30 agosto, 2008

A vendedora de maçãs




"La vida sin miedo
resultaba inconcebible"
Juan José Millás

Acordou durante a noite alta banhada em suor, com uma repentina vontade de arrancar, com unhas e dentes, as próprias vestes, rasgá-las descontroladamente, a fim de aliviar o bico extremamente disforme do peito, a barriga e o umbigo, que era a essa altura uma miúda poça de água com cheiro de talco. Dia sim, dia não, antes de deitar, empanturrava-se de talco – inocentemente, cria nesta fórmula para ficar mais alva – não gostava da sua morenice, queria mesmo era ter nascida gente branca. Disse qualquer coisa incompreensível enquanto ainda dormia. Salpicavam de sua boca grunhidos que se confundiam com momentos de dor. Contorcia-se em cima de praticamente uma tábua com colcha de retalhos. Até que foi tomada de assalto por um pesadelo tenebroso, medonho e repugnante, de fazer a lua se apagar, de causar o encerramento das chuvas de março e abril, de impedir, portanto, o sangramento do bonito açude do Jaibaras: ela tinha sido colhida por um desses caminhões de pequenas mudanças, um “pega-se frete” abaçanado, com a caçamba lotada de móveis e outros utensílios humildes, entre as movimentadas avenidas Virgílio Távora e Dom Luis. Foi tudo tão real e duradouro que, de olhos esbugalhados e já atentos para a realidade, custou a acreditar se tratarem de imagens criadas pelo seu inconsciente ou subconsciente, vai saber!, enquanto dormia profundamente em razão da estafa de mais um dia de labor intempestivo. Além do mais tinha sido um dia difícil: uns pivetes tentaram levar seu cesto de maçãs, mas um rapaz que montava jogo do bicho em uma das esquinas impediu o desfecho do roubo. A danada era tinhosa que só ela – sequer ofereceu uma de suas maçãs como agradecimento pela audácia do moço, nenhuma palavra, apenas concedeu-lhe um sorriso que mais parecia um “não fez mais do que sua obrigação de homem-macho”.

Nunca havia passado por nada parecido. O mais estranho na película fantasiosa da mente era o fato de que assistira à bizarra cena de sua morte como se fosse uma mera espectadora, tal qual uma pedestre plantada esperando o semáforo lhe conceder a vez, quando, de repente, acaba flagrando um acidente fatal e normal em dias como aqueles – véspera de carnaval – de motoristas embriagados e desatentos. Mas o que viu era para lá de incomum: nitidamente sua cabeça foi estraçalhada pelo pneu dianteiro do caminhão. Era como se pudesse internalizar a dor. Sentiu inclusive o cheiro ruim do sangue correndo pela rua igual água nas manhãs chuvosas. Escorregadio ficou o solo. Tudo sufocava. Pensou que poderia ser por há tempos não freqüentar a missa, mesmo diante da insistência de sua mãe, religiosa de carteirinha, que já levara até o Pároco em casa a fim de dar à única filha conselhos cristãos. Só poderia ser esta a maçaroca a lhe tirar o sossego. Nem em datas importantes, tais como Natal e Semana Santa, ia mais à missa. Talvez um aviso; também o preço que se pagava por denegrir a religião, que mal não poderia causar, decerto, senão o acondicionamento da alma diante da fúria da pós-modernidade, como alguns gostam de alardear a três por dois.

Pois era tanto do sangue que quis vomitar. E ali, ainda deitada, sem conseguir se refazer da embriaguez do pesadelo, estava ela salivando um azedume de cachaça. Jamais pensara no sangue como naquele momento. Impossível ter imaginado a textura da parte que ficava armazenada na cabeça, até então: uma papa consistente que recobria por onde deixaria suas pegadas de suposta transeunte, misturando-se aos calombos do asfalto causados pela quentura do meio-dia. A consistência do líquido lembrava-lhe a batida de rum que seu pai bebia e que, por causa dela, morrera de problemas no fígado num leito público.

