16 março, 2008

Drummond e uma caixa no calor da rodoviária


16/03/2008.
Um homem de aparência mundana tentava segurar uma caixa fina e longa, no entanto seus braços pareciam insuficientes para carregar com destreza o objeto, que de longe não conseguia identificar, ainda por cima o tal estava com um rosto que exalava bebida e cansaço. Sou curioso e, portanto, aquilo me intrigou, mas não pelo fato de um homem segurar uma caixa, pois seria a coisa mais natural no mundo, mas pela cena, em plena rodoviária, me chamou a atenção porque, mesmo acompanhado de mulher e uma mocinha, ele não permitia que qualquer uma tocasse naquilo que se confundia com a importância de recém-nascido no colo. Estava sentado próximo, lendo Drummond, à espera do ônibus para Manuaba do Norte. Não era época de Natal, se não, juraria ser uma daquelas árvores natalinas de plástico que cabem perfeitamente em caixas como a que o senhor acomodava no peito. Pensei nos versos que acabara de ler, em meio ao calor dos infernos: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”. O José, João, Raimundo ou Francisco poderia estar de posse dos próprios sentimentos, mas, assim sendo, seria um pobre coitado, pois, tratando de sensibilidade, naquele repositório deveria comportar um punhado de paixão, duas dores de corno, o amor pelos pais – que, certo, já morreram –, quatro modos de saudades, uma inimizade, as preocupações com os papagaios e uma simpatia por algum time de futebol. Muito pouco. Vejo no seu rosto gotas de suor, que salgariam seu beijo à amada, e alguns dentes a menos. A mulher insistiu uma vez mais para segurar a caixa, talvez no sentido de aliviar de forma razoável o braço do Silva, Antonio, Edinaldo ou Clodomiro. Nada feito. A mocinha, que não se importava com nada, senão com um sorvete creme que lhe escorria pelas mãos, pulava do banco até a jardineira, sucessivamente. Os jornais do dia anunciavam uma chuva daquelas, mas há muito não se acredita em previsões meteorológicas dos órgãos (in)competentes. Calor desgraçado! Drummond diz num verso que suas lembranças escorrem. A bem da verdade, ao meio-dia na rodoviária, o que escorre é nosso humor aquoso incolor, e a paciência de gente que viaja de ônibus. Manuaba do Norte não deve estar diferente e, ao chegar, evocarei mais uma vez o poeta de Itabira: “Os camaradas não disseram / que havia uma guerra / e era necessário trazer fogo e alimento”. Será que o homem também viajaria a Manuaba? Ao menos o portão de embarque estava ao nosso lado. Tive vontade de me chegar ao trio familiar, mas o que dizer? O que leva na caixa? Seria cara-de-pau de minha parte. Mas bem que poderia indagar se era conterrâneo, o que nos levaria a conversar amenidades da terra até eu verificar alguma figura na caixa. Se estivéssemos dez anos antes diria ser uma antena externa para ajudar com a novela, mas este objeto está ultrapassado com o computador e afins. Enfim, o Belmiro, Arquibaldo, Gervásio ou Pereira descansou a mão esquerda com uma lata de cerveja, sabiamente, pois só álcool gelado para esfriar o tutano e as dobras da espinha. “Com licença, senhor, está seguindo para Manuaba do Norte?” – perguntei descaradamente, mas a resposta foi tropegamente limpa: “Não”. E ficamos Drummond e eu: “Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras, / humildemente vos peço / que me perdoeis”. Ele não entendeu o meu interesse, é claro, mas eu consegui: na caixa estava escrito em letras graúdas e pretas: defletor de chuva. Para que diabo serviria um defletor de chuvas? Ainda bem que ele não iria levar a geringonça para minha cidade. Para lá e aqui precisamos é de um deflagrador de chuvas, e sabe Deus se isto existe também.
Mendes Júnior
* Picture by Julio Saens.

Um comentário:

Mariana Sanford disse...

Adorei!! muito legal esta crônica.
Depois envie, fazendo favor esta fotos das meninas, a que estou contigo(eu vc, Aryana e João)e a que vc tirou com a minha cunhada Andrea...
beijos