19 dezembro, 2007

Caixa de madeira VI


19/12/2007.


Nepomuceno jamais imaginaria a existência de uma Valquíria Callas no mundo. Mas existia e roubou a cena: glamourosa, arrasou, colocou a outra no bolso – a loirinha – e foi anunciada como a estrela da noite. Valquíria Callas tinha mais cintura e busto, portanto, tratava-se de uma fruta mais saborosa e suculenta. Além do mais, em cima da bancada improvisada de passarela, Valquíria Callas era a fantasia que revestia a viúva, que se guiava pela vontade de sobreviver, coisa para qual a outra, por ainda ser de pouca primavera, não havia despertado. Faz-se necessário muito mais para permanecer viva, pensava a viúva. A festança durou até a manhã do outro dia. Dona Jussara fez questão de que a casa fechasse suas portas juntamente com a saída do último cliente, que, coincidentemente, era o caminhoneiro que havia dado uma força a Nepomuceno há dias. Mas isto sei eu que lhes conto a história, pois o senhor das estradas apreciava carne fresca, com cheirinho de sabonete, intumescida de gotinhas de moça, e acabou se deitando com a loirinha. O caminhoneiro, no entanto, não era de muita conversa, talvez sequer contasse seus últimos minutos à viúva, caso fosse ela ali arreganhando as pernas e espairecendo a marreca, quanto mais dizer que na estrada apanhou um sujeito de quem não conhecia o nome, como se fosse raro conceder carona – não, ao contrário, eram muitas num mesmo dia. A viúva jamais poderia imaginar que estava tão próxima de notícias de Nepomuceno, de quem já não tinha tanta certeza de existir. E, quando aquele homem partiu trôpego, com seu cigarro-de-palha no canto da boca, no seu automóvel com a caçamba cheia de garajau, fedendo à galinha, foi decretado o fim das comemorações do quengal.

O menino acabou cochilando no banco da praça, o qual já considerava como um segundo reduto, ou, talvez, o primeiro e único em que se sentia verdadeiramente confortável. Tomou um baita susto quando a mãe sacudiu seu braço. Quase leva um tombo. A viúva trazia na outra mão um pedaço de pão com manteiga e leite gelado para o menino saciar a fome. É verdade que não se alimentava desde a noite, entretanto, diante da escassez de comida que ambos amargavam diariamente, pelo engabelo de dona Jussara, aprendera a controlar as ânsias do estômago. Pegou então cuidadosamente o pão e começou a comer cheio de educação. Entre a pausa de uma mastigada quis saber da mãe como havia sido a noite. “Tranquila, normal e comum”, disse-lhe a viúva, ainda marcada de cores escuras no rosto e um chupão no lado esquerdo do pescoço. O menino tinha certeza de que aquele tipo de resposta não deixava brechas para nenhuma outra pergunta. Apesar da pouca idade, já compreendia muito bem determinados fatos, e este era um deles. Pediu à mãe que lhe passasse o copo de leite. Bebeu como se desfrutasse um enorme sorvete de creme com passas: arriou os olhinhos e se deixou viajar na imaginação pela roda-gigante colorida e iluminada, que circulava somente com ele, que funcionava para ele, e ele sentado numa cadeira amarela se balançando e acenando lá de cima para viúva e o tio ventríloquo, que se abraçavam, comendo maçã-do-amor, feito um bonito casal. A bem da verdade, a roda-gigante descansava pálida ao lado do banco, e isto o menino se deu conta por causa de uma leve ventania de areia que o obrigou a voltar da viagem. Como se não bastasse, ainda encheu seu leite de grãos de areia. A viúva pensava na dor daquela criança; entendia que o máximo que podia fazer – aquilo que estava ao seu alcance naquele instante – era não chorar na sua frente, assim passaria a idéia de fortaleza, segurança, que tudo estava bem e que a vida se resolveria tão logo Nepomuceno aparecesse, “caso não estivesse morto”, pensou no vazio. Então a viúva passou a mão pela cabeça do menino, tocando delicadamente as longas unhas no seu couro cabeludo, a fim de tirar um pouco da terra que se incrustou nos fios. Era tanta sujeira que desistiu. “Vamos apostar quem chega primeiro na dona Jussara?”, propôs o menino e os dois saíram correndo como duas crianças lépidas e traquinas.

