22 maio, 2007

Caixa de madeira II


21/05/2007


Nepomuceno se perdeu do transporte. Era uma vontade dos infernos de urinar (quase faz nas calças), portanto, correu, enquanto o caminhão era abastecido de querosene, e foi se aliviar bem no meio da secura da mata, ao lado dos restos mortais de um bicho grande, que, ao que tudo indicava, já fazia parte daquele cenário árido há tempos. Ouviu bem de mansinho o ronco desmantelado do motor, misturado à chiadeira provocada pela jorrada de mijo na terra, e, feito coisa ruim, correu mais uma vez, só que agora segurando com força a fechadura do cinturão para não deixar as calças escorregarem. Sinto muito, moço, a próxima condução só amanhã de tardezinha. A viúva e o menino (tão igual ao Nepomuceno) foram embora com a cambada sem dar pela falta dele. Nepomuceno, no entanto, era bom de bico: iria se virar em terras alheias, fazer gente boa lhe pagar a comida e gente nova lhe oferecer a carne; não gostava de lero de besta, uma coisa caprichosa da qual tinha nojo, e não suportaria pensar na viúva deitando com outro macho. Dois moleques sujos guiaram Nepomuceno ao descanso – dormida barata, com água filtrada, uma tetéia na cozinha preparando o feijão, para que melhor? Numa rede, de papo pro ar, mirando a queimação que vinha do teto, com uma das mãos, Nepomuceno caçoava com um cachorro triste, insosso, já quase morto, por certo, sem forças nem para morder a própria pelagem; com a outra, coçava a barriga cabeluda, com a cabeça do dedo, formando círculos delicados. Nepomuceno era malvado, não tinha pena de ninguém, nem respeito, nem pudor, e pediu à dona da hospedaria para se esfregar na tetéia filha dela. Quanto custa? Qual delas? Tem mais de uma? Quero a moreninha que se aboleta no fogão, acertou Nepomuceno.

Numa hora dessas, pensou Nepomuceno, a viúva já devia estar em Massapê, ela e o menino. Achou que foi uma baita falta de consideração a dela de não ter notado que ele havia sido deixado, no meio do nada e de coisa nenhuma, com o pinto pro lado de fora – um vexame, dona viúva! Ela, entretanto, queria bem a ele e até se descabelou, quando viu que era inútil pedir ao motorista para voltar. Houve uma barulheira desconcertante no pau-de-arara, não lhe restando nada mais, além de olhar nas suas costas uma estrada que ficava cada segundo mais longa. O menino procurou pelo tio ventríloquo, mas a viúva insistiu para que o cabritinho se aquietasse que, logo, logo, Nepomuceno apareceria – ele era assim: quando tudo parecia estar no fim, vinha ele e decidia a parada na melhor das formas. Quanto crédito depositado em Nepomuceno! Ele lá cheirando o cangote da tetéia no balançado, e a viúva debulhando um rosário pelo bem de sua alma.

Cabra assim como Nepomuceno, porém, é de boa monta ter santo forte. Não é que o maldito se meteu a querer ganhar as moedas do povaréu com a investida maliciosa de falar com defunto! Com a roupa do corpo, fedorenta a suor e sexo, anunciou-se para todos: sou um ventríloquo! O que diabos é isto? Mantenho comunicação com quem já partiu. Muitos nativo-selvagens, claro, acreditaram na mentira de Nepomuceno, mas eis que entrou na fila um pistoleiro perigoso (não é redundância), que havia realizado, numa época, um serviço a mando do antigo prefeito, mas que não se sentia convicto da precisão do resultado – queria escutar a voz da vítima, uma esperança que fosse, pois existia o risco do alvo ter desaparecido antes de bater as botas. Nepomuceno pensou no que a viúva poderia estar fazendo naquele momento: será que ela desejava o pinto deixado para trás, que ficou do lado de fora? – estava sentindo sinceras saudades. O pistoleiro não teve que esperar muito, mas é verdade que ficou bastante cismado com a gagueira da voz de um homem intermediada por Nepomuceno, afinal de contas o antigo prefeito pedira para nunca mais ver uma namorada que o traía.


Mendes Júnior.
* Publicado na Cronópios, em 17/10/2007;
** Photo by André Adeodato.

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