24 maio, 2007

O menino e a sabiá



05/05/2006.


Há muito tempo que não fazia um programa tão rico de recordações. Era o primeiro dia do mês de maio – um dia dedicado inteiramente ao trabalhador. Em muitas regiões desse pequeno planeta, manifestações atordoavam as ruas; algumas pacíficas, outras nem tanto; gente aos montes reivindicando uma gama infindável de direitos inerentes à qualidade de quem tem no suor do trabalho sua maior riqueza; outros batendo panelas em praças públicas sem ao menos saber o porquê de ainda tê-las; alguns poucos participando da tradicional corrida dos garçons. Enfim, mesmo no lugar mais recôndito, havia um simples movimento que fosse. Busquei, entretanto, no silêncio a minha forma de contemplação.

Exatamente nos primeiro raios do sol, sorrateiramente, decidi fazer um passeio pelas ruas de uma cidade delicadamente diferente. Necessitava resgatar do baú imaginário lembranças de uma infância recente. Não tinha certeza da mensagem que meus olhos transportariam ao coração, mas sabia que entraria numa dessas máquinas do tempo de que tanto se houve falar e de que pouco se acredita. Percorrer, depois de anos, ruas de sua criancice é aguçar todo e qualquer sentido. Foi justamente isto que me ocorreu ao viajar pela rua do Menino Deus, sua igreja e sua praça. Naquele lugar não me via de outra forma senão de calção e de pés no chão e, por isto mesmo, tive vontade de jogar fora amarras que me deixavam mais sério; queria correr novamente por sobre a calçada da igreja, em busca de uma pobre bola de futebol, como tanto fazíamos. Na praça, já não mais havia espaço para divisões sociais, como em tempos idos – ela era democrática.

Uma sensação engraçada me veio à tona ao chegar à igreja Nossa Senhora das Dores. Com a reforma e modernização de certos lugares, temos a ligeira impressão de clareza, pelo menos, na memória. Lembro, perfeitamente, quando criança, de sentir um certo pavor de ultrapassar a Catedral. Nas suas costas, tudo parecia muito escuro, perigoso e proibido. É óbvio – não tenho dúvidas – tratava-se de uma queixa infantil, mas o fato é que, mesmo puxando pelos arquivos empoeirados, não me recordo de ter estado ali mais do que em duas oportunidades. E me encontrar, naquela manhã, no Largo das Dores, olhando o rio Acaraú de uma forma praticamente virgem, sentado em um banco de madeira, causou-me uma vontade súbita de ter sido uma criança corajosa. Talvez, à época, não fosse tão bonito como agora, mas acredito que valeria tentar.

Saltou-me aos nostálgicos olhos uma lágrima pusilânime, ao ver a praça Cel. José Sabóia (Coluna da Hora) – para mim, uma fronteira. Digo assim, em razão da liberdade que me foi conferida, determinada sempre por linhas físicas e ordens familiares. A praça da Igreja de São Francisco, a praça do Teatro São João, a praça da Matriz N.S. da Conceição e a tal praça da “Coluna da Hora” delimitavam o meu direito de ir e vir. Trocando em miúdos, ficava enclausurado “entrepraças”. Cada uma, no entanto, de uma forma ou de outra, remetia-me ao pitoresco: do banho na fonte da “Coluna da Hora” até as primeiras pedaladas em frente ao teatro, tudo levava a crer numa felicidade inocente. E de fato o era.

Em determinado momento, tive medo de prosseguir: voltei a ser aquele menino sem coragem. Na cabeça, a bela canção de Tom Jobim e Chico Buarque; no peito, a vontade de um dia voltar para o meu lugar e escutar minha sabiá.
Mendes Júnior.
* Crônica publicada no site do Jornal O Noroeste, em 11/12/2006;
**Photo by André Adeodato, extraída em Sobral, nas margens do rio Acaraú.

Um comentário:

Anônimo disse...

Seu texto flui com facilidade e leveza, é bom de se ler, é atraente, e consegue transportar o leitor para o ambiente que retrata na crônica. Muito bom, meu amigo. Gostei muito.

Um grande abraço!