13 novembro, 2007

Seu Percival


13/11/2007.


Nada era mais estranho,
naqueles minutos de angústia,
do que minha nudez ao vento da alameda
de um jardim desconhecido
.
(História do Olho – Georges Bataille)


Retirada a aposentadoria, o que fez seu Percival? Com uma merreca no bolso, junto da imagem miúda de São Francisco de Assis, lapidada em pedra-sabão, adquiriu uma passagem de ônibus leito, e foi a Tutumé visitar quem ainda vivo estava na grandiloqüente família Junqueira da Silva, que há tempos rareou em mandar notícias via postagem. Percival Junqueira da Silva Neto já há muito passeava pela casa dos oitenta e, após um susto dado pelo velhaco coração imerso em nuvem de fumaça e desgosto, sentiu que passara e muito da hora de voltar a Tutumé, mas ainda assim quis a força do destino e o suspiro da saudade que seu Percival atinasse para o fato de que ainda se revestia da galantaria de um touro reprodutor e havia o ânimo firme para cheirar umas menininhas na casa de Madame Chica Fulepão e delas tirar um sarro mais-que-gostoso; ora, queria aproveitar enquanto a verdasca do touro reprodutor respirava. Talvez mais do que isto – seu Percival não escondia. Tutumé era uma baita cidade, até o surto de depressão, em meados dos anos vinte, que deitou a população quase por inteira. Dizem que foi logo após a temporada de um circo de ciganos. Muita gente não sustentou o troço, lembrava seu Percival, e acabou se valendo de tiro, de corda grossa, de veneno para ratazana e de afogamento: “Era o fim dos tempos! Era o fim dos tempos!”, murmurava seu Percival, que à época namorava uma donzela de pêlos escuros e volumosos, olhar manhoso e couro alvo, que terminou seus dias tenros pulando de uma ponte, entre Tutumé e Manuaba do Norte – pelo menos era a versão propagada nas cercanias, pois o corpo nunca fora encontrado. Ela atendia por Rosa – nome justo. Seu Percival ficou desconsolado: perdeu a criatura mais fogosa da face da terra. Foi nesse momento que decidiu seguir viagem por direção torta e tão cedo precisar retornar a Tutumé, terra de povo, agora, sisudo e estranho. Ele também sofreu bastante com a onda de depressão e por muito pouco não deu cabo da própria vida – por muito pouco mesmo, no entanto ele já era um touro reprodutor – não se desvaneceu. O mais dolorido foi mesmo o trágico suicídio de Rosa, com quem deitava numa redinha todo comecinho de noite para um chamego. Era aquele perfume de princesa que cegava seu Percival e, por esta razão, já havia comprado anel e tudo o mais para as formalidades legais do noivado. Queria passar a vida inteirinha com Rosa, mas a história foi interrompida pela covardia dela, que sequer deixou um bilhete dizendo “adeus, Percival!” Nada! Seu Percival se segurou para não chorar dentro do ônibus – ele era um touro, não podia esquecer. Cinqüenta anos entre Tutumé e ele – uma separação reflexa pela compleição da bunda de Rosa: que coisa louca! que gostosura! Seu Percival não insistiria em viver sem aquela maravilha e achou por bem sair correndo de Tutumé, mas, aos oitenta e qualquer coisa, decidia retomar uma lembrança bem guardada junto ao sexo de Rosa. “Era a felicidade! Era a felicidade!”, suspirava seu Percival, o touro reprodutor.
Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Untitled 25 (From the Soumaya Series)".

Um comentário:

Isabela Pinho disse...

adorei! esse é, por acaso, um dos contos do seu livro ou nao?

bjs