10 janeiro, 2008

A separação


10/01/2008

“Pedro pedreiro está esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo”
(Chico Buarque)


O cão morreu de desgosto. Isto por ter patas de elefante. Qual a serventia para um cão vira-lata ter patas tão grandes, senão para espinafrar o dono e vice-versa? Uma lástima de criatura amassada, sem lei e sem medida, que se encorajou pelas bandas da capital de um território qualquer deixando para trás o diabo do cão a morrer de solidão. Nem com pisada delgada se entra em casa de joão-de-barro, quanto mais engolir osso duro de roer, tal e qual uma forquilha bem entrevada. Ainda assim ficou à porta durante um bocado de tempo esperando que o velho se guiasse pelo caminho de volta, mas ele não se deu por conta e se aboletou na caçamba de um caminhão fuçado enquanto o animal gemia feio olhando de lado e roçando o nariz à altura do peito pelado. Ficou ao pau da mesa uma tigela verde de plástico apinhada de fubá com leite, para inchar a barriga barrenta e resolver um dia e meio o desjejum do canino, e uma lata com água salobra vinda da poça de lama que ficava à sombra de uma pedra lascada. Até aquele instante, os dois, o velho e o cão, como pai e filho, marido e mulher, dividiam a pequena morada de alvenaria no distrito da Estrela de Epsilon, na parte de baixo da serra roseta: no Cruzeiro do Sul. O velho passou bem uns vinte dias na cadeira de macarrão se balançando e fitando o bicho: levo, não levo, levo, não levo... nem havia como, concluiu baforando o cigarro de palha – em cidade grande e avexada um animal vazio e maricas como aquele seria atropelado até por uma formiga ao virar a primeira esquina, além do mais com uns pezões como os que carregava levaria um povaréu inteiro a correr de assustado – uma coisa horrível, uma aberração, um estropício – só atrapalharia quem queria ganhar novos ares de vida (uma ponta no sapato cansado). Provavelmente seria sacrificado. Antes ele do que um desconhecido. O velho, do alto do caminhão, se despediu dele com um breve abrir de boca, que aproveitou para cuspir uma gosma preta de fumo mastigado. O cão pensou que o motivo da separação era suas patas de elefante – sentia-se envergonhado – e se matou não tendo mais para quem latir.
Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior

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