13 maio, 2008

À soleira


13/05/2008.


Colei meu rosto à janela da cozinha, (batia-lhe um vento morno de maio), e lá fora, demonstrando força para mais dois dias de sol, seis homens de preto seguravam um caixão brilhoso pelas alças ardentemente douradas. Comentei com Neuza que era assim que queria os móveis daqui de casa: um brinco de luminoso! “Óleo de Peroba”, foi o que Neuza me advertiu para incluir na lista da próxima feira, “para madeira e ‘Brasso’ para os metais e aderentes”. Descansei o aparelho de barbear na bacia de plástico vermelho com água ensebada, a fim de assistir ao cortejo de forma lisonjeira. De relance, olhei-me no pequeno espelho que Neuza usava para pentear as madeixas castanhas, que estava parcialmente escorado em dois tijolos reutilizados na janela: metade da minha cara era uma bunda de criança, a outra metade uma “mata viçosa”. Percebi que estava muito mais velho do que aparentava “anteontem” e assim sucessivamente. Logo atrás do caixão, junto do padre, vinham a mulher e as duas filhas do morto. Ela ainda formosa (mesmo depois das (pré)ocupações da doença do marido: lepra?), bem aquinhoada pela natureza dos anjos, tinha os traços do corpo delicadamente cuidados, por certo, indiferentes ao desgaste daquele pardieiro de cidade empoeirada e nojenta. Caminhava calmamente dentro de um fino vestido cinza, que descia em rendas de “Lambda” até os joelhos, deixando-lhe as alvas e grossas batatas das pernas expostas a olhares gulosos e inescrupulosos feito o meu. Um laço largo próximo aos seios portentosos tomava o lugar do cinto. O véu, um pequeno mosquiteiro negro, cercava maliciosamente seus olhos, sua boca e seu queixo finos. Pedi a fofoqueira da Neuza que me esclarecesse se havia sido de lepra mesmo ou de tuberculose a causa da partida do doutor Queijada Torres de Azeredo. “Cobreiro!”, disse-me com a boca cheia de galinha desfiada com cebola e pimentão, enquanto se limpava num pano de prato encardido, que trazia junto ao ombro indecente, ou seja, nu! “Um santo homem morrer de cobreiro! Onde já se viu isto? É o fim dos tempos!”, falou Neuza com dó do infeliz e de quem mais morrera de cobreiro. “Pensei que tivesse sido lepra. Falaram até que estava sem as duas mãos. Um pecado!”, falei. Disse a última frase para dentro, apenas para mim, mas Neuza, “A Orelhuda da Mamãe”, escutou: “Por que pecado, por quê?” Optei pelo silêncio, talvez em respeito ao morto, talvez para não discutir uma vez mais com Neuza, talvez por não querer falar nada, mas pensando se seria possível viver ao lado daquela mulher sem a chance de tocá-la, apertá-la, pegá-la de jeito de cabra macho. Seria o pior de todos os castigos, o mais cruel e insano formigamento para a alma, o mais desumanamente torpe entrenó para garganta – à flor da pele, arrepiei o fio do pêlo do dedo do pé quando atinei que agora ela era uma viúva. Fosse eu um sujeito de poesia e de posse, deixaria Neuza na miséria, me achegaria na viúva com galanteios e prendas, e passaria noites e mais noites debruçado no seu cangote, que há de ser o mais cheiroso da paróquia. Até criava as duas meninas como se minhas fossem – ainda assim valeria o esforço. Reparei no olhar arredio do padre, que despejava água-benta em excesso no povo, como se quisesse banhar a cidade inteira de benção. Achei um baita desperdício. Sequer é ele quem paga pelas coisas da igreja. Com o vinho não seria esta bondade toda. Minha testa ardia da claridade. “Isso é lá hora de enterro!”, foi meu gorjeio de clemência. “Neuza, dá cá um pedaço dessa galinha!”, pedi. “Há quanto tempo Rita de Cássia anda com a tabaqueira do papai?”, perguntei, apanhando novamente o aparelho de barbear e sentindo falta lascada do fumo.
Mendes Júnior
* Painting by Natasha Rosenbaum, "Under Construction".

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