19 julho, 2007

Caixa de madeira IV


19/07/2007.


Segue, bicho danado, para o homem não te alcançar! Aliás, os homens, pois já eram dois cabras armados no seu encalço. Fazia três dias com três noites que Nepomuceno estava enfiado na mata, alimentando-se daquilo que lhe era oferecido pelo caminho e por comiseração: comeu e bebeu de tudo um pouco, da água escura ao arroz podre e azedo – melhor do que barriga vazia e mente do diabo. Nepomuceno não questionou fiapo do destino, seguiu o rumo da venta, primeiro, correndo, depois, andando com lentidão de vaca, afinal, um baita sol na moleira, só revezando um pé com outro e descansando os dois ao mesmo tempo. Nesse momento, carregava consigo pensamentos esquisitos: lembrou de uma vez em que seu pai, no auge de uma leptomeningite, lhe disse que vida boa era aquela sem o aviso da morte e que o resto de nada valia, pois homem nenhum consegue sorrir sabendo que vai morrer logo, logo, e o velho tinha razão: por uma insignificante falha – atinava –, Nepomuceno convalescia como uma pústula suada e sozinha. O pai de Nepomuceno não morreu muito moço, mas viveria bons anos, pois ainda estava em tempo de depurar as falhas pregressas, mas é que homem sem mulher é considerado por capricho uma covardia sem tamanho. A mulher não muito havia passado dessa para uma melhor e excepcional, caminhando pela estrada de paz, que nada se parecia com a que Nepomuceno via a todo instante à sua frente, e que não arredava dele nem dava folga ao cansaço. Se parasse, era bem provável que o alcançassem, mas será que ainda o perseguem, perguntava para si, tentando achar a melhor brecha de escapar dos matadores. A mãe morreu de repente e até hoje não se sabia da causa, mas uma coisa era certa: abandonou o marido e seu sem-jeito-de-sobrevivência. Ficou tão manhoso, o velho, que estava clamando pela chaga final da doença, a fim de acabar com a saudade da companheira e, enfim, ir para junto dela. Sentia falta do seu guisado e do feijão-tropeiro. No entanto – triste de quem fica –, havia o filho, mas o velho tinha certeza de que ensinara o suficiente para ele se virar por aí e resolveu sossegar na sua redinha.

Nepomuceno, enquanto caminhava pela mata, insistia nas lembranças do pai, mas era bom se atentar para si: estava guenzo, parecendo um molambo, uma alma penada, fraco de tanto calor na cachola e caiu. Quando voltou a si, olhou para o teto e para os lados, mas não viu vivalma – não sabia exatamente onde estava –, e ainda por cima estava deitado numa cama com lençóis lavados. Tentou se reerguer, mas não teve forças e voltou a recostar a cabeça no travesseiro. Esboçou um chamado pela viúva, pois no fundo da alma achava que milagres fossem possíveis de acontecer, mas não no sertão, poderia dizer seu pai, e daí entrou no pequeno quarto uma morena muito formosa, de cabelos longos e escuros, vestindo uma saia lilás e uma camiseta de propaganda política. Seria natural que a primeira frase que saísse de sua boca fosse em que local estava ou coisa parecida, mas não: disse que a moça era muito bonita, o que a fez corar. Viu que ela há muito não depilava as axilas e o buço. Ela, então, explicou que seu irmão o havia encontrado caído à beira do asfalto e, diante do medo de que fosse comido feito carniça pelos urubus, o carregou nos ombros até nossa casa, mas que ficasse quieto, pois era preciso se alimentar e beber muita água, estava flagelado demais para prosseguir viagem. É claro que Nepomuceno não fez a menor objeção à decisão da beldade, que se chamava Lauremir – uma junção do nome paterno, Edemir, e da mãe, Laura –; ele queria mais era passar o máximo de tempo naquela casa se escondendo, comendo e bebendo de graça. Passado pouco tempo, a vida lhe sorriu novamente: estava ele lapingochando a Lauremir. E assim foi por quase um mês antes de anunciar que já abusara da hospitalidade da família e que tinha um compromisso sério em Massapê; necessitava partir, mas antes pediu um punhado de oração, pois tinha gente perigosa querendo arrancar seu penacho para dar de comer aos animais. Lauremir chorou quando o viu seguir pela estradinha de piçarra, principalmente imaginando o que poderia acontecer ao penacho do querido Nepomuceno. Seu Edemir ainda observou: “Que boa praça!”

Já não se parecia em nada com um graveto, ao contrário, com quilos e mais quilos de farinha d’água, Nepomuceno inchou e estava gordo novamente. Voltou à beira da estrada e abanou o polegar. Conseguiu, a muito custo, uma carona de um caminhoneiro, que anunciou ter de parar na cidade mais próxima. Como confiança é um troço em extinção, Nepomuceno se submeteu a viajar com um homem esquisito e com sua arma entre as pernas e à altura da mão. Pensou que faria o mesmo no seu lugar, caso a situação fosse invertida. Conversaram muito pouco e ainda por cima sobre as aves transportadas – a carroceria estava lotada de garajau. “Não incomoda o cheiro das aves?”, puxou assunto Nepomuceno, no que o caminhoneiro respondeu sem muita simpatia: “Já acostumei”, e pronto, ficou nisto. Era ruim a falta do palavreado, pois Nepomuceno odiava canções sertanejas e, ao contrário, o caminhoneiro não só era viciado, como acompanhava cantando todas as letras das músicas no seu toca-fitas. O trajeto deve ter durado, aproximadamente, uma hora e, portanto, Nepomuceno agradeceu pela economia de ter de andar muitos quilômetros a pé. Desceu num posto de gasolina e foi logo tomar um banho e trocar as veste – Lauremir cedeu-lhe duas roupas do irmão, sem que este soubesse, é claro. Quando Nepomuceno acabou de se molhar e de se vestir, despediu-se de dois rapazes, que tomavam banho nos outros chuveiros, colocou três moedas na caixinha da administração, perto da pia, e, por mais que quase não tenha se demorado, não avistou mais o caminhão no estacionamento. Foi ao restaurante do posto de combustível, pediu uma pinga e ficou sentado observando o marasmo da tarde.

Mendes Júnior.
* Photo by Peter Rodger, "Colorado, 1999".

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