05 outubro, 2007

Caderno de Viagem – Mito e história e estória


05/10/2007.


Amanheci com saudades de Buenos Aires e do seu ar europeu. Aliás, é até difícil não se imaginar caminhando pelas ruas parisienses, quando em Buenos Aires, com seus charmosos cafés e sua gente bem vestida e bonita, de qualquer sexo – também se respira moda alta por lá. Mas é interessante observar o comportamento nativo e dele tirar algumas conclusões adocicadas. Por exemplo, vive-se de mitos, e eles são muitos.

Maradona é um mito. E não importa nada se o craque do esporte bretão tenha se envolvido com drogas pesadíssimas, visitas várias a clínicas de recuperação, grossas confusões, Cuba, gol com a mão e outras lendas, (que nem tanto), ninguém, até hoje, jogou tão maravilhosamente, magnificamente, espetacularmente bem quanto ele, nem mesmo Pelé ou Garrincha, e seu retrato está em todos os lugares: camisetas, muros, propagandas, guias, calçadas, enfim... É item inclusive de casa noturna, onde, depois das três da madrugada, Maradona e seus amigos certamente serão encontrados.

Carlos Gardel é outro mito: mesmo depois de falecido se considera que esteja cantando tango melhor do que antes. A música Por una cabeza está cada dia mais rica. E não importa nada se Carlos Gardel tenha chegado para viver na Argentina a partir dos dois anos de idade, vindo de Tacuarembó (Uruguai) ou Toulouse (França), ele é nascido argentino e ponto final. Mi Buenos Aires Querido é o segundo hino oficial do país, merecidamente melódico e cheio de suavidade. Escutando-o é provável que se pense num blank verse ou numa canção emergida na soledade de Cabo Verde, ou, quem sabe ache, um exagero de minha parte, mas veja: “El farolito de la calle en que nací / fue el centinela de mis promesas de amor, / bajo su quieta lucecita yo la vi / a mi pebeta, luminosa como un sol (...) Mi Buenos Aires / tierra florida / donde mi vida / terminaré”.

A história de que em uma única rua de Buenos Aires há mais livrarias do que no Brasil inteiro é um mito para estufar o peito portenho. Mesmo que fosse possível tal comparação, não significaria dizer que se tenha mais leitores por ter maior número de livrarias, que, aliás, se consegue encontrar nas suas estantes algumas pérolas de Borges, Cortázar, Sábato e Soriano. E não importa nada se, de acordo com o mais recente censo divulgado pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), temos 2.680 livrarias de Norte a Sul – o dobro, portanto, da Argentina –, o que vale é a idéia de que eles são culturalmente superiores, inclusive na adversidade, já que, na América Latina, dizem não haver outro lugar que tenha tanto psicólogo per capita quanto na Argentina.

Existem outras questões pontuais, como a Avenida 9 de Julho, dita a mais larga do mundo, e a Avenida Rivadavia, a mais longa (também) do mundo; o Teatro Colón, que, assim como o Metropolitan House, em New York, e o Scala, em Milano, está entre as melhores casas de ópera (também) do mundo; o Rio da Prata, que banha Buenos Aires, é o mais largo (também) do mundo, chegando a medir 90 km entre as margens. E curiosidades não faltam: por exemplo, o ônibus, a caneta esferográfica, o sistema de impressão digital e o doce de leite são inventos argentinos; ou o fato de Buenos Aires ter sido fundada duas vezes, e seu primeiro nome ser Ciudad de la Santísima Trinidad y Puerto de Nuestra Señora la Virgen María de los Buenos Aires.

Buenos Aires é uma cidade mitológica, imponente e curiosa, e não importa nada, nada, nada se você não a enxergar assim.
Mendes Júnior
*Photo by Ernesto Rolandelli, " Puerto Madero II".

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