27 agosto, 2007

Caixa de madeira V


27/08/2007.


A viúva e o filho estavam vivendo numa casa de tolerância. Não houve outro jeito – o único bem da viúva, além do próprio menino, que queria sempre por perto, era o corpo, que dava para o gasto, sim, e a freguesia gostou da aquisição de dona Jussara, que era responsável pelas menininhas de Massapê. A fome é diabo que tem pressa e a viúva até arranjou um apelido artístico: Valquíria Callas. Mesmo sabendo de quem se trata o último nome, não podemos afirmar se ela conhecia ou não a história de Callas. No entanto, com nome ou sem nome, a viúva começou a se deitar com os machos da cidade e em pouco tempo já tinha rodado por pelo menos metade da frota. Era ruim o apurado e tinham os asquerosos. Chegou a fazer duas exigências antes de começar o serviço: nada de mulheres nem homens que gostam de bater – isto não topava -, aceitas por dona Jussara. Se fosse possível entrar na alma da viúva, talvez descobríssemos se ainda havia no peito saudades de Nepomuceno, que estava longe há muito tempo e que ela tinha certeza estar aprontando maluquices por aí. Coitado do menino – pensava a viúva – tão miúdo e já nessa dificuldade. Ao menino tudo era estranho e diferente donde vinha. Andou reclamando da fome algumas vezes, mas nada que torrasse a paciência da mãe – acostumara-se a passar horas sem nada comer.

O parque de diversões ainda estava em Massapê, e todo dia, no comecinho da noite, o menino se sentava num banco da praça para encarar a roda girando com suas luzes coloridas. A viúva prometera levá-lo ao parque assim que houvesse condições mínimas, mas ele não era apressado, contentava-se em apenas admirar a roda-gigante; também nunca se imaginara dentro dela, balançando na máquina mágica, como gostava de repetir à mãe. Mas a viúva ainda não terminara de pagar as dívidas que havia contraído para poder sustentar até ali os dois, e só conseguia na pele de Valquíria Callas. Embora a criaturinha soubesse de que forma a viúva ganhava a vida, sempre ficava ausente da casa durante o expediente, a fim de não encarar a mãe trabalhando; foi bastante para o menino vê-la com Nepomuceno nas costas do pai. Tudo bem que fosse afinado com Nepomuceno, mas seria exagero assistir ao adultério, assim como ficar num local onde homens e mulheres cediam aos prazeres carnais acompanhados pelo álcool e fumo, incluindo a própria mãe, seria sobremaneira um absurdo. Não conseguia esquecer uma briga entre dois homens por Cecília, uma fêmea jeitosa do Pará, em que tiros foram disparados.

Dona Jussara era uma má pessoa: acolheu a viúva e o filho no prostíbulo, desde que ela se vendesse e que, a cada deitada, metade do apurado fosse da casa e dez por cento para pagar a alimentação dos dois. Triste, pois lhe restava muito pouco, levando-se em consideração que também retribuíam conforme aquilo que julgavam valer: se fosse um bom sexo, bem; no caso de não ter sido, sequer desembolsavam um trocado. Isto valia para as noites com clientes. Se não aparecesse qualquer tarado, ficaria registrada a dívida para com dona Jussara, que já ia razoável. Nos primeiros dias a viúva chorou em demasia, tanto pela vergonha quanto pela dor causada pela introdução de membros desconhecidos. E havia o menino que passou a falar pouco e a emagrecer de repente. Numa das manhãs vomitou sangue bem na mesa do café, fato que deixou dona Jussara irritadíssima e por pouco não punha os dois porta afora, o que representaria mais uma calamidade na vida da viúva, que abandonara o marido para viver como uma praga na terra dos outros. Acharam que o menino estava com algum verme, pois volta e meia encontravam-no brincando com barro e certamente devia ter colocado a mão suja na boca – era isto que indicavam os sintomas. Deram-lhe uns laxantes e foram dois dias sem sair de perto do vaso sanitário; o menino ficou ainda mais magricela.

Do dia em que partiram rumo a Massapê, já havia se passado dois meses e meio e nada de Nepomuceno chegar. Às vezes o menino perguntava pelo tio, mas engraçado que nunca chorou por ele desde que se separaram, o que não significava que não sentisse a sua ausência, claro, mas o menino se demonstrava, mesmo novo, forte e inteligente. No fundo tinha noção de que não mais veria Nepomuceno e essa idéia ficava cada vez mais presa ao seu pensamento. O que o penalizava era não ter tido tempo de aprender a fórmula para se falar com morto, através da ventriloquia. Queria ser sabido como Nepomuceno e também com os mesmos poderes, pois desta maneira conseguiria ajudar sua mãe. Há muitas manhãs que vinha tentando fazer algo neste sentido, mas acabou demonstrando não ter tato: foi surpreendido ao abrir uma gaveta no quarto de dona Jussara; levou dela uma surra de chicote. Até então não havia apanhado na vida e a viúva ficou chocada quando soube do ocorrido; foi tomar satisfações com dona Jussara, mas, diante de outra ameaça de ir para o olho da rua, quedou seu ódio. O menino, no entanto, explicou que sua vontade era de fugir com a mãe dali, o que a fez cair em prantos. Os dois se abraçaram como nunca dantes. A viúva garantiu que pensava no mesmo, mas por enquanto melhor se aquietar ante a estupidez dessa bruxa.

O menino viu a foto da mãe, ou melhor, de Valquíria Callas fixada em um poste na praça. Era uma propaganda que dizia na noite seguinte seria comemorado o aniversário da Casa de Dona Jussara e as atrações da festa eram a viúva e uma loira novinha, cujo nome não conhecia – só a vira uma vez. Ele, no entanto, não se assustou ao ver sua mãe toda vestida e pintada de puta, pois não se tratava da primeira vez que isto acontecia, porém não era bom sentar ao lado daquele cartaz. Levantou-se e, maliciosamente, retirou do poste a foto de Valquíria Callas e a escondeu no bolso da bermuda. Voltou a se sentar e a olhar o giro da roda.

Mendes Júnior
* Photo by Jeremy Webb, "Floor Figure".

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