30 junho, 2007

Laura


30/06/2007.



De certa forma, não parecia coerente que ela entrasse naquele cubículo com a finalidade de reaver o passado, porém também não era correto sair em silêncio, mas foi justamente o que aconteceu a Laura quando adentrou na cabina telefônica e se deparou com uma baita traição. Acabara de desembarcar: “O passaporte, senhorita”, pediu-lhe o Agente da Imigração, com uma expressão de cansaço, que revelava não ser mui amigo. Laura procurou no primeiro café crédito suficiente para fazer uma ligação para o Brasil – queria lhe dizer tudo no exato instante em que escutasse um barulho vindo do outro lado da linha. Não estava pesarosa de nada: “Não estou arrependida”, dizia para si.

— O troco? Um expresso, por favor!

Laura, depois da sua trigésima primeira primavera e um enorme pileque, resolveu que no final da Quaresma entregaria sua vida pregressa ao diabo que a carregasse e que iria embora para algum lugar da África. Sua mãe quase teve um troço fatal; não fosse o Plano de Saúde do Sindicato dos Professores da Rede Municipal de Manuaba do Norte, a velha também faria uma viagem, mas direto para o jazigo da família, sem escala. E o que dizer do marido abandonado, o Alberto?, senão que o homem quase enlouquece; fez de tudo para tirar da cabeça desmiolada da Laura a absurda idéia do abandono de lar, no todo, mas não houve jeito: Laura era a decisão em pessoa.

Ela cansara de tudo e de todos, sentimento que ninguém, nem de longe, imaginava. Ainda por cima, gostaria de correr mundo e conhecer gente nova. Coisa que também não atinavam é que sua intenção era a de nunca mais voltar – os tolos achavam que, mais cedo ou mais tarde, Laura estaria de volta. Ledo engano! Não tivera pai, nada de filhos, tinha uma irmã, chamada Suzana, que vivia repetindo aos quatro cantos que o Alberto era isto, que o Alberto era aquilo, e uma mãe adoentada de fígado – portanto, é chegado o momento de preparar uma trouxa e partir. E sua mala incluía tão-somente um par de calças, uma sandália de tiras, cinco camisetas, uma pequena sacola com o material para higiene básica, além de uma rede de dormir. Laura não se achava rainha para levar um baú de coisas. Raspou a poupança para a passagem de ida, restando-lhe quinhentos dólares para correr o mundo.

Uma turbulência durante o vôo, que durou cerca de dez minutos, fê-la comparar a implicância da natureza com sua própria vida. Lembrou de como Alberto havia sido um estorvo durante todo esse tempo, e vice-versa. Do dia em que cismou com a gordura de Laura, nunca mais foi um homem digno de sua companhia. Para a traição, Alberto precisou de um pequeno salto. Por vezes notou a distância entre ambos aumentando, mas nada do que fizesse servia para costurar os retalhos conjugais. Com os dedos agarrados no braço da poltrona (talvez um pouco de medo), pôde observar com detalhe sua mão, já sem a aliança, que um dia evitou a agressão de Alberto. “Como fui infeliz todo esse tempo”, dizia. Permaneceu absorta durante algum tempo; reconstituía na memória os anos de casamento; sabia que amara muito mais do que foi amada. Pela primeira vez, sentia-se sozinha e feliz. A vida dela pouco importava, nem Alberto ligava: ele mal sabia sua ocupação: numismata. Para ele, apenas um nome engraçado. “Senhores passageiros, dentro de instantes estaremos pousando no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, na Ilha de Santiago”, dizia uma voz gutural.

Quando partiu para a cabina telefônica, era como se estivesse subindo num ringue, as palavras estavam prontas, as frases bem acabadas, tudo certo. Ela era forte o bastante para estar ali. No primeiro sinal de chamada, já imaginava o quão ruborizado ficaria Alberto diante do seu acerto de contas. Decidiu que gritaria sua liberdade e pronto. Aproveitaria para saber o estado da saúde de sua genitora. O telefone deu um toque e ela suspirou; dois toques, um segundo suspiro; no terceiro toque, uma voz feminina-ofegante-conhecida atendeu dizendo um alô. Delicadamente, foi deslizando o gancho pela face; com os olhos marejados, através da vidraça da cabina, acompanhou a moça sorridente do café falando com um rapaz de macacão, que parecia contar uma história interessante. “Suzana?!” – veio um terceiro suspiro.

Mendes Júnior
* Photo by Mendes Júnior.

Nenhum comentário: