03 agosto, 2007

Habitual




03/08/2007.


Quem nunca partiu dilacerado, feito um cachorro sem dono e prosa, ultrapassando obstáculos por cima de obstáculos tortuosos, logo cedinho, no limite da lua e do sol, a fim de alcançar a velha e conhecida condução de todo dia, na tentativa quase atlética de cumprir o rigoroso horário do expediente? Quem nunca sentiu o gostinho de chegar ao trabalho todo ensopado, seja de chuva ou suor, e ainda assim, a despeito de todo o esforço, que certamente não será reconhecido, não conseguir bater o ponto naquele estúpido horário? Quem nunca se viu na iminência de ser gentilmente sacado do quadro de funcionário da tal repartição, que há bons anos consome suas energias e sua paciência, pois, de repente, o mundo escolheu lhe pregar uma baita peça e acabou por desordenar seu dia e sua vida, já tão cheia de desencontros? É impossível que o pobre-sofrido-trabalhador-brasileiro, principalmente o moribundo que vive nos grandes e gélidos centros comerciais, não tenha levado uma sonora sova de impropérios do empregador ou de seu pelego por ter perdido a droga da hora do apito da fábrica, independente da explicação, se verdade ou lorota, se com deslisura ou honradez ele falou que não foi sua a culpa pelo atraso, mas do trem, do metrô, do coletivo, do engarrafamento ou de um abalroamento, não importa, levando em consideração que o trânsito hoje em dia está um caos, e ainda ser alvejado por lições de moral, pois a responsabilidade não admite brechas e a lei laboral não resguarda o malandro, o vagabundo e o desidioso, ao contrário, fere com ferro e fogo quem não madruga, e ainda têm os desafortunados que ficam recolhidos numa cela abrilhantando a bota de cano longo, lendo a bíblia e fumando cigarro sem filtro. Tenho um colega no jornal que não se cansa em ressaltar que não há mal que não possa ser piorado. Ele tem toda razão. Hoje mesmo, como se tivesse há pouco saído de uma internação de duas semanas no hospício, com rosto e camisa amassados, barba por fazer, precisando ser escaldado, de aspecto maldito e amedrontador, e com o diabo do ponteiro dos segundos azucrinando minha graça, eis que passa um carro bacana a toda por uma poça d’água, à altura do meio-fio, dando-me um banho de lama com vigor. Nossa! Um anúncio do Bingo Jamaica veio parar na minha testa, colado, e olhe que metade da minha vestimenta era branca. Bem dito: era branca! Imediatamente lembrei do colega: não há mal que não possa ser piorado – já estava atrasado; agora, passei à condição de atrasado e enlameado, muito embora ainda tenha sido vilipendiado dentro do ônibus: uma moça muito bonitinha me pegou com a cabeça escorada na janela, dormindo irracionalmente, com um fio de baba escorrendo pelo canto da boca, e não se furtou em me chamar de porcalhão, o que não era para menos, no entanto, ninguém gosta de ser ofendido, ainda mais na frente de muitos. Não preguei os olhos até chegar no batente; também não tiraram os olhos de mim, isto percebia com facilidade. Antes mesmo de pegar um cafezinho, o editor do jornal me chamou em sua sala para dizer que me daria a derradeira oportunidade de permanecer empregado no Diário Novo, razão esta que me fez muito agradecido, pois não era o momento de ficar sem a renda dos obituários – tinha de acertar umas contas com um prestamista durante os próximos cinco meses, e com este tipo não se brinca. Meu colega de trabalho – o tal que para ele o mal sempre poderia sofrer um upgrade – estava redigindo uma matéria a respeito de um andaime rolante que despencou do quinto andar de um prédio em construção, matando três operários; ele ria da declaração do dono da obra, pois este afirmava que aos seus empregados era obrigatório o uso de equipamento de segurança, embora nenhum dos três estivesse portando sequer capacete no momento da fatalidade. Veja que disparate, o desse senhor, disse-me munido de certa indignação. No entanto, o que evitaria a morte de uma pessoa que sucumbe do quinto andar de um edifício?, perguntou-me. Respondi-lhe que nem milagre e indaguei sobre os mortos importantes do dia. Até o presente momento, ninguém, enfatizou.


Mendes Júnior.
* Publicado no Jornal do Leitor, Jornal O Povo, em 12/07/2008;
** Photo by Chema Madoz, "Eyelashes and time".

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