13 abril, 2008

Cadernos de viagem - Amsterdã liberal I


13/04/2008.


Lá se iam muitas horas dentro do carro. Apertados, pois éramos cinco, e quem nos garantiu ser aquele um automóvel para cinco criaturas, as considerou anãs, com certeza. Mas quando se está correndo a Europa, viajando por estradas secundárias, visitando cidadezinhas aconchegantes, de casas elegantes, vida pacata e silenciosa, quase a nos fazer crer que problemas ali são inexistentes, nem o calor do rígido verão europeu nos roubaria toda a mágica. Pois bem, como “insinuava” anteriormente, muito se passara. Não dava para considerar o tempo pelo céu, ou seja, além janelas, pois escurecer mesmo no verão somente quando noite alta, já se aproximando da madrugada, e aquilo era uma doidice que ainda não estávamos acostumados. De repente, atracamos em Amsterdã, na bela Amsterdã às escuras. Pensávamos em coisa de dez da noite, um pouco mais, um pouco menos, mas qual nada, já badalava a segunda hora do novo dia no eminente relógio da única torre de Oude Kerk, uma igreja de estrutura gótica construída no século 13, que ficava próxima a um dos muitos canais da cidade. E nos hospedaríamos bem perto dali, num albergue até gentil e confortável, não fosse administrado por freiras, o que significava que muitas restrições nos aguardavam. Não estávamos errados. Engraçado, e por que não dizer contraditório, se recolher num ambiente dessa natureza em plena cidade de Amsterdã, de tantas idas e vindas na “evolução da sociedade”, a seu modo, é claro, concordando ou não. Mas o fato é que não sabíamos quase nada sobre o bairro, que durante os quatro dias seguintes nos acolheria. No entanto nossos olhos, em progressão geométrica, nos davam certa medida da vizinhança. E nem poderia ser de outra maneira, do contrário, não estaríamos no Red Light District – o desinibido bairro da Luz Vermelha, onde as coisas aconteciam, onde tudo era permitido, possível e desnudo, sem frescuras nem constrangimentos nem reprimendas, onde o amor, mesmo fácil e barato, era válido, onde todos, homens e mulheres, se sentiam a la vonté. Aquela era parte da Amsterdã que queríamos desfrutar, mas não para usufruir das benesses da sua bem estabelecida liberdade sexual, que, por certo, nos chamava a atenção e nos causava cada vez mais curiosidade, acertadamente, e sim para entender como se comporta a diversidade cultural, seja do âmbito que consideremos. Não é simples quando se vive soterrado em dogmas e normas criadas por gente que existiu sabe-se lá quando e executadas por pessoas de quem não conhecemos mais os nomes. Acontece que em Amsterdã se respira um ar leve (sobremaneira), limpo, cristalino, brilhante, sem a “mancha escura do pântano”, sem que seja necessária a aquiescência dos seus pares, sem um ritmo pré-estabelecido – a música pode ser dançada em outro tom. É como se saíssemos de um aprisionamento secular, de uma cegueira perdulária e de uma empelota extremamente vedada – eis que desejo profundamente serem aceitas as minhas metáforas. De modo que é sensato acharmo-nos uma patota de náufragos, a ponto de sermos engolidos pela besta-fera de cabeça oca, bitolada, sem rumo, sem idéia de espaço, mas não no sentido físico – moral é o que quero dizer, pois esta prosa é moral (sem pretender ser moralista). Espere que qualquer dia levarei você ao bairro da Lua Vermelha (...).
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior (Canal 1 - Amsterdã).

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