19 agosto, 2007

Um casal de cinema


De longe, parecia ser um casal terno. O rapagão, muito bem aprumado dentro de um risca de giz, gastava parte do seu tempo alisando o bigode, com um pequeno pente. A moça, porém, de pele-morena-clara, cruzava as pernas deliciosamente a cada frase concluída. Impressionava-me a forma e a candura como lidava com a longa saia. O constante entrelaçamento de pernas não era causa para deslizes. Muito pouco se via além do pano. Não poderia afirmar se sua veste era coisa de grã-fina, por duas razões: primeiro, ser desprovido de conhecimentos técnico-estilísticos; em segundo plano, estar fisicamente distante. Sempre escolho mesas da entrada de qualquer recinto que vá, por ser afeito a pequenos detalhes, quase delitos, sem contar que não suporto a idéia de sentar em fundo de bar. E aqueles dois, que ora me chamavam a atenção, haviam se apropriado de um espaço afastado de tudo e de todos, inclusive dos garçons, dos toaletes e da tabacaria.

Mesmo entretido com um pedaço do Frango à Passarinho e uma boa dose de Rhum Barbancourt, bati na mesa e disse baixinho: “Um casal de cinema”. Observei cada gesto e nada de atropelos. Logo se via que os dois tinham classe. Poderia até nem ter a cédula, mas se portavam com tal elegância que invejei a pose do refinado. Se pudesse por segundos sentar-me diante de tão distinta dama, talvez não conseguisse sequer imitar o cavalheiro. Um conhecido meu diria se tratar da inauguração de um relacionamento que cedo ou tarde fará parte do mesmo balaio de tantos que se vê por aí. Discordaria com muita franqueza. Posso estar enganado, mas percebo na troca de olhares uma cumplicidade antiga. Era como se estivessem fazendo pela centésima vez jura de um amor que há anos se sabe eterno. Por estar deveras envolvido, deixei-me levar ao centro do bar, quebrando uma velha tradição. Gardênia, meu garçom dileto, abriu sua boca sem dentes com espanto.

Na vitrola, Ninguém me ama, de Antônio Maria. Repentinamente, uma leve sensação de que a conhecia. Fitei-a tentando lembrar se da drogaria ou de alguma fila de padaria, mas os anos me permitem apenas o luxo de flashes desta natureza, jamais qualquer certeza. Meu interesse era tamanho que comecei a imaginar o que os sussurros pronunciados, tanto por um quanto pelo outro, significavam. Por certo, frases que fogem à compreensão daqueles que nunca amaram de verdade ou sofreram por este mesmo amor. Nesse ínterim, as mãos do rapagão deslizavam pela face imóvel da moça, como um pintor que desafia a delicadeza no tocar da brocha junto à parede novinha em folha. Ele usava uma aliança na mão direita.

Apostaria o dedo menor como se tratava de um pedido de casamento preliminar. Na verdade, adoraria que fosse. Não era. Mal terminara o último gole de qualquer coisa que degustava, a moça levantou-se graciosamente e, com a mão direita desprotegida de aliança, deu uma tapa no gentil hombre, despedindo-se silenciosamente. Ao passar por mim, com sua beleza sutil e uma lágrima perdida, duvidei ser seu vestido um italiano.

“Gardênia, mais um, por favor”.

Mendes Júnior.
* Photo by Kim JI HAE, An Empty Bed;
** Publicado no Jornal O Povo, em 19/08/2007;
*** Publicado no Jornal O Noroeste.

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