24 junho, 2007

O vendedor de enciclopédias


04/12/2006.


Linha 174. Pelas minhas contas, chegaria ao meu ponto em uma hora, e nem tinha que passar pelo sufoco do outro dia. Somente um idiota como eu pegaria um coletivo errado. Fui parar no lado de lá da cidade. Contava com a venda das enciclopédias para voltar para casa, mas naquele fim de mundo ninguém lia nem embalagem de sabonete em banheiro. Pedi esmola pro ônibus da volta. Não foi fácil, quase me roubam as enciclopédias e ainda tive de escutar um tal mais novo do que eu me chamando de malandro. O sujeito que tentou afanar meu ganha-pão me chamou de vagabundo sem-vergonha. Isto é o fim dos tempos! Um ladrão me qualificando desta maneira! Juntando as migalhas, considerando um bando de negativas, consegui abortar no meu bairro com o apurado.

O trabalho de vender enciclopédias em bairros carentes deveria ser considerado emprego de risco. Primeiro, é difícil encontrar alguém disposto a sacar duas notas de cinqüentinha para usufruir de conhecimento fácil; como se isto não fosse suficiente, temos de ficar de cá pra lá com um peso dos infernos nos braços. Se alguém se dispusesse a me eleger representante da classe, juro que elaboraria um projeto de lei garantindo aos vendedores de enciclopédias aposentadoria por tempo de serviço, seguro-saúde e uma licença remunerada de quatro meses. Adquiri nesses dois anos de serviços lesões por todo o corpo, incluíndo uma bala perdida que ficou alojada na minha perna esquerda, impedindo-me de bater uma bolinha com os compadres aos domingos. Agora vendo enciclopédias também aos domingos.

Nem tinha tomado meu café por causa do horário. De verdade, acabara o pó do café e não tive nem a decência de ir ao mercadinho do lado comprar mais. Acordar numa segunda-feira e não afagar a mente com um pretinho quente é quase desumano. Aprontei esta comigo. Estava me fazendo falta não só o café, mas um significativo pedaço de pão com manteiga. Fui socorrido por uma senhora que estava atrás de mim na parada do ônibus. Viu meu corpo bambear e impediu minha queda. A mulher era dotada de um braço até grosseiro, mas, não fosse por eles, só Deus sabe o que teria me acontecido. Mesmo sem forças, escutei tudinho o que falavam de mim: está pálido; está tendo uma convulsão; vai morrer o pobre coitado; é falta de açúcar. Teve gente até clamando por alguém que soubesse rezar para encomendar a minha alma. Dei um passamento de tanta fome, soube disto ao tornar.

O café estava fazendo muita falta. Sou viciado em cafeína, muito embora um médico amigo tenha recomendado não exceder neste propósito. Posso até bater com a cara numa porta que não queira comprar enciclopédia, mas um pretinho quente terá de me oferecer. Por falar em enciclopédia, alguém levou minha sacola. Perguntei a todos se a tinham visto, inclusive à senhora dos braços enormes, mas ninguém sabia do paradeiro da sacola. Pros diabos, alguém me furtara enquanto passava mal. “Empalmaram minhas enciclopédias e niguém vê nada!” – gritei. Fui ameaçado por uma risadinha seca. “Além de ladrões, nota-se um mundo de ignorantes ao redor da gente” – fui mais grosseiro, e de muito pouco adiantou. Cada um olhava para o lado fazendo de conta que não era consigo. “Uma crueldade! Uns espertalhões que se aproveitam da desgraça alheia”. Estava desempregado. Minha vida é assim: uma hora estou por cima, noutrora no fundo do poço. Envergonhado, meti a mão no bolso para saber com quanto iria tentar recomeçar a vida: o suficiente para entrar na linha 174, sem direito à volta. Mas não se regula as idéias de barriga vazia, o próprio corpo pede arrego. Voltei à esmola, na parada do ônibus, para ajuntar o suficiente do pacote de café, mas não deram ouvidos e ainda me chamaram de vagabundo.
Mendes Júnior.
* Photo by Mendes Júnior.

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