Condoeu-se da criatura acidentada, da infeliz que era ela própria, sem falar na repugnância da imagem da mulher de saias com apenas um pedaço da cabeça, pernas arreganhadas, vestida dentro de uma calcinha preta de algodão que não cobria devidamente os pêlos pubianos. A camiseta de malha puída, agora completamente esfarelada pela grosseria da borracha em movimento, seios flácidos e gigantescos à mostra, assim como eram fartos os seus cabelos, que, aliás, foram arrancados e separados em nacos, que já eram incapazes de esconder sua alma despudorada, de quem não recebia sequer os cumprimentos do Pároco.

Lá estava ela, despachada e amassada a Deus dará; uma mula-sem-cabeça, mas que não atrapalhava o trânsito – uma brincadeira a que sua mente se permitiu.

“Perfeitamente aceitável sonhar com a própria morte” – atinou tentando encontrar justificativas para o injustificável. – “Mas o que dizer quando se vê tudinho, ao vivo e a cores?”

Os lençóis estavam empapados. A cama parecia uma pequena piscina, mas a sensação continuava a de um calor intenso, portanto, uma piscina encostada no inferno, com uma improvável termoluminescência interna, proveniente sabe-se lá de onde, em que se fervia constantemente o líquido à temperatura de descamar as costas e o teto da boca. Num caldeirão, isso sim, foi onde pensou estar dormindo até bem pouco tempo. No quarto havia uma janela que se abria em duas partes, e estava escancarada, ventava em demasia, mas o fogo advinha de dentro, da cortiça que cobria sua espinhela.

E seu ganha-pão, as famosíssimas maçãs, vermelhas que só vendo!, que eram propagadas pela gostosura (e por que não ressaltar a honestidade no tamanho?), desde os funcionários dos Correios até os advogados de uma banca próxima, descia a ladeira desgovernado, apressado e intocável, para rumo incerto e ignorado, até desaparecer, sem que ela pudesse fazer absolutamente nada – estava morta e mortos não têm direito a movimentos. Logicamente, faltava-lhe esta reação. Mas não precisaria mais vender maçãs nas esquinas de Fortaleza, nem de qualquer outra cidade, incluindo a sua: Manuaba do Norte, para manter a pose e o nariz empinado de outrora. Necessitada a menina, mas cheia de charme nas ventas. Não admitiria a pobreza até se se prestasse ao confessionário.

De certa maneira, também se sentia aliviada, (há tempos reclamava de cansaço à mãe, com quem dividia um casebre, que dizia ser um palacete escondido num lugarejo mágico), principalmente aliviada do risco iminente de um câncer de pele pelas infindáveis horas expostas ao sol abrasador de todo dia. Naquele instante, pensou, porém, não se fazer mais necessário qualquer dinheiro, já que pedaço no céu não se comprava. Sabia, contudo, que seu lugar junto aos anjos deveria ter sido conquistado através da força alastrante das boas atitudes, mas enquanto vivíssima e mediante benfeitorias colocadas em prática no plano terreno, como resultado de um mandamento bíblico. Isto aprendera durante as aulas de catecismo da professora Marly Alves, na época em que era uma estudante aplicada na Escola Normal. Aquilo lhe imbuiu um medo súbito.

O tempo quedava-se tarde, concluiu. E por quantas vezes agira como uma escrota! Uma filha-da-puta era ela! Gordurenta e morta! E suas maçãs rolando a perder de vista. E ela imersa em água fervendo, certamente das bandas do inferno. Pior do que o atropelamento em si foi pesar a falta de atenção das pessoas para com sua morte, justo de um público sempre tão sedento pela desgraça alheia. Apenas ela se dava conta de alguma coisa fragmentada por um caminhão de frete; tão-somente ela gritava num desespero estreito apontando para a vendedora de maçãs morta à luminosidade do farol tricolor. Ninguém a contemplou. Nem ao acidente, embora tenha havido um grande barulho quando o caminhão arrebentou uma porção de ossos fortes. Não houve quem reparasse no sangue esparramado no cruzamento entre as duas avenidas agitadas, cobrindo, por assim dizer, a cidade de vermelho, como vermelhas eram as maçãs.
Mendes Júnior
* Conto selecionado no II Concurso Nacional de Literatura Arti-Manhas, em 2008, publicado na coletânea "Contos Escolhidos";
** Painting by Valera Iskhakov, "Red woman with apples".

