14/09/2007.
Ao José Alcides Pinto
Ontem visitei um poeta, mas não um poeta menor, como deixou em testamento Bandeira, que tampouco precisava pedir perdão por isto – vaidade? claro que não: nele habitava a estrela da vida inteira –, nem há que se admitir tão-somente o fogo das constelações e seu risco brevíssimo, pois era belo belo belo e poeta assim não precisa se ir pra Pasárgada, embora não tenhamos a dádiva de transmutar o destino alheio e, certamente, estará lá, com ou sem mesuras, estendido numa cama simples acompanhado de uma doce prostituta, as duas escolhidas como se nunca as tivesse possuído, zombando de nós (invejosos) mas de maneira saudável. Como lhes falava, ontem visitei um poeta, e é gostoso ouvir a poesia brotando do próprio cotidiano, da existência da fala sem a camisola de escritor, das coisas comuns a quaisquer comuns como nós, gente que ri do óbvio e pensa ser louco o mais ajuizado dos homens, pois, não debulhem o abacaxi, somos (todos) uma cambada de neuróticos, me dizia Freud na “Interpretação dos Sonhos”, que de pronto aceitei sem questionamentos. Chamou-me poeta e quis saber de mim se eu rabiscava alguma coisa ou se algum dia da minha luta havia escrito um poema qualquer ou se já olhara uma página vazia como para uma mulher a ser explorada com a delicadeza de virgem, com lápis em punho, mas não, poeta, quem sou eu para transformar angústia em poesia, senão um reles contínuo que adora uma sacanagenzinha? Vim em sua morada, com o respeito necessário, pedir-lhe humildemente que assine essa edição, pois é aniversário de uma namoradinha e ela adora suas histórias – passa o tempo inteiro com o volume debaixo do braço, pra cima e pra baixo – e gostaria de fazer uma surpresa. Ofereceu-me um pouco de refrigerante e me advertiu de que não o chamasse de senhor, por hipótese alguma, apenas de poeta. Vou aceitar um copo, obrigado, poeta. Nunca havia estado próximo de alguém que eu considerava tão importante, por isso demorei um pouco para dominar a bebida na minha mão, que tremia de respeito. Não havia mais ninguém na modesta casa, que ficava no final de uma vila no centro, e nas molduras coladas às paredes descascadas da sala apenas recortes antigos de jornais com imagens de um escritor quando jovem. Veio-me novamente Bandeira: “Não tive um filho de meu./Um filho!...Não foi de jeito.../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu”, e isto ficou soando falso tão logo adentrou pela estreita porta de madeira uma de suas filhas, disse-me. Seu nome confesso não lembrar, mas há relação com algum país – acontece que não sou bom com identidades nem com datas. Pegou uma caneta de tinta preta sem tampa e virou cuidadosamente a capa do livro. Via-se uma mão frágil, que denotava muita idade, da qual eu era sabedor, mas passei a duvidar a partir de então: lucidamente me contava histórias e mais histórias de pessoas que eu não conhecia, o que não me impedia de enxergar a riqueza dos detalhes e de sorrir quando engraçado; havia satisfação no relato, denunciando um leve apreço por visitas. Mas me esclareceu: poeta não sofre de solidão, ele tem a poesia e isto é o bastante. Pediu-me licença para apagar o fogo e, a passos lentos, arrastando com os pés um chinelo de borracha, dirigiu-se à cozinha. Não entendia por que eu fazia associação entre Bandeira e ele, entretanto, durante o minuto que durou para voltar à sala, cantei baixinho: “O dia vem, e dia adentro/Continuo a possuir o segredo grande da noite”, mas por quê?, talvez por achar que aquele homem, à minha frente, apenas queria a delícia de poder sentir as coisas mais simples da vida e para todo o resto oferecia sua intensa arte. Perguntou-me a quem deveria ser dedica a homenagem. Enquanto escrevia o nome de minha amada, conclui que ele não carecia de nada mais, pois, assim como poucos, já nascera poeta. Agradeci pela gentileza e me despedi prometendo voltar um dia. Passar bem!
Mendes Júnior
* Photo by Peter Rodger, "New Orleans, 1997";
** Publicado na Revista Cronópios, em 02/06/2008;
*** Publicado no Jornal do Leitor, Jornal O POVO, em 14/06/2008.
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