Mendes Júnior
27 novembro, 2007
Indicações Musicoliterárias
Mendes Júnior
22 novembro, 2007
Os donos do mar

(Para melhor compreensão do texto, pedimos que ampliem a foto ao lado)
Das águas – então serenas – pareciam sair chamas, todas ardentes, pois todas as chamas são ardentes, e usurpadas das entranhas, tamanha amarelidão que ressurgia do espelho criado pelo mar, que não estava para peixes nem para tubarões nem para qualquer coisa que o valha, mas tão-somente para eles: os donos do mar, que se alimentavam do ar venturoso e do sal trépido, que tocavam suas bocas de forma a escancarar incontinente e denunciar o vazio, o oco, o nada, mas que, contudo, insinuava o prazer incompreensível, talvez porque as narinas dos donos do mar estivessem atulhadas de ilusões, devaneios e sonhos, que jamais se concretizarão, senão no próprio castelo levantado sob os olhos de uma ponte cravejada de animais menores oriundos da mãe-natureza, que recobriam suas finas pilastras e que não levavam a lugar algum, seja para cima ou para baixo, seja para quaisquer dos lados, pois não havia navios atracados fazendo sombra aos donos do mar, que ora era capitaneado pelo que se esticava na base horizontal e oriental de concreto deixada de lado um dia, com o rosto juvenil perdidamente em direção ao súbito teto, que provocava a tal chama que lhe banhava o peito desnudo e escorregadio de suor e lhe induzia a cerrar os magros olhos vermelhos enquanto o ora defensor se escorava no concreto vertical embevecido pelo milagre da felicidade, embora soubesse de que sensação assim é passageira e, de certa forma, cruel, mas de quê adiantaria caso fosse eterna, qual a serventia, pensaria o pobre defensor – o guardião do castelo –, castelo este à beira-mar, de vista gloriosa e de desenho imponente, que não tinha fim, que não oferecia destino, mas era o prazer dos donos do mar que lhes importava, pois não haveria mudanças até que a sereia resolvesse partir para o mais longínquo escondedouro e de lá não mais enviasse a magia do seu canto, mas a ora sereia saltava da ponte tão linda quanto seu sorriso – que inebriava a todos em sintonia com o perfume do mar, que alimentava um por um os donos do mar –, e era justamente da janela do castelo, corroída pela maresia, por onde a sereia observava a infinitude das águas, que eram mais dela do que de qualquer outro, no entanto solitária – desintumesceria seu coração –, portanto, preferia viver na companhia dos seres desolados daquele pedaço da água – eles eram reis –, além disto, se protegia da malfadada das gentes e era desejada feito o girassol, de mesma amarelidão, por outros dois rapazolas, que loucamente se jogavam aos seus pés, (perdão: cauda), como quem se aventura do alto da torre de um castelo, do castelo sem teto que era deles, que ficava no território marcado por eles, que riscava a ponte com eles, que queimava a pele deles, donde se via de longe, de muito longe, lá longe, o sorriso dos verdadeiros donos do mar.
21 novembro, 2007
Indicações Musicoliterárias
Esteja dito!
Mendes Júnior.
João dos Santos (ou manhã à moda impressa no jornal)

