27 julho, 2007

Espera





10/05/2006.


Só queria vê-la chegar. Já conferira tudo mais de uma vez: a garrafa de vermute devidamente acomodada no gelo; o disco do Oscar Peterson na velha vitrola; os quitutes apostos por sobre a mesinha de centro; o casal de taças limpas fazendo companhia ao porta-guardanapo; a lixeira do banheiro vazia; e o aromatizante embebedando a casa de flores do campo. Tudo pronto. Só faltava ela tocar a campainha. Não que seja ansioso ou coisa afim, mas, nestas ocasiões, é comum sentir uma faísca de agonia. Além do que, mesmo que tenha perdido as contas de quantas vezes ela veio, faço sempre parecer que é a primeira.

De verdade, ela está demorando muito. Não acredito que tenha acontecido algo de ruim, ela é muito esperta. Lembro de inúmeras vezes em que caí em suas conversas melosas para extrair de mim alguma vantagem. Também pudera: são anos e anos de uma vida difícil. Vez por outra, deixo-me levar descaradamente – é uma forma carinhosa de evitar discussão; outras não, passa-me a rasteira de pronto. Adorei o dia em que ela me ensinou a manusear um canivete. Disse que era para se proteger das agruras da vida. Fui ao dicionário saber o que diabos era agrura. Depois que desci do meu status de hombridade, aprovei o doce acalanto que ela me oferecia.

Não conseguia desgrudar da porta. Fiquei alguns minutos, parado, esperando por uma vibração qualquer, mas nada; nem o som de uma respiração. Silêncio. A música parou e não pude sequer me mexer. Ainda por cima tinha medo de sujar a casa. Ela e sua mania de limpeza. Eu mesmo caprichava na arrumação. Certo dia me autuou por um crime de menor potencial ofensivo: uma panela suja escondida dentro da geladeira; fui julgado com crueldade. Por isso, não costumo cometer deslizes. Não gosto de contrariar suas vontades, muito embora ela não esteja nem aí para as minhas coisas. Nunca respeita a ordem de vizinhança de meus livros e, volta e meia, põe Camus ao lado de Sartre, mas isto não faz de minha saudade um acontecimento menor. Sou louco por ela.

Lá fora, uma chuva torrencial. Se ela vier, talvez fique resfriada. Mas ela é dura na queda; talvez não fique. Resolvi tentar me acalmar com uma taça. Duas. Três. Quatro... Será que a danada não vem? Olhei para o relógio da cozinha: já era madrugada. Não conseguiria ligar para a polícia (melhor não) nem para a emergência, pois o telefone mais próximo ficava a duas quadras daqui e, com essa chuva toda, seria impossível. Sinto falta do seu riso largo: ri como se o mundo e as pessoas fossem insignificantes, com vontade. Invejo o formato daquela boca sempre tão cheia de afta. Para ela, não há tempo ruim; para mim, só há ela.

Minha espera descambou numa angústia sem igual. Nossa noite se transformara na minha manhã. E fiquei sentado no sofá olhando a janela. Pude observar os primeiros raios solares misturados com os pingos d’água. A casa estava realmente limpa. Se não sofresse tanto, poderia jurar estar em paz. Mas faltava ela e seu orgulho bobo. Certo não estou, porém apostaria – sem medo de errar – que a indelicadeza que cometi da última vez foi fatal. Resolver pagar mesmo diante de sua insistência em dizer que me amava foi estupidez.

E a porta permanecia no silêncio de outrora.

Mendes Júnior.
* Crônica publicada no site do Jornal O Noroeste, em 31/10/2006;
** Photo by DELLACROIX & DELLFINA, "Prayer (from the Art Noir Series)".

Um comentário:

Mariana Sanford disse...

muito boa, amei!!!!
beijos