Indicações Musicoliterárias

Capa Selo Dubas

Capa Selo Elenco

Queiram me desculpar pela demora: estive ausente. Mas, - se bem lembro -, tratava de mencionar discos "envolventes" da Bossa Nova, pelo seu aniversário. A música, no entanto, por trás de sua melodia e letra, toda sua arquitetura, a emoção que assola o coração mais sensível, esconde personagens interessantes, vistas em sua maioria quando alguém resolve dividir com o grande público histórias de bastidores, peculiaridades, um pouco de suas vidas, (respeitada obviamente a intimidade do amor), algo de suas lutas, os obstáculos etc. Pois bem, três mulheres que devem constar em qualquer manual de Bossa Nova, sob pena de uma falha imperdoável, são Sylvia Telles, Dolores Duran e Maysa, a mulher que nunca deixou de parecer sofrida. Como disse o biógrafo da Bossa Nova, Ruy Castro, em "Chega de Saudade", estas três damas, com suas canções de dor-de-cotovelo, "foram as cantoras mais influentes da década de 50". Pena que morreram muito novas: Dolores com 29, Sylvinha com 32 e Maysa com 41.

Pretendo dividir a prosa, começando com Sylvinha Telles. Esta mulher de olhos perfeitos e sorriso largo, foi "descoberta" cantora pelo pai durante uma apresentação no programa "Calouros em desfile", de Ary Barroso, na Rádio Tupi. Isto numa época em que mulher cantar e tocar era, de certa forma, inaceitável. Mas o pai gostou do que ouviu, não bastasse ter namorado João Gilberto em 52, e deduzia não ter mais meios para impedir a filha. Tempos depois, Sylvinha foi convidada a trabalhar num teatro de revista, local de pouca reputação, para cantar a música "Amendoim torradinho", de Henrique Beltrão, e não recusou, mesmo diante do protesto de alguns amigos e do irmão, Mário Telles. A partir daí, a Odeon convidou Sylvinha a gravar "Amendoim torradinho"; era julho de 1955; além do amendoim, tinha a música "Desejo", de Garoto; as rádios adoraram. Tratava-se Pronto, Sylvinha viraria estrela do rádio, do disco e da televisão, a primeira cantora de Bossa Nova do Brasil, segundo Roberto Menescal.

Como uma justa homenagem a uma das mulheres mais importantes da Bossa Nova, e da qual pouca gente lembra e fala, indico um disco sensacional: "It might as well be spring", com o selo Dubas, cuja edição original é de 1965, pela Elenco, com arranjos de Lindolfo Gaya. O disco é uma reunião de clássicos da Bossa com versão em inglês, portanto, um desfile de músicos de primeira linha: Menescal, Bonfá, Luiz Eça, das Neves, Russo do Pandeiro, entre outros tantos. Felizmente, mesmo tratando de versões americanizadas da música brasileira, Menescal nos conta que Ray Gilberto, o versionista que atuou muito na ponte Estados Unidos - Brasil, veio morar por aqui e trabalhou diretamente com cada um que participou do disco - não queria perder a métrica. O disco virou referência e muitos artistas americanos gravaram alguma de suas músicas, tal foi o caso de Sarah Vaughan.

A seleção é maravilhosa: "Você" e "Tetê", de Menescal e Bôscoli; "Rain (Chuva)", de Durval Ferreira e Pedro Camargo; "Balanço Zona Sul", de Tito Madi; "Pardon my english (Samba torto)", de Tom e Aloysio de Oliveira; "If you went away (Preciso aprender a ser só)" e "The face i love (Seu encanto)", de Marcos e Paulo Sérgio Valle; e outras. Por fim, um ponto interessante que deve ser ressaltado: as capas tanto da edição da Elenco quando da Dubas são do lendário Cesar Villela, que não tocou nenhum instrumento nem cantou, mas que marcou sem dúvida a Bossa Nova.

Esteja dito, mas continua.