João dos Santos – abrasileirando sua graça – nasceu de um parto mal sucedido: foram sete meses na barriga de uma meretriz, que vendia o esquálido corpo no Trenzinho de Chica Fulepão, e, ainda assim, conseguira ser cuspido de suas entranhas para tombar no solo infértil das ruas. O pai era um politiqueiro da cidade. Segundo as más línguas, deixou de visitar os lençóis amarfanhados quando soube que seu sêmen havia procriado uma criatura. Aos nove anos perdeu a mãe para um amante endiabrado, passando a viver de acordo com os domínios d’Ele. Entre noites em claro e profundo abandono, lutou para ver chegar (sempre) os raios de um novo dia.
Em suas idas e vindas pela praça da Sé, João dos Santos conheceu, além da escória da humanidade, seu Alfredo Tamboril, dono de um armazém de trigo. Acabaram "chegados" e seu Alfredo, por tanto escutar histórias do coitado João dos Santos, lhe ofereceu um emprego de estivador. João dos Santos não pensou duas vezes. Em vinte e dois anos, fora renitente em não cair nas armadilhas urbanas, o que lhe conferia uma firmeza de caráter. O trabalho era apenas consequência da sua força de vontade. Para tanto, seu Alfredo Tamboril exigiu o mínimo: um passado sem máculas, mas atestado pela polícia.
Acontece que na 12ª DP, ao tentar conseguir o documento que seria sua alforria do mundo dos vagabundos, houve um princípio de algazarra pelo roubo do telefone móvel da delegada de plantão. E alguém apontou o dedo para João dos Santos.
“Tu tá preso, cabra safado! É muita audácia! Na própria Delegacia!”
João dos Santos ficou mudo. Levou um soco na boca do estômago vazio.
Portanto, como observado, João dos Santos, de história pregressa irretocável, foi confundido com ladrão e preso, perdendo a oportunidade única que tivera na vida. Uns dizem que foi por causa do preconceito, já para outros o determinante foi seu lado paterno. A certeza que se tem é a de que João dos Santos partiu em busca da folha corrida limpa e alcançou, sem querer, os antecedentes criminais.
16 novembro, 2007
O problema são as cartas

13 novembro, 2007
Seu Percival

naqueles minutos de angústia,
do que minha nudez ao vento da alameda
de um jardim desconhecido.
(História do Olho – Georges Bataille)
Retirada a aposentadoria, o que fez seu Percival? Com uma merreca no bolso, junto da imagem miúda de São Francisco de Assis, lapidada em pedra-sabão, adquiriu uma passagem de ônibus leito, e foi a Tutumé visitar quem ainda vivo estava na grandiloqüente família Junqueira da Silva, que há tempos rareou em mandar notícias via postagem. Percival Junqueira da Silva Neto já há muito passeava pela casa dos oitenta e, após um susto dado pelo velhaco coração imerso em nuvem de fumaça e desgosto, sentiu que passara e muito da hora de voltar a Tutumé, mas ainda assim quis a força do destino e o suspiro da saudade que seu Percival atinasse para o fato de que ainda se revestia da galantaria de um touro reprodutor e havia o ânimo firme para cheirar umas menininhas na casa de Madame Chica Fulepão e delas tirar um sarro mais-que-gostoso; ora, queria aproveitar enquanto a verdasca do touro reprodutor respirava. Talvez mais do que isto – seu Percival não escondia. Tutumé era uma baita cidade, até o surto de depressão, em meados dos anos vinte, que deitou a população quase por inteira. Dizem que foi logo após a temporada de um circo de ciganos. Muita gente não sustentou o troço, lembrava seu Percival, e acabou se valendo de tiro, de corda grossa, de veneno para ratazana e de afogamento: “Era o fim dos tempos! Era o fim dos tempos!”, murmurava seu Percival, que à época namorava uma donzela de pêlos escuros e volumosos, olhar manhoso e couro alvo, que terminou seus dias tenros pulando de uma ponte, entre Tutumé e Manuaba do Norte – pelo menos era a versão propagada nas cercanias, pois o corpo nunca fora encontrado. Ela atendia por Rosa – nome justo. Seu Percival ficou desconsolado: perdeu a criatura mais fogosa da face da terra. Foi nesse momento que decidiu seguir viagem por direção torta e tão cedo precisar retornar a Tutumé, terra de povo, agora, sisudo e estranho. Ele também sofreu bastante com a onda de depressão e por muito pouco não deu cabo da própria vida – por muito pouco mesmo, no entanto ele já era um touro reprodutor – não se desvaneceu. O mais dolorido foi mesmo o trágico suicídio de Rosa, com quem deitava numa redinha todo comecinho de noite para um chamego. Era aquele perfume de princesa que cegava seu Percival e, por esta razão, já havia comprado anel e tudo o mais para as formalidades legais do noivado. Queria passar a vida inteirinha com Rosa, mas a história foi interrompida pela covardia dela, que sequer deixou um bilhete dizendo “adeus, Percival!” Nada! Seu Percival se segurou para não chorar dentro do ônibus – ele era um touro, não podia esquecer. Cinqüenta anos entre Tutumé e ele – uma separação reflexa pela compleição da bunda de Rosa: que coisa louca! que gostosura! Seu Percival não insistiria em viver sem aquela maravilha e achou por bem sair correndo de Tutumé, mas, aos oitenta e qualquer coisa, decidia retomar uma lembrança bem guardada junto ao sexo de Rosa. “Era a felicidade! Era a felicidade!”, suspirava seu Percival, o touro reprodutor.
09 novembro, 2007
Suplantaram o Ribeiro

