25 janeiro, 2008

Caixa de madeira VII


25/01/2008.


Durante mais de cinco meses o menino apenas recebeu a visita de médicos. Aliás, muitos e muitos médicos. Até de profissionais mais graduados, tanto de Sobral, cidade circunvizinha, quanto da capital. Mas não houve estudo nem compêndio capazes de decifrar aquele mistério da medicina. Enquanto isso, a pobre criatura se definhava num minúsculo quarto de hospital, que ficava encostado da lavanderia, nos fundos do prédio já bastante desgastado pelo passado. Diante do maquinário, que funcionava vinte e quatro horas para deixar brancos os lençóis e as camisolas dos doentes que lá também estavam alojados, a quentura era desumana: as paredes pareciam chapas de ferro superaquecidas. Apenas um ventilador de poucos centímetros fazia de conta aliviar tamanho sofrimento. Além do mais o pouco ar que se respirava era sufocante – o pior possível –, portanto, tinha-se a sensação de que a qualquer instante os pulmões explodiriam. Tudo intragável. Como se não bastasse, sentia-se correr pelas narinas um azedume intenso proveniente da mistura de vômito com fezes e urina. O leito muito se parecia com uma carceragem. As necessidades fisiológicas, contudo, mesmo expostas e convivendo diariamente com o menino e um batalhão de moscas, indicavam não se tratar de um defunto, pois, desde o dia da internação, o menino sequer havia dado uma palavra. Era como se estivesse em um coma estranho, ou seja, semelhante a um ser aleatório, tal qual um boneco, mas um boneco que respirava, porém mal e parcamente. A situação, por assim dizer, era lastimável. Como aquela era uma área de isolamento, tão-somente brechas horizontais na porta de madeira grossa permitiam a entrada da luz natural, e por elas se via uma coisa miúda deitada num pobre colchão ao chão.
Espinosa, o chefe da Enfermaria, (um senhor barrigudo e asqueroso), aproveitou para escalonar os enfermeiros de forma a não chegar perto do menino, que muitos, pelos corredores do hospital, já denominavam de “Peste”. Ou seja, Espinosa, embora responsável pelo setor, foi o primeiro a abandonar o navio, renegando por completo a ética profissional. E, diante da autoridade que lhe era conferida, decidiu que apenas um enfermeiro por vez poderia se aproximar do quarto da “Peste”. A bem da verdade, todo o cuidado era pouco diante de uma doença inclassificável, que pusera uma cidade inteira em alerta, justificava-se Espinosa. A diretoria aprovava a atitude segura de Espinosa. Abria-se, com isso, um poço de vaidade a proporcionar ao Espinosa um incentivo extra, que às vezes tinha forma e cheiro de dinheiro, enquanto noutras era um obrigado e passar bem.
Seria penoso e falso não insinuar que a população mastim e o tacanho sistema de saúde massapeense não estavam preparados para recepcionar tamanho incômodo da natureza, ainda mais se tratando da “Peste”. Colocar num saco de lixo preto e jogar tudo fora era razoável. Tanto é verdade que algumas senhoras carolas, que reunidas formavam a nobreza católica de Massapê, foram permitidas discursar na tribuna da Câmara Municipal e exigir dos representantes do povo a expulsão do menino e da mãe prostituta daquelas imediações. “As coisas não funcionam dessa maneira”, alegou um edil jovem, que prontamente foi tachado de inimigo e comunista pelas velhotas.
“Repilo o nobre colega”, interrompeu o Vereador João Sapateiro, eleito por um descuido na apuração às avessas do pleito, “Esse pedaço de gente mastigado pela fragilidade humana é grande e perigoso como uma arma mortal! Talvez, daqui pouquíssimos dias, - e não se admirem – estejamos todos nós apodrecendo numa cama sarnenta! Coitado da gente, isso sim. É assim que penso e dou meu voto no sentido favorável”, encerrou.
“O respeito que nutro por Vossa Excelência é soberano, no entanto não seria demais lembrar que o ora expediente não está sob votação, mas apenas reluz um clamor da nossa sociedade, o qual nos faz estar aqui de ouvidos atentos”, retrucou o jovem vereador.
Houve um burburinho no plenário e os presentes se embicaram divididos, pois no instante em que se vaiava também se aplaudia. Era a primeira vez que acontecia uma intromissão no cotidiano da câmara. Historicamente, desde a emancipação do município, a pauta nunca sofrera um revertério tão escabroso, com exceção da manhã de há dez anos em que um vereador de oposição tentou assassinar um da situação por divergência de mando num curral eleitoral. Outra mudança era na quantidade de pessoas; não cabia sequer uma agulha naquela “palhoça”.
É claro que as senhoras berraram noites a fio a fim de que o mundo inteiro comparecesse àquela sessão, pelo simples fato de que o interesse era global e, portanto, ninguém poderia ficar de fora – era preciso criar massa na reivindicação, colocar fermento no grito e fazer volume no embate. Isto feito, as senhoras valorosas tentaram demonstrar uma vez mais a força que sempre souberam emanar de cima para baixo – uma obediência cega –, mas que tampouco era unânime, haja vista as palavras bem conduzidas de Nonato Julião, vereador antigo, que professava em seu quinto mandato, e que se encarregou de pôr fim à questão, pelo menos de modo temporário: “Precisamos, precipuamente, descobrir qual a enfermidade da criança, sob pena de estarmos cometendo um grave erro. Nada mais desumano do que escorraçar o irmão de nossa morada: da única morada”. De repente, uma reza às alturas empapuçou a casa do povo: “Oremos, senhores, pela vida de todos!”, clamou a secretária da câmara, que tomava nota num bloco de papel da penúria desarrazoada que se instalara com a divisão dos pares. Um alguém, desobediente na reza, clamou pela decretação de estado de calamidade pública, em alto e bom som.
A viúva não se dignou a ir assistir à sessão. Foi incentivada pelas colegas de meretrício a se defender da leviandade do povaréu chinfrim, mas preferiu ficar empombada na casa de dona Jussara a se aprumar para a íngreme e considerada impossível tarefa. Já era mais do que suficiente se ater com a dor estúpida da saudade, que ora se contemplava no menino, ora se lembrava de Nepomuceno. “Em que paragem andava o maldito Nepomuceno?”, perguntava para si, no banheiro, de frente ao espelho com bordas laranja.
O sol não dava trégua. O calor não erredava. Dos infernos ficava o couro cabeludo e as idéias rareadas se entupiam de ansiedade. Massapê não possuía medidores públicos de temperatura – seria produzir provas contra si, haveria de dizer o rábula bêbado à beira da calçada do Poder Judiciário –, porém estava para mais de quarenta graus, com toda a certeza. Há muito não caia uma gota de água naquele chão e a previsão era de permanecer assim pelos próximos dias. Em outras épocas, sempre no começo do ano, o período era de chuva. As nuvens até ficavam carregadas, formando um manto cinza a cobrir cabeças, mas o destino de agora das gentes de Massapê era de estar diante de um céu escroque. Enquanto os agricultores padeciam à espera de um milagre, na vil expectativa de que aquela escuridão toda se transformasse em temporal, cada vez mais se anunciava uma seca jamais vivida no clarão das pedras do sertão.
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior.

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