15 julho, 2008

Portas azuis


15/07/2008.


As batidas das portas do fundo provocaram arrepios em Madalena, haja vista sua mão que não desgrudava do meu pijama. Apertava com mais vigor a cada nova bordoada. Suas unhas descascadas e longas, antes apenas maliciosas, perfuraram o pano e cravaram na pele da minha cintura. Pedi que se acalmasse, não era nada demais, apenas um forte vento anunciado mais cedo pelo cheiro da terra. Disse-me que, em pesadelo na noite do santo, havia acontecido exatamente igual: o telhado desabaria em pouco tempo. Claro que não lhe dei ouvidos. Num esforço que só Deus era testemunha, levantei-me; fui até a cozinha resolver o problema que me tirava do sono. Até o Biriba estava com uma expressão de medo – um gato que herdara junto com a casa. Buscou abrigo ao lado da geladeira, diante do olhar vigilante de um pingüim de cerâmica, que, do alto, planificava o abatimento daquele que ameaçava seu território. Vez ou outra Biriba levava um choque e miava estranho. O pingüim de cerâmica insuflava o peitoral alvinegro. Das três portas, somente duas estavam escancaradas; faziam movimentos compassados, mas de forma a se desvencilharem das paredes antigas.
A casa foi herança de uma tia, que talvez se chamasse Francisca das Dores. Estava talhado no tronco da árvore que ficava no quintal: “Quintino Alves e Francisca das Dores, eternamente”. No cartório, o que se leu foi bem diferente: Marlúcia Dias, que morrera aos cinco dias de fevereiro do mesmo ano, solteira, deixou ao único familiar, eu, o casarão da rua Moraes de Figueiredo, bem como todos os bens móveis de seu interior e semoventes. Madalena e eu nos mudamos no começo do outro ano.
As portas eram azuis, como azuis eram os olhos do Biriba, que nunca estiveram tão esbugalhados quanto durante a ventania. Madalena gritava pelo meu nome quando subi na cadeira para fechar os ferrolhos de cima. Portas com fechaduras no alto, no centro e no chão, altas, grossas, sem maçanetas e com dobradiças enferrujadas e alardeadeiras. Foi necessária muita força até descobrir que era incapaz fechá-las. Levei uma pancada no rosto e cai de costas. Durante um período, fiquei olhando o telhado; imaginei o pesadelo de Madalena se tornando realidade. Senti um molhado na perna. Não havia reparado, mas descia um fio de sangue da minha cintura. As unhas de Madalena agora me pareceram uma navalha. Do meu nariz, já era diferente: o sangue jorrava.
O vento não dava trégua e o barulho começou a vir de outra parte – talvez da entrada do casarão. A terceira porta do fundo também se abriu. A minha impressão foi de que não havia separação com o lado de fora, como se não mais existissem paredes, somente o teto. Por sorte, não chovia. Madalena, de tanto gritar, deve ter cansado e dormido. Não consegui me mexer; permaneci deitado no chão. Olhei de lado e não vi o Biriba. No alto, vigas sólidas prendiam telhas cobertas de uma camada esverdeada; nas madeiras mais finas se viam agarradas cascas de laranja – meninices de outras épocas. O telhado não desabaria, pensei comigo, enquanto ao meu redor se formava uma enorme poça de sangue. Minha vista foi ficando turva, as imagens desaparecendo e os ossos sendo assolados por uma frieza incomum; notei meu corpo afastado de mim: não comandava ação alguma. Madalena, minha doce Madalena, você estava com a razão: não há mais teto para mim; o breu é o que tenho diante dos olhos; tudo se fez noite; miro o telhado e não dou com ele.
O rumor continuou vindo das portas em encontrões até o amanhecer, mas Madalena, por dormir em profundidade, já não escutava. Biriba, de um salto, se juntou ao pingüim de cerâmica em cima da geladeira; ficaram amigos; às vezes brincam no quintal, ao pé da árvore. Sobre suas cabeças, dias ensolarados e noites estreladas. Por sorte, nunca chovia e o casarão permanecia seco.
Mendes Júnior
* Painting by David de Almeida, "Fan 8".

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