Mendes Júnior

15 agosto, 2008

Laranja


Celeste chorava copiosamente ao meu lado. Estava deveras constrangido, pois as pessoas mais próximas, que queriam assistir à apresentação, se sentiam incomodadas com aquela ladainha fanhosa, e a todo instante pediam silêncio, com o indicador colado à boca, o que poderia ser considerado mais do que natural – grosseria grande era o comportamento de Celeste. Desde muito antes, dentro mesmo do carro, ela esboçava um berreiro, embora tenha conseguido manter o rosto enxuto até a primeira vodca. Celeste continuava estranha. Além de todas as esquisitices, era a única pessoa no mundo que bebia vodca sem gelo. Pedia apenas uma laranja cortada ao meio e espremia uma banda por dose, às vezes alterando tão-somente a coloração. Havia uma legião de amigos que sempre votava contra Celeste encarar a vodca nesses moldes, já que volta e meia se excedia e acabava por se arrepender no dia seguinte de alguma bobagem que cometia, no entanto, com a promessa de tudo acabar bem, enfiava a bebida praticamente em estado bruto – quase uma fogueira descendo pela goela; quase uma roseta de arame farpado rasgando a alma.
O fato é que ainda não conhecia o porquê do desalento de Celeste e aquilo ficava cada vez mais desconsertante.
“Qual o problema, Celeste?”
Celeste fazia de conta que não era com ela e sequer se dignava a virar o rosto para o meu lado. Fixava o olhar no palco. Tinha um cigarro no canto da boca. Sentia pena de Celeste: ela vivia solitária num minúsculo apartamento, sem gato, sem cachorro, sem parente, sem marido, só com seus livros e discos. Disse-me certa vez que companheiros mais sinceros do que os livros e os discos não há – “Eles nunca o abandonam”.
“E eu, porra?”
Mas Celeste me fez um carinho no pescoço e entendi que eu também era importante para ela. Estávamos nus, deitados no tapete da sala, escutando Freddie Hubbard e fumando um baseado. Tínhamos acabado de fazer mais um sexo sem compromisso. Na vida, raros são os momentos de plena paz e Celeste sabia como fisgá-los: pediu um minuto e foi até a estante apanhar um livro. Celeste não era magra, mas não se podia dizer que era gorducha. Celeste era a mulher na medida para o meu gosto. Ao andar, suas mamas balançavam, e me dava prazer ficar observando os movimentos tanto das tetas quanto das nádegas de Celeste, que também se deslocavam de forma peculiar, muito embora com mais timidez.
“Olha que coisa bonita!”, disse-me Celeste, abrindo Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, para ler um trecho. Antes, ressaltou que se tratava da história de uma interessante mulher.
(O pensamento de Teresa se destacava do corpo desconhecido que elaborara para sua alegria; cansava-se de sua felicidade, experimentava a saciedade do imaginário prazer – inventava outra evasão).
Terminou e ficou parada, esperando que eu dissesse alguma coisa, mas ainda tentava entender se havia relação entre Teresa e Celeste. Talvez não houvesse, apenas uma passagem ficcional, ou, quem sabe, poderia haver até demais: Celeste estava inclinada a pensar um mundo sem os escrotos de plantão e repetia em tom solene que sua maneira de enxergar a porcaria da vida havia mudado: estava cansada e cagando para gente feito eu.
“Eu, porra?”
Celeste me pediu sinceras desculpas. Enlouquecia. Há dias vinha desenvolvendo uma revolta incomum e, portanto, que não levasse em consideração algumas coisas de que falava. Gostava muito de mim, tranqüilizou-me, completando: na amizade não temos de nos explicar, mas entender que todos sofremos e que não por isto deixamos de amar uns aos outros, e era isso que queria de mim naquele instante da sua vida: compreensão e reciprocidade dos sentimentos, não só quando na magia legítima do sexo, mas por todo o sempre, mesmo que isto custasse uma lasca do couro das costas. Celeste era pragmática na maioria de suas falas, apenas no afloramente da inibida veia poética é que surgia com um certo obscurantismo, que me deixava imerso num enorme ponto de interrogação. Qual a Teresa? Qual a Celeste? Continuamos, ao som de Arietis, bebendo e dando tapas no baseado. O cheiro da mão de Celeste tinha assumido a conotação cítrica da laranja enquanto a minha parecia estar dentro de uma luva de ervas.
Realmente, notara que Celeste estava variando de humor ultimamente. O pior é que não se entregava, não queria conversar sobre o mal que a atormentava. Claro que eu insistia, mas não havia meio de decifrar a nova Celeste. Ela me perguntou o que eu achava dos poetas malditos, mas, mesmo que quisesse, não seria capaz de dizer algo atraente e preferi me quedar no silêncio. Melhor do que dizer babaquices. Sou daquele tipo que quando não domina determinado assunto me calo rápido, a fim de não passar vexame desnecessariamente.
“A Celeste agora só se ocupa com os malditos” – falou na terceira pessoa, e isto me deixou ainda mais intrigado. – “Franceses são uns merdas fodões! Você não acha?”
Os raios da manhã já entravam pela janela. A noite e a madrugada se foram bandidas. Resolvi tomar um banho quente na banheira de Celeste. Não sei se pela vodca, pela maconha ou pelo cansaço, mas Celeste, ao tentar cortar uma laranja, acabou acertando a mão, abrindo uma fenda de médio porte, e o sangue se misturou ao cheiro da laranja. Contou-me o que aconteceu quando entrou na banheira, pois fiquei assustado ao notar a água se avermelhando.
“Porra!”

