ribeiro comeu cocô menino e, depois de sei lá quanto tempo, continua sendo o preferido das chacotas. Bem, mas não é todo dia que se encontra alguém que já provou merda, né?”
“É verdade... Não é todo dia... Qual linha você vai pegar?”
“Não, vou ficar por aqui mesmo. Estava de passagem quando o avistei nesta parada. E tem mais! Dizem que o pai do Ribeiro dava uns cacetes na mulher. Onde já se viu homem bater em mulher?”
“O Ribeiro teve uma infância muito complicada... Como vai sua senhora?”
“É como digo: é na infância! É na infância! É na infância!”
“Mas...”
“Nem queria colocar o motor para pegar, mas dizem as péssimas línguas, pois somente más é pouco, e o povo gosta de falar muito, que, de tanto presenciar a mãe apanhando sem nada fazer, acabou ficando meio maricas. Mas como não há meio anão nem meio qualquer coisa, digo que o Ribeiro é maricas!”
“Exagero, colega...”
“Não! É maricas, sim!”
“Mas ele não é casado?”
“Vai lá saber o gosto dessa patota. A Rita de Cássia, no entanto, é vagabunda e vive nas esquinas do centro dando pra um e pra outro. E de manhã, meu caro, é fogo!”
“Ainda não entendi esta parte do horário. De qualquer modo, o Ribeiro não teve sorte na vida. Talvez você tenha razão. Deve ter sido durante a infância”.
“Batata!”
“Mas, independente de tudo, é desumano sair suplantando as pessoas, principalmente um sofredor como o Ribeiro”.
“Estamos falando de um sujeito que comeu cocô, amigo! O mundo tem suas deficiências, mas não é injusto! Um cara que comeu cocô! Sei não!”


Mendes Júnior.
* Photo by Josep Maria Sellarès, "Tasting".

01 novembro, 2007

Espiral


01/11/2007.


Sinto o fogo próximo. Mas quem de mim pode correr?, senão a menor parte que há pouco anunciou o fim do dia. Bem, apenas o derradeiro suspiro do dia, a lua que chega forte, jamais, jamais, jamais – ora, Judas – o fim dos tempos, pois a saideira se confunde com a tal esperança e esta saideira é a última face da vida, e isto percebi quando sentei à primeira no Orlando, não aquele da Virginia Woolf, mas o Orlando, que hoje já não corre o perigo da obesidade, pois quis a medicina estética que ficasse o mais magro dos seres. O fogo está tão próximo que cega quem o tenta enxergar – tente não, meu amor, pois o sofrimento é irmão de pai e mãe, (sangue de sangue circulando na veia), não sabia? – corra pra bem longe daqui, mesmo que as pernas não correspondam, aqui estamos mais mortos do que no cemitério, e nele consigo comprar flores artificiais para chorar como se chora pelo morto do Ananias. De qualquer sorte, pergunto, vale a pena sofrer? Há um grito lá longe dizendo que não. Mas o som é tolo, feito o meu, de gente que nada viveu até aqui. Agora queimo vivo, mas estou de malas prontas...

Mendes Júnior.

* Photo by Pierre Alechinsky, "Spirale II".

Leituras de uma viagem


Sem data.


Ao invés da capacidade permitida, exposta na placa colorida, devia ter quase o dobro de pessoas dentro do ônibus, entre sentadas e levantadas. Tinha até galinha no corredor amarrada pelo pé em alça de sacola de pano. A primeira parada foi em Itapajé – cidade muito modesta –, a fim de que os passageiros esticassem os membros e comessem qualquer coisa, não muita, pois as escolhas eram poucas: queijo coalho, paçoca e refresco de tamarindo. Márcia não estava acostumada com aquilo: moça recatada, jamais enfrentara tantos desafios por uma viagem, que eu considerava a priori desnecessária. Márcia desembarcou no meio de uma ventania de areia: suas madeixas ficaram disformes, enquanto no seu rosto escorria uma gota de suor que nunca presenciara. “Pois bem, esse é o mundo em que nasci: no nada, mas perto do fogo do inferno”, no entanto Márcia, com quem eu pretendia casar no próximo dezembro e bem distante dali, alegou que considerava importante conhecer as pessoas que me trouxeram à vida. Há anos não tinha notícias deles e me causava constrangimento revê-los depois de tanto sumiço. Talvez Márcia tivesse razão: era uma infinita angústia pelas lembranças de tempos difíceis. Pisar naquele chão não era a melhor coisa para mim, faltava-me a sensação de saudade e mais ainda de felicidade por retornar a casa, e, debaixo do calorão, minhas mãos esfriavam à medida que a viagem chegava ao seu fim. Estávamos de volta à estrada de piçarra, quase nas linhas embicadas do deserto que um dia anunciei a Márcia: Sobral – e ela sabia tão pouco de mim que se assustou quando descobriu que mentira dizendo que meus pais haviam morrido de dengue e que no lugar do casarão no qual nasci instalara-se um abrigo de mulheres públicas, ou seja, não havia mais nada a ser feito para resgatar o meu passado e a cidade pouco tinha a oferecer, mas Márcia fazia parte do grupo de mulheres teimosas, isto porque gostava de mim do jeito que me apresentei e, portanto, me obrigou a produzir provas contra mim: “Menti, Márcia!”, o que não foi problema: ela gostava com o coração. Era ligada à família e, então, resolvi comprar o bilhete que me levaria do topo da árvore até a raiz mais profunda, junto com Márcia, que durante muito tempo insistiu em me fazer companhia na travessia – acho que ela sempre soube do meu medo, embora não compreendesse exatamente a forma com a qual lidava com ele, mas queria ajudar. Lembro do seu sorriso largo e branco quando eu disse para arrumar a mala, mas com roupas leves e em pequena quantidade, pois não demoraríamos. Com tão pouco contentei a consciência – estava errado, eu sabia, mas havia a força que me afanava a dignidade. Não estava sendo justo, mas quem disse que há justiça quando se tem vergonha? Márcia, no entanto, se fascinou por tudo, inclusive pela minha história. Pena de mim: eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio – estava voltando ao lugar que não era o meu – uma ilusão.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Soumaya, Marakech, Morocco, 1999";
** Publicado no site da Revista Piauí;
*** Publicado no Jornal O POVO, em 24/11/2007.