22/09/2007.
Rinaldo Galhardo despertou em estado de perturbação absoluta, mas isto por causa do dia anterior, que – diga-se de passagem – foi dos mais trágicos na sua vida. Logo cedinho, levaram-lhe as únicas moedas enquanto aguardava a condução diária, depois, diante da ausência do minguado dinheirinho, teve de ir caminhando até a repartição e, por esta razão, ao bater o ponto, foi levado à mesa do gerente para ouvir poucas e boas pelo atraso. Na mesma manhã, por intermédio de um companheiro de sala, descobriu-se traído por um antigo colega de colégio, chamado Pompeu, que há muito vinha tendo um caso amoroso com Leide, uma balconista que Rinaldo Galhardo se enamorava desde o começo do ano e que correspondia porém com um sentimento estranho, é bem verdade, mas somente agora entendia o porquê. Nada disso, até então, havia feito qualquer estrago ou mudança na expressão sempre econômica de Rinaldo Galhardo, a não ser uma bala perdida que acertou em cheio o seu peito, quando caminhava para o almoço pela Major Facundo, por ter sido confundido com um perigoso-cruel-assaltante-de-banco-há-tempos-procurado.
Não lembrava de muita coisa, mas aquela brancura toda no quarto, inclusive no pijama que agora vestia, denunciava um hospital – público ou privado? – era uma pertinente pergunta a ser feita, pois Rinaldo Galhardo não tinha nem para o ônibus de volta. Procurou por aqueles botões ao lado da cama que chamam enfermeira (ou coisa que o valha) para se certificar do que teria acontecido a ele, mas não havia nada que indicasse essa facilitadora comunicação, no entanto existia a mais antiga de todas: a voz. Absurdamente, Rinaldo Galhardo não conseguia falar palavra algum, não saía nenhum gemido por sua boca, enfim, ele estava mudo. Rinaldo Galhardo pensou tratar-se de um pesadelo, uma brincadeira de mau gosto do seu inconsciente, que teria ficado invocado com o impedimento imposto pela barreira de recalcamento, e assim lhe concedeu um bom beliscão, a fim de trazê-lo de volta à realidade, entretanto, mesmo podendo notar a mancha vermelha no braço, não sentiu dor.
Viu numa mesa de canto, dentro de um copo de vidro improvisado de jarra, um par de rosas amarelas. Quem as teria posto ali? uma visita? a balconista? alguém da família?, mas as perguntas se iam como vento pela janela aberta. Esticou o pescoço para tentar enxergar a paisagem fornecida pela única janela do quarto, mas sentiu como se estivesse flutuando e a náusea fez com que recostasse a cabeça no travesseiro e se deixasse como antes. Totalmente incompreensível, pensava Rinaldo Galhardo, e aquilo começava a minar sua paciência. Tentou gritar mais uma vez, porém forçou tanto as cordas vocais que ficou cego. Era o cúmulo o que acontecia a Rinaldo Galhardo: num quarto de hospital sozinho, sem saber o porquê, deitado numa cama sem fios ou aparelhos colados ao corpo, sem voz e, agora, cego. Precisava de ajuda para entender um mínimo.
Rinaldo Galhardo pensou como devia ser diferente já nascer cego e perder a visão depois de velho, tendo tomado conhecimento das cores, das formas, do bonito e do feio. Nada fazia sentido, no entanto, com uma elegância surpreendente, esfregou os olhos inválidos e construiu imagens disformes de cor amarelada. Lembrou do par de rosas que estava ao seu lado e imaginou seu cheiro, mas não passou da tentativa, pois também estava privado do olfato. A vida é mesmo um desafio e, por vezes, confusa e preclara de ser abatida. Rinaldo Galhardo, em meio à sua cegueira, conseguiu no vazio lembrar, mesmo que de forma muito limitada, do que havia acontecido no ontem e sabia ter levado um tiro. Passou a mão pelo corpo, para encontrar exatamente o local atingido, mas já não havia as sensações provenientes do contato. Aquela situação maluca levara-lhe a um descontentamento no peito e só então atinou que o tiro fora no lado esquerdo dele, ou seja, no coração. Pobre Rinaldo Galhardo...
Mendes Júnior.
* Photo by Hyvrard, "Pongo nº 1".
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