09 janeiro, 2008

Era melhor não ter perguntado nada


Ele vinha apressado, suado, em uma completa exaustão. Calor, fazia muito calor. O sol, nesse dia, era mais do que sol; estava abafado a ponto de esquentar a cabeça e confundir as idéias. Era um final de tarde de uma sexta-feira, uma boa ocasião para tirar o enfado em um estúpido copo de cerveja. Começo de fim-de-semana; tempo variando entre escaldante e mormacento; a sensação brasileira do dever cumprido. Tudo propício.
Com passadas largas, a distância ia diminuindo gradativamente. Aliás, sua ligeireza estendia-se ao juízo, pois, não agüentando o desperdício de um segundo sequer daquele precioso tempo, o seu objetivo precípuo era chegar e , a partir daí, beber e tirar totalmente a velha camisa de pano ruim, um tanto desbotada, que já vinha sendo desabotoada desde quando, subitamente, ultrapassou o enorme vestíbulo da repartição pública, depois de ter, praticamente, escorregado pela imponente escadaria. Assim, foi descobrindo que a liberdade era um direito eminente na Constituição Federal Brasileira.
Nas ruas de Walbéria, o movimento começava a ter um maior aguçamento àquela hora, em que carros e pedestres desfilavam de forma irregular e bestial. Pelo menos, assim pensava. Todos atrapalhavam a sua marcha pertinente em caminho e desenho. Mas, claro, seria o desejo de também chegar; aliás, todos queriam chegar a algum lugar. E ele, mais do que ninguém.
Freneticamente, ao passar por lojas, notava que os letreiros das vitrinas eram como os mosquitos que o perturbavam durante toda a noite em seu humilde lar: imperceptíveis e de ínfima alusão. Mas, repentinamente, um deles despertou sua já empoeirada curiosidade, pois ele, meus senhores, era um funcionário público. Na verdade, um autêntico funcionário público.
- Truísmo! - ele leu e , como se era de esperar, não entendeu nada.
Parou; olhou novamente; coçou a cabeça.
- Isso não faz sentido algum, um absurdo.
Certamente, o absurdo maior era o dele de ter achado um absurdo. Não tinha a menor idéia do que aquilo significaria aqui ou na China.
Como ficava na fachada de uma loja da extrema direita da outra calçada, tentou se aproximar a fim de que aquela insanidade fosse resolvida. Mas, para sua glória, tudo se encontrava no mais absoluto abandono, só escombros, o que lhe deu uma maior margem de certeza da falta de significado para essa palavra, que, talvez, não constasse nem na Enciclopédia da repartição. Era mesmo um tapado.
Dali a pouco, conseguira, enfim, chegar aonde tanto queria: Bar do Charuto. Era um lugar de muita sujeira que mais parecia uma mercearia, daquelas em que se cospe no chão. Total desprezo por parte do dono, em termos de asseio, que deu este nome ao estabelecimento porque morou um tempo em Cuba e voltou com uma mania de fumar charuto, nada mais justo. O ambiente não era lá dos mais familiares, onde se pudesse ir acompanhado de alguém que se respeitasse. Na verdade, moscas de todas as espécies; bêbados à beira do balcão de madeira desgastado pelo uso; sacas de cereais espalhadas pelos quatro cantos; e muito barulho.
Ele gostava de ir a esse lugar na sexta-feira porque era o dia do encontro dos pseudo-intelectuais. Digníssimos senhores reuniam-se em uma mesa a fim de discutir as questões atuais do país; todos moradores das redondezas que não tinham o que fazer em casa e iam dar provas de total babaquice em público. Nosso, não menos digníssimo, funcionário público achava bonita a maneira como eles se expressavam, o palavreado difícil, nada mais que isto.
Porém, como quem não quisesse nada, dirigiu-se à mesa dos nobres cidadãos e despachou:
- Algum de vocês sabe o que quer dizer Truísmo? - estampando um sorriso malicioso na face como se estivesse querendo testar todos.
Entreolharam-se nervosos, com sorrisos maliciosos, por acharem, aparentemente, uma piada, mas era sério. Eles não entenderam bem o motivo do questionamento, mas escutaram de forma clara cada letra da pequena palavra. Triste. Aquilo não era apenas uma reunião semanal para colocar os assuntos em dia; saibam, era um encontro de intelectuais e, assim se considerando, não poderiam ser derrotados por uma simples dúvida.
Ficou claro o constrangimento; pairou no ar a decepção de todos os quais sentavam àquela mesa. Talvez, melhor seria não estar por ali naquele momento, embora pudessem contra-atacar:
- Meus caríssimos colegas, trata-se de uma questão fenomenológica, onde há uma relação entre o ser e o seu interior, ou seja, nada mais é do que o ser enquanto ser - disse um deles.
- Será que esse simplório termo não estaria abordando o caráter associativo entre duas coisas? - rebateu o outro.