(...)

Celeste não parava de chorar.
“Qual o problema, Celeste?”
“Nada”.
“Mas como nada? Você está mal e persiste na idéia de não se abrir comigo. Por quê?”
“Por nada”.
No acanhado palco da boate, um tal de Juan Miranda entremeava no piano baladas cubanas e jazz. Achei que Celeste fosse aprovar meu convite, mas só me decepcionava.
Lembrei de Teresa. Melhor: do pouco que conhecia da personagem de Mauriac. Queria saber mais sobre sua história, entretanto me restava unicamente o fato de que Teresa estava cansada da felicidade, e talvez fosse esta a tormenta de Celeste: cansaço. Mas Celeste nunca foi feliz, portanto, sua fadiga poderia ser de tudo: da vodca, da laranja, do sexo, da solidão, de mim ou do Juan Miranda, que agora tocava uma habanera, chamada Mariposita de primavera, menos por excesso de felicidade. Celeste era uma mulher arrasada desde que sua irmã falecera num acidente de automóvel. Assim como Teresa, não conhecia muito da irmã de Celeste, apenas que era mais nova e que recebia os cuidados da mais velha, pois cresceram diante da ausência dos pais. Celeste era tudo que a menina tinha e vice-versa, razão pela qual ficou desamparada quando ligaram no meio da tarde avisando da fatalidade.
Celeste me propôs irmos para o seu apartamento. A laranja estava exageradamente doce e aquilo lhe causava náuseas. Achei que fosse brincadeira de Celeste jogar a culpa na laranja, mas vi que ainda chorava e preferi não aborrecê-la com minhas teorias de comportamento. Claro que aceitei ir com Celeste, raramente a contrariava. Durante o caminho até o carro, senti uma enorme vontade de segurar sua mão, porém a desocupada era a que tinha a cicatriz e eu não achava confortável. Na outra, um cigarro enodado de batom escuro.
“Celeste, tenho pena de você”.
“Também tenho”.
“Por que então não me fala o seu problema?”
“Você não iria entender”.
“Por que não tenta?”
“Você não vai entender”.
“Por quê?”
“Vai à merda!”
Talvez o pensamento de Teresa explicasse a nova Celeste; talvez explicasse qualquer coisa. Não é a felicidade o âmago da questão, mas se apartar do corpo que ora nos é desconhecido, amargo e podre, é mudar tudo, é correr léguas até o gozo, é vestir uma outra fantasia, seja ela de Apolo ou Dionísio, é sujar o rosto quando necessário, é pagar o preço.
Celeste já não chorava. Celeste já não cheirava à laranja.
Mendes Júnior
* Conto selecionado no Prêmio de Literatura Unifor 2007
** Photo by Mendes Júnior