10 maio, 2007

Meu amor é vermelho








CRÔNICA, 21/04/2006.




Mais uma destas tragédias cotidianas. Em plena luz do dia, e lá está aquele corpo roto dividindo o solo pátrio e um pedaço de lençol vermelho (também roto). É engraçado: o vermelho sempre me representou a chama ardente do amor. Chego, inconscientemente, a ter rompantes de emoção, muitas vezes infundados, como neste exato instante. É como se estivesse caminhando desapercebido pela vida e, de repente, o encarnado me transportasse à lembrança daquela paixão avassaladora vivida num dia de graça divina. Diante de uma cena tão lamentável, chego a pensar nas sandices da Lívia – uma louca, com o perdão da palavra. Passei dias intensos naqueles braços flácidos, mas não durou mais do que um punhado de sal.

Nossa mais nobre milícia tentava inutilmente afastar os curiosos que se acotovelavam em frente à banca de jornal. Um chega pra cá; um chega pra lá, e tudo que se conseguiu foi uma embrionária roda. Visto o fato dessa maneira, procurava-se em vão indagar o que acontecera ao pobre desconhecido. Eu mesmo cheguei a buscar informações, mas não havia naquele fim de mundo alguém capaz de elucidar o episódio. “Certamente, uma bala perdida” – e ficava nisto. Comecei a costurar na minha cabeça um crime passional; aliás, comecei a imaginar Rosa, ali, deitada com suas madeixas bem tratadas submersas nesta poça de lama e coberta por este quarto de pano vermelho cedido por um qualquer. A Rosa era pra lá de vaidosa e isto me causava um ciúme doentio. Hei de discordar do poeta, quando diz que o tal do ciúme é o perfume do amor, pois, em outras épocas, agiria diferente: seria o autor intelectual, o mandante e o executor cruel. Já este amor me durou alguns centavos na manicura e a dor de ser traído por um sujeito nascido e batizado “Ricardo Leão Treze de Engenho Novo”.

Obedecendo ao patrão nosso de cada dia, um ambulante veio me oferecer medalhinhas santificadas. Escolhi a de Santo Expedito. Custou-me a passagem de volta para casa. Carmem era devota de Santo Expedito. Os pés de Carmem eram parecidos com o do falecido (que Deus o tenha), porém um pouco mais achatados do que o comum e redondos. Observei a platéia e vi uma senhora gorda chorando. “Será parente? Sua esposa?”. Nessas horas não encontramos palavras de conforto necessárias à ocasião, ainda mais um qualquer feito eu, por isso, resolvi permanecer em silêncio, quietinho no meu canto; aliás, mais ou menos, pois a todo momento levava um empurrão. Por uma fresta, observei os cabelos grisalhos do homem caído e pensei: vive-se aquilo que nos foi concedido – nem mais nem menos –, mesmo que o fim se dê no centro da cidade em um dia nublado. Acho que neste ano vai ter inverno. “Que horas, colega? Vixe, como é tarde”.

Neste momento, um baixinho com a farda da Guarda Municipal pediu passagem para o rabecão. Notei um certo ar de desapontamento nos populares. Acho que talvez quisessem uma maior dramaticidade; no mínimo saber de quem se tratava ou o porquê do óbito; uma televisão que fosse. Mas nada demais. Na posição em que se encontrava, o cadáver foi suspenso pelos peritos e transportado para o fundo daquele baú fúnebre. Ainda tive tempo de ver cair o fiapo de lençol que o cobria a face e uma pequena gota de sangue a lhe escorrer o peito. Lembrei-me de Coralina, uma moça bem criada, a quem amei efusivamente. Nunca me importei por ela ter dentes horrorosos e uma gengiva mais frágil do que cristal. Às vezes, ria um riso vermelho. Coralina durou um pouco mais: um tratamento de tártaro. A partir daí, o dentista era a bola da vez.


Mendes Júnior.
* Crônica publicada na coletânea Encontros, da Editora Guemanisse;
** Photo by Mendes Júnior.

2 comentários:

Anônimo disse...

Um José que passa, um outro que fica. Um, que, um dia, morreu. Aquele que pensa e sempre há o que escreve. No mundo, há muitos Josés e Marias. Diria até que no mundo só há Josés e Marias. Alguns, mais sortudos, ou não, são abençoados por um 'de Deus' ou 'da Graça'. Todos Josés e Marias.

Perdão pela demora. Não tinha lido.
Beijos

Anônimo disse...

bom comeco