Estava bastante lúcido o fato de que o que eles queriam era prolongar a discussão, ou debate, até que alguém manifestasse uma opinião mais acertada. Mas a delicadeza e a sutileza da situação tomavam rumos diferentes. Ninguém conseguia estabelecer uma linha de raciocínio, complicando totalmente a inteligência e cortando ao meio a felicidade dos “conferencistas”.
- É um sinônimo para assegurar o real significado vivido por um determinado episódio - disse o da ponta, causando risos no outro que, com um cigarro à boca e em meio à fumaceira, considerava-se o mais sábio de todos por causa de suas viagens pelo mundo; viagens estas feitas com o dinheiro do povo, já que se sabia de seus negócios escusos com um órgão do Governo Federal.
Alguns se levantaram a fim de tecer comentários de forma mais instigante, mas não adiantava, pareciam incapazes.
Desmoralização ou falta de conhecimento? O fato é que uma palavra como essa, à primeira vista, tola, poderia causar o linchamento moral e até o rompimento do grupo, pois começavam a chamar a atenção das pessoas que estavam espalhadas pelas demais mesas do bar e, como se não bastasse, queriam também opinar.
- É um animal!
- Significa o amor entre dois animais antes do coito.
- É a aparição do diabo nesse novo milênio, em que criancinhas, depois desse dia, irão nascer sem cabeça.
Impensável! Eles eram um grupo fechado e ninguém poderia se meter nos assuntos de que tratavam, mas a situação estava fora de controle. Foi um erro aceitar uma dúvida de um sujeito sem a menor expressão. Era uma vergonha; o fim.
Até o fumador de charuto dono do bar, que não tinha o primeiro grau completo, sentiu excitação para também participar e saiu-se com essa:
- Gente, não será alguma comida do estrangeiro?
- Ha, ha, ha! - risos.
O tapado, causador da discórdia, permanecia calado esperando a sua hora de vomitar palavras desconexas. Esperou, esperou, até que...
- Quando me deparei com tal palavra, prontamente me veio à cabeça que a mesma não tinha significado. Estou certo disto.
A confusão foi formada. Inexistia entendimento, todos falavam ao mesmo tempo. Na verdade, gritavam. E, com isso, os goles de cerveja faziam-se mais constantes, o que levava o fumador de charuto dono do bar a uma satisfação que se estendia ao bolso.
Porém, existia uma única pessoa dentro daquele antro de “pura harmonia” que ainda não havia se dado conta daquilo que se passava. Aliás, mantinha-se com o pensamento longe da realidade. Se alguém estiver se perguntando se isto é possível, eu diria que não, mas, meus senhores, só estúpidos levariam por tanto tempo uma pergunta como a que foi feita.
Era um padre, com batina e todos os outros adereços, quem bebia goles homéricos de conhaque sentado a uma mesa de fundo. Absorto por completo, tinha o olhar fixo em uma gaiola pendurada por um fio que vinha do telhado. Dentro da gaiola, um canário belga de um amarelo bem forte. Assustado, o pássaro tinha rapidez em suas ações. Mas, nem assim, a atenção do padre de batina bebedor de conhaque foi desviada. Estava cheio de compenetração e de álcool na corrente sangüínea.
Alguns já tinham se aboletado sem esperança de que se conseguisse resolver o embate; outros, persistentes, pediam mais um trago sem menção de arredar o pé.
- Já sei! - gritou um sujeito que usava uma camisa do América carioca. - Já sei! Essa expressão significa estar meio a esmo, ou seja, quer dizer o “don’t mind” do inglês; é não estar nem aí.
Mas poucos gostaram dessa explicação. E um outro sujeito, que se dizia professor de inglês, tentou corrigir a pronúncia do “don’t mind” sem êxito, já que os ânimos estavam espelhados em outros resultados.
Cansados, humilhados, destratados, expurgados e outros “ados”, os pseudo-intelectuais davam-se por vencidos. Aqueles que estavam de passagem não mais falavam, pois percebiam a desilusão em cada olhar; faces abatidas. O dia era mesmo negro. Não se tinha saída, era conviver com essa decepção pelo resto da vida e das idéias.
- Que diabos é Truísmo? - falou um mais excedido pelo álcool.
Nesse momento, passava por esse pobre coitado, que Deus o guarde, o padre de batina bebedor de conhaque, que tinha se levantado para pendurar mais um vale no Bar do Charuto e ir com o seu olhar misterioso. Porém, não podia deixar de ouvir àquela interrogação tão trôpega que fora feita em seu alcance. Fez o seu rabisco num pedaço de papel-madeira e, quando ia saindo, disse:
- Mas isso que você está querendo saber é tão evidente que não precisa de explicação - falou alto e compassado.
E foi indo lentamente, ensaiando uma melodia em seu assobiar desarmonizado.
Burburinho!
Silêncio!
Desde esse fatídico dia, meus senhores, não se tem notícia de nenhum outro encontro feito pelos pseudo-intelectuais.
Mendes Júnior
* Conto selecionado no V Prêmio Ideal Clube de Literatura;
** Photo by Mendes Júnior.

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