Passados cinco dias, o menino quedou-se numa rede com o corpo infestado de perebas. A princípio, pensou-se tratar de catapora, pois as feridas vieram acompanhadas de uma febre muito alta, mas logo foi descartada a possibilidade por um infectologista da região, assim como qualquer espécie de verme, mas que também não conseguiu identificar qual a moléstia. Havia outros sintomas: o menino estava vomitando sangue, tinha o solado do pé e a mão esbranquiçados, a visão rareava, atormentava-se a cada minuto com uma pontada muito forte à altura do estômago e, por fim, queixava-se de uma coceira incontrolável no ânus. Em se tratando de doença, duas coisas preocupavam a viúva: quando o médico não sabia diagnosticar ou quando a danada era considerada rara, pois, em todo caso, o médico ficava no patamar do paciente: vulnerável à vontade de Deus.

O fato é que, se o menino já era magricela, ficou a ponto de desaparecer de vez – tudo que colocavam na sua boca voltava empapado de sangue. Dona Jussara, que de boba nem o andar possuía, sugeriu à viúva duas coisas: fosse embora com a peste dali ou aumentasse o apurado da casa, sobrando-lhe apenas dez por cento por cada deitada. Não havendo outra solução, optou pela segunda; depois arranjaria um meio de conseguir os remédios do filho. As companheiras de meretrício se demonstraram tão más quanto dona Jussara. Ninguém se ofereceu para ajudar. Finalmente havia chegado o momento de se vingarem por Valquíria Callas ter-lhes tomado a clientela montada na grana. Riram como se desejassem o trágico. Era a única com filho na casa, embora não fosse considerado privilégio, já que para isto dona Jussara exigia muito mais. Para quitar a dívida com o infectologista, Valquíria Callas teve de ceder o corpo muitas vezes. Mas não era exatamente isto que mais lhe tirava o sono, mas não saber do problema do menino e até onde ele seria capaz de aguentar. Nepomuceno bem que poderia estar presente para socorrer ambos, murmurava a viúva.

Com a graça divina, uma vizinha de dona Jussara se apiedou da situação do garoto e sugeriu à viúva que lhe desse baba do coco de catulé. A viúva perguntou do que se tratava. “Catulé é um tipo de palmeira que dá uns cocos bem pequenos e a baba deles ajuda a curar doenças dos olhos. É fácil encontrar lá por aquelas bandas”, respondeu uma senhora de idade, apontando o indicador para o norte. “Mas o problema dos olhos do meu filho é apenas um entre tantos mais sérios!”, retorquiu a viúva, deixando a velhota furiosa. “Pois que seu filho morrar!”, gritou.

A história da enfermidade misteriosa correu Massapê e a população exigiu das autoridades providências, e rápidas. A medida mais sensata seria afastar do convívio social o menino por medo de que o mal fosse contagioso. Para desespero da mãe, levaram-no para o isolamento do hospital público. A cena na casa de dona Jussara foi das mais horripilantes: era a viúva puxando pelo braço da criança, tentando impedir o afastamento, enquanto três brutamontes vestidos de branco, sem dificuldades, se encarregavam de colocar o fiapo de gente dentro da ambulância. Momento algum o menino esboçou reação – parecia não saber do que se passava. Ou não lhe restava força. Já há muito não enxergava nada e sentia muita falta das luzes da roda-gigante. Sonhava acordado com as fluorescentes e seus celofanes coloridos.

“Era o mais acertado a se fazer”, dignou-se a dizer dona Jussara à porta de casa.
Mendes Júnior
* Photo by Elberg, "Poupée # 12".

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