
31 dezembro, 2007
No último dia do ano

19 dezembro, 2007
Caixa de madeira VI

O menino acabou cochilando no banco da praça, o qual já considerava como um segundo reduto, ou, talvez, o primeiro e único em que se sentia verdadeiramente confortável. Tomou um baita susto quando a mãe sacudiu seu braço. Quase leva um tombo. A viúva trazia na outra mão um pedaço de pão com manteiga e leite gelado para o menino saciar a fome. É verdade que não se alimentava desde a noite, entretanto, diante da escassez de comida que ambos amargavam diariamente, pelo engabelo de dona Jussara, aprendera a controlar as ânsias do estômago. Pegou então cuidadosamente o pão e começou a comer cheio de educação. Entre a pausa de uma mastigada quis saber da mãe como havia sido a noite. “Tranquila, normal e comum”, disse-lhe a viúva, ainda marcada de cores escuras no rosto e um chupão no lado esquerdo do pescoço. O menino tinha certeza de que aquele tipo de resposta não deixava brechas para nenhuma outra pergunta. Apesar da pouca idade, já compreendia muito bem determinados fatos, e este era um deles. Pediu à mãe que lhe passasse o copo de leite. Bebeu como se desfrutasse um enorme sorvete de creme com passas: arriou os olhinhos e se deixou viajar na imaginação pela roda-gigante colorida e iluminada, que circulava somente com ele, que funcionava para ele, e ele sentado numa cadeira amarela se balançando e acenando lá de cima para viúva e o tio ventríloquo, que se abraçavam, comendo maçã-do-amor, feito um bonito casal. A bem da verdade, a roda-gigante descansava pálida ao lado do banco, e isto o menino se deu conta por causa de uma leve ventania de areia que o obrigou a voltar da viagem. Como se não bastasse, ainda encheu seu leite de grãos de areia. A viúva pensava na dor daquela criança; entendia que o máximo que podia fazer – aquilo que estava ao seu alcance naquele instante – era não chorar na sua frente, assim passaria a idéia de fortaleza, segurança, que tudo estava bem e que a vida se resolveria tão logo Nepomuceno aparecesse, “caso não estivesse morto”, pensou no vazio. Então a viúva passou a mão pela cabeça do menino, tocando delicadamente as longas unhas no seu couro cabeludo, a fim de tirar um pouco da terra que se incrustou nos fios. Era tanta sujeira que desistiu. “Vamos apostar quem chega primeiro na dona Jussara?”, propôs o menino e os dois saíram correndo como duas crianças lépidas e traquinas.
Passados cinco dias, o menino quedou-se numa rede com o corpo infestado de perebas. A princípio, pensou-se tratar de catapora, pois as feridas vieram acompanhadas de uma febre muito alta, mas logo foi descartada a possibilidade por um infectologista da região, assim como qualquer espécie de verme, mas que também não conseguiu identificar qual a moléstia. Havia outros sintomas: o menino estava vomitando sangue, tinha o solado do pé e a mão esbranquiçados, a visão rareava, atormentava-se a cada minuto com uma pontada muito forte à altura do estômago e, por fim, queixava-se de uma coceira incontrolável no ânus. Em se tratando de doença, duas coisas preocupavam a viúva: quando o médico não sabia diagnosticar ou quando a danada era considerada rara, pois, em todo caso, o médico ficava no patamar do paciente: vulnerável à vontade de Deus.
O fato é que, se o menino já era magricela, ficou a ponto de desaparecer de vez – tudo que colocavam na sua boca voltava empapado de sangue. Dona Jussara, que de boba nem o andar possuía, sugeriu à viúva duas coisas: fosse embora com a peste dali ou aumentasse o apurado da casa, sobrando-lhe apenas dez por cento por cada deitada. Não havendo outra solução, optou pela segunda; depois arranjaria um meio de conseguir os remédios do filho. As companheiras de meretrício se demonstraram tão más quanto dona Jussara. Ninguém se ofereceu para ajudar. Finalmente havia chegado o momento de se vingarem por Valquíria Callas ter-lhes tomado a clientela montada na grana. Riram como se desejassem o trágico. Era a única com filho na casa, embora não fosse considerado privilégio, já que para isto dona Jussara exigia muito mais. Para quitar a dívida com o infectologista, Valquíria Callas teve de ceder o corpo muitas vezes. Mas não era exatamente isto que mais lhe tirava o sono, mas não saber do problema do menino e até onde ele seria capaz de aguentar. Nepomuceno bem que poderia estar presente para socorrer ambos, murmurava a viúva.
Com a graça divina, uma vizinha de dona Jussara se apiedou da situação do garoto e sugeriu à viúva que lhe desse baba do coco de catulé. A viúva perguntou do que se tratava. “Catulé é um tipo de palmeira que dá uns cocos bem pequenos e a baba deles ajuda a curar doenças dos olhos. É fácil encontrar lá por aquelas bandas”, respondeu uma senhora de idade, apontando o indicador para o norte. “Mas o problema dos olhos do meu filho é apenas um entre tantos mais sérios!”, retorquiu a viúva, deixando a velhota furiosa. “Pois que seu filho morrar!”, gritou.
A história da enfermidade misteriosa correu Massapê e a população exigiu das autoridades providências, e rápidas. A medida mais sensata seria afastar do convívio social o menino por medo de que o mal fosse contagioso. Para desespero da mãe, levaram-no para o isolamento do hospital público. A cena na casa de dona Jussara foi das mais horripilantes: era a viúva puxando pelo braço da criança, tentando impedir o afastamento, enquanto três brutamontes vestidos de branco, sem dificuldades, se encarregavam de colocar o fiapo de gente dentro da ambulância. Momento algum o menino esboçou reação – parecia não saber do que se passava. Ou não lhe restava força. Já há muito não enxergava nada e sentia muita falta das luzes da roda-gigante. Sonhava acordado com as fluorescentes e seus celofanes coloridos.
“Era o mais acertado a se fazer”, dignou-se a dizer dona Jussara à porta de casa.
13 dezembro, 2007
... e saiu barata

