18 setembro, 2007

Meia-noite


23/04/2006.


Que poderia dizer da meia-noite se agora é a única a me fazer companhia, se neste exato instante é quem me toma todas as mágoas passadas? Sinto-me tal e qual um bicho inseguro e, amiúde, permaneço imóvel e sem direção. Estou tão próximo do desespero e da dor! Não esporádico meu pensamento se alimenta de algo insistentemente amargo. Mas sou sabedor de que nada dura para sempre e, quanto menos eu esperar, eis que surgirá (repentinamente) o fiapo tão desejado de uma esperança (lúbrica) – a única que de fato não morre (ou será o contrário), daí acreditar no amanhã como quem crê na extremidade do suspiro da bendita angústia. Os ponteiros inimigos denunciam a chegada de mais uma virgem madrugada. Outro fato do qual estou certo é de que não há relógio que alardeie ao marcar meia-noite.

E mesmo se estivesse expondo uma noite festiva ou quem sabe religiosa – na incomum tentativa de garantir, decerto, uma absolvição –, não justificaria a presença deles naquela rua àquela hora. Na hipótese poderia repetir a narrativa triste que noutro dia me chegou, para a qual não dei qualquer crédito, até pelo absurdo da minha franqueza, mas isto não traduziria o real. Por meio deste coração – que um dia certamente não será de outro – percebi tratar-se de um momento qualquer, num lugar qualquer, durante uma meia-noite qualquer. A cena: uma mãe, uma criança de colo e duas crianças já crescidas. E aquilo nunca saiu da minha cabeça.

É impressionante a capacidade que temos de armazenar desastres (pois é desta maneira que concebo). Basta uma leve topada e lá se vai o pensamento seguindo por um rumo sob o qual não temos nenhum controle. Às vezes fazemos viagens longínquas com um simples acorde ou toque de fragrância. No meu caso, meias-noites levavam-me por um labirinto escuro e maldito. Não me permitia a memória apagar o rosto daquela mãe. Poderia desenhar os traços de seu nariz e de sua boca, caso fosse necessário, mas não há alívio para tanto. Deparo-me, no entanto, enxugando suas lágrimas e acalentando seu desespero. Não seria capaz de fustigar minha expressão insalubre. Por instantes não tirei os olhos do rebento que se acomodava em seu regaço. Os dois outros pequeninos batiam freneticamente na minha janela, que nem sequer colheu suas digitais. Eram quatro mãos abertas chamando-me e clamando por um punhado de atenção; talvez viradas para o céu esperassem uma alma caridosa a lhes saciar a fome. Não consegui desviar a vista daquela criatura sentada à beira de calçada esperando sabe-se lá o quê da vida. Durante segundos, não mexi parte alguma do corpo.

Mas o movimento nos faz novamente humanos e seria (in)compreensível encontrar alguma beleza lá fora. Imaginemos – não como poetas – que nas ruas muitos se digladiam pela sobrevivência. Pisei fundo: medo?, não sei, mas fugi, no entanto não imaginava que o meu maior medo viria enlaçar minh’alma até agora. Talvez aquela mãe sem paradeiro tenha atestado na minha face uma forte vergonha. Não queria que eles estivessem ali. Não deveria ter sido comigo. Poderia ser com qualquer um, mas foi comigo, justamente comigo, que nada fiz por essas tristes vidas. Embora tarde fosse o tempo, queria agora ser um angorá e ter passado a noite com aquelas crianças brincando e se deixando brincar. Meia-noite e essa vontade de chorar.

Mendes Júnior.
* Photo by Lourdes Grobet, "Blue Demon".

Nenhum comentário: