15 junho, 2007

Caixa de madeira III


15/06/2007

A viúva deu de cara com o destempero da fome e com o desespero da solidão. Pensava que seria fácil a vida ao lado de um ventríloquo, mas estava completamente equivocada. E o que dizer sem ele?, que estava lá correndo e se pelando de medo da infalível morte. Na verdade, ela também estava com receio de ir parar debaixo da terra seca – o menino e ela –, afinal, desde que perdera o marido, não tinham nada mais além do bilhete para Massapê, que, assim mesmo, já caducara porque a viagem terminou tão logo eles pularam da carroceria do pau-de-arara, em plena praça-matriz. Por sorte, ainda carregavam três peças de vestir e as sandálias que estavam nos pés de cada um. É sempre ajuizado requerer da lembrança a satisfação da comunhão e o aconchego da família, e nesse momento ela quis de volta sua vidinha de outrora. O menino, por sua vez, ficou em estado de graça vendo uma roda-gigante girando a todo vapor, enquanto a mãe tentava conter o enjôo provocado pelo vazio na barriga e pelos movimentos circulares da geringonça. Ela apertava com muita força a mão do filho – parecia que o mundo todo, e não ela, iria desabar, mas a viúva teve de ser amparada por um grupo de estivadores, que conversavam despreocupadamente, tão logo desmaiou.

Massapê era uma pequena cidade, entretanto, melhor e mais prudente seria esperar por Nepomuceno ali mesmo, na praça. Não tardaria sua chegada, que seria, por certo, em grande estilo, mesmo tendo sido deixado para trás, esquecido com o pinto na mão. O engraçado de toda a história era que Nepomuceno foi quem convenceu a viúva a ficar nesta condição de quase adúltera e a ir embora, juntamente com o menino, para território neutro, longe das línguas afiadas do povo ignorante, que só cobiçava o mal e via em cada ato de afeto um crime horrendo. Nada era tão libidinoso assim. Não haveria enforcamento em público de um matraqueado feito Nepomuceno, muito menos o apedrejamento de senhora tão distinta e humana como a viúva. O moleque ia ser cria de Nepomuceno – já era bem parecido – e, quando virasse rapaz, receberia ensinamentos de ventriloquia e iria também conversar com os mortos, ajudando pessoas necessitadas e saudosas. A viúva não estava achando a graça que acabamos de citar; ao contrário, começava a se chatear de verdade diante da ausência do mijão.

A fome não abrandava e, como se não fosse o suficiente, fazia um calor dos infernos. E a roda-gigante forçava a náusea – uma tonteira grande, a vista turva e uma vontade de vomitar, mas o quê?, se já fazia dia e meio que estavam o menino e ela sem alimento. Ainda por cima dormiam na rua, em bancos de madeira encardidos, enquanto ansiavam por Nepomuceno, que chegaria, decerto, distante de um naufragado, mas forte e galante como jamais visto. Uma pena: não houve cristão que se apiedasse dos dois e, portanto, nenhuma migalha lhes foi oferecida, nem quando a procissão passou, cheia de beatas, moças virgens e rapagões de paletós claros, com passos lentos e semblantes falsos de comiseração. O menino sequer deu pela procissão, pois não arredava os miúdos olhos da roda que girava, girava, girava, iluminada por fluorescentes recobertas de celofanes coloridas. Às vezes, lá estava ele dançando ao som da barulheira que reverberava da imponente roda-gigante.

Nepomuceno não fazia idéia do sofrimento dessa gente. Tudo bem que estivesse agora perto de acertar as contas com o destino, porém, antes de insultar a crença do povo com a ladainha de ventríloquo, estava em refestelos numa redinha lá longe, enquanto a viúva e o menino padeciam nas entranhas da terra quente e empoeirada. Julgar desse modo, no entanto, é condenar sem entrar no mérito da querela. Ora – não esqueçamos –, não fosse por um descuido do motorista e a necessidade de Nepomuceno, ele estaria socorrendo a viúva e o menino diante de tamanha provocação da vida. No momento, precisava arranjar força e inteligência suficientes para driblar a sede de sangue de um homem frio, que permanecia no seu encalço, sertão adentro.


Mendes Júnior
* Quadro L'Evénement, de Heidi Koch;
** Publicado no Cronópios, em 18/01/2008.

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