2007.
Ontem conheci um homem. Estava chovendo. Não sei por que sempre quando chove conheço uma pessoa. Outro dia, protegendo-me dos pingos d’água debaixo de uma marquise, conheci um mendigo. Conversamos sobre muitas coisas, mas o que mais me impressionou foi sua facilidade em tratar de política financeira, coisa de que nada entendo. Começou falando de um negócio de taxa de juros, câmbio flutuante e inflação. Fiquei só balançando a cabeça e a única vez em que ele fez o mesmo foi quando eu disse que a inflação estava menor do que à época dos fiscais do Sarney.
Pois bem, conheci mais um homem: muito sério para o meu gosto – sou mais do tipo sorridente, brincalhão e despojado. Ele estava todo engomado, dentro de uma camisa de tecido bom, e calçava um pisante lustroso nos pés pequenos. Acho que o cabelo lambido era proveniente de uma boa mão de gel – não parecia apenas molhado. Sou mesmo muito dada, fui bater do lado dele no sofá da sala de espera. Senti sua loção de barbear: um cheiro forte de eucalipto. Sua boca carnuda me pareceu instigante. Todos que têm bocas carnudas também exibem línguas poderosas, de fazer arrepiar inclusive aquele fio incrustado na pele bem-coberta. Este homem não poderia ser diferente. Não era mesmo. Vi que folheava uma revista de fofoca. Sou mesmo uma safada, puxei bem devagar a ponta da saia para que minhas pernas ficassem mais visíveis. Problema: o danado sequer tirou a vista da porcaria da revista.
Vou à luta. Depois de uns pigarros, comentei algo a respeito do frio que fazia lá fora e do meu desleixo por sair de casa com um vestuário tão inadequado. Ele sussurrou algo e foi a deixa para que eu perguntasse seu nome. Constantini – respondeu. Pareceu-me italiano, mas logo esclareceu ser argentino e que ainda criança foi descarregado na cidade de Porto Alegre, aos cuidados de uma família brasileira. A razão para tanto sofrimento seria a separação – Não estava preparado. Por que, então? Os pais eram comunistas e, devido ao caos instalado em “mi Buenos Aires querido”, resolveram rifar a cria alegando segurança. O homem não parava de falar e de se lamentar; começou a chorar. Tive vontade de pegar Constantini no colo, mas mal o conhecia; fiquei receosa de que não aprovasse minha atitude. Sou mesmo descolada, perguntei se ele vez ou outra bebia – uma forma de falar a respeito de assuntos mais simples. Disse-me que vinho, mas não os argentinos – que tinha pavor –, os chilenos e os portugueses, estes, sim, eram vinhos de verdade. E música, gosta de agito? O homem era adepto do tango. Carlos Gardel – disse-me. Completou se vangloriando por Carlos Gardel – que eu nunca o soube mais gordo – ter nascido francês.
Sou mesmo corajosa, perguntei se ele era casado. Ele ficou um pouco pensativo, olhou para o lado obliquamente, até que me disse que era divorciado; a mulher foi embora com um professor de português. Lá se foi o homem de novo chorando. Não tenho sorte com este tipo de homem, mas me deu pena e vou à luta mesmo: depois daqui bem que podíamos dar um pulinho lá em casa, moro aqui perto, o que acha? Ele topou sem titubear. Só então notou as minhas pernas roliças. Sou meio gordinha, mas quem não é? O homem quis acender um cigarro, mas a recepcionista do consultório o impediu com o dedo balançando propositadamente. Pela hora marcada, ele seria atendido antes de mim. Se ele já estava com o chororó frouxo aqui, o que fará quando sentar de frente ao doutor Pascoal e começar a relatar como andou a vida desde a última sessão. O meu problema era outro: queria muito acabar com o lance de me prostituir, mas não conseguia – nem era mais por dinheiro, era vício. Regularmente, a cada trinta dias, vou ao psiquiatra para tomar jeito. Esta foi minha quinta sessão e, ao sair com aquele ar de alívio, encontrei do lado de fora da clínica o Constantini fumando um cigarro. A chuva aplacara.
Mendes Júnior
* Publicado no Jornal O POVO, em 09/09/2007;
** Photo by Miro Svolik, "My Wife".
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