01 novembro, 2007

Leituras de uma viagem


Sem data.


Ao invés da capacidade permitida, exposta na placa colorida, devia ter quase o dobro de pessoas dentro do ônibus, entre sentadas e levantadas. Tinha até galinha no corredor amarrada pelo pé em alça de sacola de pano. A primeira parada foi em Itapajé – cidade muito modesta –, a fim de que os passageiros esticassem os membros e comessem qualquer coisa, não muita, pois as escolhas eram poucas: queijo coalho, paçoca e refresco de tamarindo. Márcia não estava acostumada com aquilo: moça recatada, jamais enfrentara tantos desafios por uma viagem, que eu considerava a priori desnecessária. Márcia desembarcou no meio de uma ventania de areia: suas madeixas ficaram disformes, enquanto no seu rosto escorria uma gota de suor que nunca presenciara. “Pois bem, esse é o mundo em que nasci: no nada, mas perto do fogo do inferno”, no entanto Márcia, com quem eu pretendia casar no próximo dezembro e bem distante dali, alegou que considerava importante conhecer as pessoas que me trouxeram à vida. Há anos não tinha notícias deles e me causava constrangimento revê-los depois de tanto sumiço. Talvez Márcia tivesse razão: era uma infinita angústia pelas lembranças de tempos difíceis. Pisar naquele chão não era a melhor coisa para mim, faltava-me a sensação de saudade e mais ainda de felicidade por retornar a casa, e, debaixo do calorão, minhas mãos esfriavam à medida que a viagem chegava ao seu fim. Estávamos de volta à estrada de piçarra, quase nas linhas embicadas do deserto que um dia anunciei a Márcia: Sobral – e ela sabia tão pouco de mim que se assustou quando descobriu que mentira dizendo que meus pais haviam morrido de dengue e que no lugar do casarão no qual nasci instalara-se um abrigo de mulheres públicas, ou seja, não havia mais nada a ser feito para resgatar o meu passado e a cidade pouco tinha a oferecer, mas Márcia fazia parte do grupo de mulheres teimosas, isto porque gostava de mim do jeito que me apresentei e, portanto, me obrigou a produzir provas contra mim: “Menti, Márcia!”, o que não foi problema: ela gostava com o coração. Era ligada à família e, então, resolvi comprar o bilhete que me levaria do topo da árvore até a raiz mais profunda, junto com Márcia, que durante muito tempo insistiu em me fazer companhia na travessia – acho que ela sempre soube do meu medo, embora não compreendesse exatamente a forma com a qual lidava com ele, mas queria ajudar. Lembro do seu sorriso largo e branco quando eu disse para arrumar a mala, mas com roupas leves e em pequena quantidade, pois não demoraríamos. Com tão pouco contentei a consciência – estava errado, eu sabia, mas havia a força que me afanava a dignidade. Não estava sendo justo, mas quem disse que há justiça quando se tem vergonha? Márcia, no entanto, se fascinou por tudo, inclusive pela minha história. Pena de mim: eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio – estava voltando ao lugar que não era o meu – uma ilusão.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Soumaya, Marakech, Morocco, 1999";
** Publicado no site da Revista Piauí;
*** Publicado no Jornal O POVO, em 24/11/2007.

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