20 janeiro, 2008

Pelas lentes da literatura


20/01/2008.


De nada adiantava tentar entender. As ladeiras evocavam suas lembranças de quando vivia em Belo Horizonte na companhia de magos da literatura. Não gosto da palavra mago – lembra-me Paulo. Ela nos disse que fazia sempre um frio gostoso e preguiçoso em Belo Horizonte; mesmo no verão o tempo era criterioso com todos. Complacente, eis a verdade e o que queria realmente expressar. Tudo passava muito rápido, pensou Joselane com uma maçã na boca e a respiração ofegante de quem ainda não largara o vício do cigarro. Rodaríamos um curta-metragem para um concurso cinematográfico a ocorrer dali a dois meses em Roliúde, no sertão nordestino. Joselane foi eleita diretora simplesmente por ter conseguido arrecadar a maior parte da verba para a realização do projeto, fato este que deixou enciumado um cubano – que até então não tinha visto mais magro, chamado Alberto –, que acabou responsável pela fotografia, embora fosse bastante conhecido como roteirista. A bem da verdade, Joselane queria ser escritora e, assim como o farmacêutico que não consegue ser médico por incompetência, acabou terminando um curso relâmpago de cinema e abandonando as letras. Muitos aprovaram a segunda decisão. Esse era seu primeiro trabalho com a câmera e nos dissera em muitas reuniões que iria introduzir na história toda a sua verve literária, e mais ainda: os ensinamentos dos tais magos da literatura. Mas qual história? – quis saber o alemão responsável pela maquiagem, por meio de um português atravessado. – Silêncio! – foi sua resposta sem sombra. Imaginei, não obstante estarmos in loco, o nó cego dado na cabeça do casal de atores, bem como da figurinista, que nada tinha de concreto senão o desejo de ir embora com o seu mau hálito. Havia uma outra particularidade: Joselane adorava o preto e o branco, portanto, nada de cores. As vozes ainda deveriam ser discretas, inteligentes, engraçadas e sarcásticas, e não era oportuno qualquer diálogo, ou seja, o curta estava fadado ao público cult, o que representava, desde já, que todo o esforço despendido pela equipe e a dinheirama gasta não seriam de forma alguma recompensados. Qual o sentido da trabalheira? – indaguei, pensando se tratar de uma boa pergunta, mas logo vi a face de Joselane ficar encarnada de raiva e senti medo. Também preferia não ter permanecido para escutar a resposta: “O cinema nacional! Nós somos responsáveis pelo cinema nacional!” – respondeu, acendendo outro cigarro. Particularmente, não me sentia responsável por bulhufas, ao contrário, era tão-somente o iluminador, de nome Michel, que passaria um tempão segurando uma droga de barra de ferro. Joselane – vim saber muito depois – era mineira nascida da união de um austríaco fugitivo político com uma mexicana suada e fedorenta, e somente o escrivão de Congonhas sabia o porquê do nome Joselane. Éramos onze indivíduos no alto de uma colina “marrom” tentando cavar um orifício nas idéias de uma mulher incompreensível, doida de pedra, a fim de transformar aquela loucura num filme, não para concorrer devidamente a um prêmio – isto já sabíamos –, mas para realizar quem sabe sua orgia pessoal. Éramos seus fantoches e, em assim sendo, nos sentíamos órfãos e cada vez menos seguros. Mas alguém resolveu, acertadamente, colocar a direção na parede de fuzilamento, pois somente desta maneira sairíamos incólumes daquela aventura ficcional. – Então, afinal, qual o teor da história? – questionou o franzino ator, que não tinha estereótipo de galã. – A saída para o cinema está imersa na literatura e é assim que se costura a própria vida: na literatura. Os magos ensinam que apenas as palavras podem salvar o mundo do desterro que ora assola a todos – falou compassadamente Joselane, que pediu para que o casal de atores retirasse suas vestes. – O quê? A fala de Joselane atingiu em cheio a mocinha que faria par com o rapaz franzino. – Sim! Nus e juntos vocês irão recitar poemas de Baudelaire e salvar o cinema nacional. Vejam a oportunidade. Vamos à primeira tomada. Façam de conta que isto é um altar e se atirem aos pés da poesia.
Mendes Júnior
* Photo by André Adeodato.

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