“O quê? O Ribeiro fez o quê?”
“Não! Suplantaram o Ribeiro! Você não sabia?”
“Não! Não sabia! Mas quando foi isto? Como foi isto? O Ribeiro parecia ser uma pessoa tão direita...”
“E continua sendo. Ele é a vítima. Ele foi suplantado lá na repartição, ontem mesmo! Mal chegou do cafezinho, pronto: suplantaram o coitado do Ribeiro!”
“Escuta, mas o Ribeiro de quem você fala é aquele que comeu cocô quando era menino?”
“Este mesmo! Você com certeza lembra dele. Ele é aquele homão de cor indiana, casado com a Rita de Cássia, que alguns dizem que é a maior safada da paróquia”.
“E o Ribeiro é chifrudo?”
“Olha, particularmente, acredito que sim. Veja bem, a mulher outro dia estava lá no bar do Osvaldão num assanhamento de cobrir o rosto das atitudes. E isto ainda era pela manhã!”
“Mas qual o problema do horário?”
“Amigo, mulher que fica dando mole para outros machos em plena luz do dia não tem um pingo de caráter. Sem contar que bebia. Bebia! Está escutando?”
“Pena do Ribeiro... Ele não merecia tanto...”
“Meu caro, a vida é tinhosa! Por isso defendo o pensamento de que é na criancice que a pessoa decide seu trajeto. Veja, o Ribeiro comeu cocô menino e, depois de sei lá quanto tempo, continua sendo o preferido das chacotas. Bem, mas não é todo dia que se encontra alguém que já provou merda, né?”
“É verdade... Não é todo dia... Qual linha você vai pegar?”
“Não, vou ficar por aqui mesmo. Estava de passagem quando o avistei nesta parada. E tem mais! Dizem que o pai do Ribeiro dava uns cacetes na mulher. Onde já se viu homem bater em mulher?”
“O Ribeiro teve uma infância muito complicada... Como vai sua senhora?”
“É como digo: é na infância! É na infância! É na infância!”
“Mas...”
“Nem queria colocar o motor para pegar, mas dizem as péssimas línguas, pois somente más é pouco, e o povo gosta de falar muito, que, de tanto presenciar a mãe apanhando sem nada fazer, acabou ficando meio maricas. Mas como não há meio anão nem meio qualquer coisa, digo que o Ribeiro é maricas!”
“Exagero, colega...”
“Não! É maricas, sim!”
“Mas ele não é casado?”
“Vai lá saber o gosto dessa patota. A Rita de Cássia, no entanto, é vagabunda e vive nas esquinas do centro dando pra um e pra outro. E de manhã, meu caro, é fogo!”
“Ainda não entendi esta parte do horário. De qualquer modo, o Ribeiro não teve sorte na vida. Talvez você tenha razão. Deve ter sido durante a infância”.
“Batata!”
“Mas, independente de tudo, é desumano sair suplantando as pessoas, principalmente um sofredor como o Ribeiro”.
“Estamos falando de um sujeito que comeu cocô, amigo! O mundo tem suas deficiências, mas não é injusto! Um cara que comeu cocô! Sei não!”
01 novembro, 2007
Espiral

Mendes Júnior.
* Photo by Pierre Alechinsky, "Spirale II".
Leituras de uma viagem
