21 novembro, 2007

João dos Santos (ou manhã à moda impressa no jornal)


Sem data.


Depois daquela manhã, na 12ª Delegacia de Polícia, tudo poderia mudar. Enfim, retificar-se-ia a espúria escrita de que os nascidos da pobreza são dados ao banditismo. João Clisteres Bivandi dos Santos tinha vinte anos de fome e os dois primeiros anos da vida de parcas condições de sobrevivência, mas estava de pé para contar a história: vivo. Com vinte e dois anos, finalmente, arrumaria uma ocupação digna. É claro que tivera às fuças um ambiente propício às vias tortuosas da marginalidade, mas decidira cedo negar toda e qualquer facilidade advinda do crime.

João dos Santos – abrasileirando sua graça – nasceu de um parto mal sucedido: foram sete meses na barriga de uma meretriz, que vendia o esquálido corpo no Trenzinho de Chica Fulepão, e, ainda assim, conseguira ser cuspido de suas entranhas para tombar no solo infértil das ruas. O pai era um politiqueiro da cidade. Segundo as más línguas, deixou de visitar os lençóis amarfanhados quando soube que seu sêmen havia procriado uma criatura. Aos nove anos perdeu a mãe para um amante endiabrado, passando a viver de acordo com os domínios d’Ele. Entre noites em claro e profundo abandono, lutou para ver chegar (sempre) os raios de um novo dia.

Em suas idas e vindas pela praça da Sé, João dos Santos conheceu, além da escória da humanidade, seu Alfredo Tamboril, dono de um armazém de trigo. Acabaram "chegados" e seu Alfredo, por tanto escutar histórias do coitado João dos Santos, lhe ofereceu um emprego de estivador. João dos Santos não pensou duas vezes. Em vinte e dois anos, fora renitente em não cair nas armadilhas urbanas, o que lhe conferia uma firmeza de caráter. O trabalho era apenas consequência da sua força de vontade. Para tanto, seu Alfredo Tamboril exigiu o mínimo: um passado sem máculas, mas atestado pela polícia.

Acontece que na 12ª DP, ao tentar conseguir o documento que seria sua alforria do mundo dos vagabundos, houve um princípio de algazarra pelo roubo do telefone móvel da delegada de plantão. E alguém apontou o dedo para João dos Santos.

“Tu tá preso, cabra safado! É muita audácia! Na própria Delegacia!”
“Não roubei! Foi o moço que estava sentado do meu lado. Vi quando ele pegou o negócio e saiu correndo”.
“Aquele lá nós conhecemos das redondezas. Não é metido com celular. O lance dele é som de carro. Tu escondeu? Fala logo, seu merda!"
“Seu polícia, só vim aqui pra pegar uma folha corrida pr’um emprego. Tenho nada, não!”
“Mas é um escroto mesmo! Fala logo! Cadê o celular? Vamos, porra! Diz logo, se tu não quiser apanhar na frente de todo mundo!”

João dos Santos ficou mudo. Levou um soco na boca do estômago vazio.

Portanto, como observado, João dos Santos, de história pregressa irretocável, foi confundido com ladrão e preso, perdendo a oportunidade única que tivera na vida. Uns dizem que foi por causa do preconceito, já para outros o determinante foi seu lado paterno. A certeza que se tem é a de que João dos Santos partiu em busca da folha corrida limpa e alcançou, sem querer, os antecedentes criminais.



Mendes Júnior
* Texto publicado no Jornal O POVO;
** Photo by Sigal Avni, "Untitled".

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