27 maio, 2008

"Night in St. Cloud"


27/05/2008.


Neste exato instante, sinto-me como se fizesse parte da paisagem de “Night in St. Cloud” – quadro a óleo pintado com incomparável sensibilidade por Edvard Munch, em 1890. Sou aquela criatura, relativamente densa, de chapéu longo à beira da janela, imerso em devaneios, em meio à quase escuridão e à melancolia. Apenas uma luminosidade da lua entrando em espiral nevoado pela janela em forma de cruzes, fazendo-me acreditar estar em Londres, a me sugerir também uma prisão; a claridade deixando o quarto na penumbra e com uma aparência de grandeza que sequer existia quando dia. Estou em Paris, não em Londres, e sou o poeta Emanuel Goldstein, amigo do criador, mas não quero a Morte, não anseio desaparecer nos próximos dias, não tenho o desejo ardente da consciência de finitude, nem quero ter nunca, ao contrário, aliás penso na mulher bela, de forma silenciosa e implacável à alma, aquela dama que me toma diariamente de assalto os sonhos nobres e os pecaminosos, por que não? É por ela tão-somente que se cobrem minhas lembranças de então, na página noturna de St. Cloud. E é na vida que me absorvo – como é capaz de peripécias, de retornos estranhos, sempre tão lúcida e perspicaz nos fazendo crer que algo de muito bom ainda existe nesse chão desesperado! – e vejo exatamente seu sorriso, que era tão doce e menino, mas que agora é forte e sensato. Sou Emanuel Goldstein olhando para uma cidade desfocada que não tem conhecimento de que é permissivo viver o passado tal qual o presente, e assim clama em prelúdios uma boca em chamas – eis as lágrimas a salgar os lábios de uma boca já em chamas – grito o nome dela, da linda mulher, pena que poucos ouvem a melodia, a cidade descansa, apenas os vagabundos estão de pé com seus cigarros ruins, e as mulheres públicas em assanhamentos sexuais, e os cães que ladram mas não mordem. Foi-se sua graça a temperar o vento frio da madrugada de fins de maio. Saborosos traços amarelos a me queimar os olhos de vidro lá fora. Era uma tarde quando a vi pela primeira vez depois de anos, muitos, vários, demasiadamente inconcebíveis para um coração arquitetado pela poesia. Ela, a amada, se surgiu como se surge uma rainha de Manet, e o vinho em seus graciosos dedos pereceu-me o mais valioso de todos os tesouros, mas havia seu sorriso, já cantado nesta prosa incomum, ah!, e é ele, o sorriso, que quero enxergar por entre as cruzes da janela nesta noite em St. Cloud; é ele que desejo inteiramente, assim como a própria vida, para ainda me ser contemplado vê-la, quem sabe amá-la.
Mendes Júnior
* Painting by Munch, "Night in St. Cloud".

2 comentários:

Luana disse...

O texto está simplesmente “belo”, como todos os outros. Parabéns! Aliás eu amo tudo que você escreve...

Luana Dreywys

Anônimo disse...

Lindo...simplesmente.

Ana Paula ( Palila )