01 dezembro, 2007
Lacanastrão

27 novembro, 2007
Indicações Musicoliterárias
Mendes Júnior
22 novembro, 2007
Os donos do mar

(Para melhor compreensão do texto, pedimos que ampliem a foto ao lado)
Das águas – então serenas – pareciam sair chamas, todas ardentes, pois todas as chamas são ardentes, e usurpadas das entranhas, tamanha amarelidão que ressurgia do espelho criado pelo mar, que não estava para peixes nem para tubarões nem para qualquer coisa que o valha, mas tão-somente para eles: os donos do mar, que se alimentavam do ar venturoso e do sal trépido, que tocavam suas bocas de forma a escancarar incontinente e denunciar o vazio, o oco, o nada, mas que, contudo, insinuava o prazer incompreensível, talvez porque as narinas dos donos do mar estivessem atulhadas de ilusões, devaneios e sonhos, que jamais se concretizarão, senão no próprio castelo levantado sob os olhos de uma ponte cravejada de animais menores oriundos da mãe-natureza, que recobriam suas finas pilastras e que não levavam a lugar algum, seja para cima ou para baixo, seja para quaisquer dos lados, pois não havia navios atracados fazendo sombra aos donos do mar, que ora era capitaneado pelo que se esticava na base horizontal e oriental de concreto deixada de lado um dia, com o rosto juvenil perdidamente em direção ao súbito teto, que provocava a tal chama que lhe banhava o peito desnudo e escorregadio de suor e lhe induzia a cerrar os magros olhos vermelhos enquanto o ora defensor se escorava no concreto vertical embevecido pelo milagre da felicidade, embora soubesse de que sensação assim é passageira e, de certa forma, cruel, mas de quê adiantaria caso fosse eterna, qual a serventia, pensaria o pobre defensor – o guardião do castelo –, castelo este à beira-mar, de vista gloriosa e de desenho imponente, que não tinha fim, que não oferecia destino, mas era o prazer dos donos do mar que lhes importava, pois não haveria mudanças até que a sereia resolvesse partir para o mais longínquo escondedouro e de lá não mais enviasse a magia do seu canto, mas a ora sereia saltava da ponte tão linda quanto seu sorriso – que inebriava a todos em sintonia com o perfume do mar, que alimentava um por um os donos do mar –, e era justamente da janela do castelo, corroída pela maresia, por onde a sereia observava a infinitude das águas, que eram mais dela do que de qualquer outro, no entanto solitária – desintumesceria seu coração –, portanto, preferia viver na companhia dos seres desolados daquele pedaço da água – eles eram reis –, além disto, se protegia da malfadada das gentes e era desejada feito o girassol, de mesma amarelidão, por outros dois rapazolas, que loucamente se jogavam aos seus pés, (perdão: cauda), como quem se aventura do alto da torre de um castelo, do castelo sem teto que era deles, que ficava no território marcado por eles, que riscava a ponte com eles, que queimava a pele deles, donde se via de longe, de muito longe, lá longe, o sorriso dos verdadeiros donos do mar.
21 novembro, 2007
Indicações Musicoliterárias
Esteja dito!
Mendes Júnior.
João dos Santos (ou manhã à moda impressa no jornal)

João dos Santos – abrasileirando sua graça – nasceu de um parto mal sucedido: foram sete meses na barriga de uma meretriz, que vendia o esquálido corpo no Trenzinho de Chica Fulepão, e, ainda assim, conseguira ser cuspido de suas entranhas para tombar no solo infértil das ruas. O pai era um politiqueiro da cidade. Segundo as más línguas, deixou de visitar os lençóis amarfanhados quando soube que seu sêmen havia procriado uma criatura. Aos nove anos perdeu a mãe para um amante endiabrado, passando a viver de acordo com os domínios d’Ele. Entre noites em claro e profundo abandono, lutou para ver chegar (sempre) os raios de um novo dia.
Em suas idas e vindas pela praça da Sé, João dos Santos conheceu, além da escória da humanidade, seu Alfredo Tamboril, dono de um armazém de trigo. Acabaram "chegados" e seu Alfredo, por tanto escutar histórias do coitado João dos Santos, lhe ofereceu um emprego de estivador. João dos Santos não pensou duas vezes. Em vinte e dois anos, fora renitente em não cair nas armadilhas urbanas, o que lhe conferia uma firmeza de caráter. O trabalho era apenas consequência da sua força de vontade. Para tanto, seu Alfredo Tamboril exigiu o mínimo: um passado sem máculas, mas atestado pela polícia.
Acontece que na 12ª DP, ao tentar conseguir o documento que seria sua alforria do mundo dos vagabundos, houve um princípio de algazarra pelo roubo do telefone móvel da delegada de plantão. E alguém apontou o dedo para João dos Santos.
“Tu tá preso, cabra safado! É muita audácia! Na própria Delegacia!”
João dos Santos ficou mudo. Levou um soco na boca do estômago vazio.
Portanto, como observado, João dos Santos, de história pregressa irretocável, foi confundido com ladrão e preso, perdendo a oportunidade única que tivera na vida. Uns dizem que foi por causa do preconceito, já para outros o determinante foi seu lado paterno. A certeza que se tem é a de que João dos Santos partiu em busca da folha corrida limpa e alcançou, sem querer, os antecedentes criminais.
16 novembro, 2007
O problema são as cartas

13 novembro, 2007
Seu Percival

naqueles minutos de angústia,
do que minha nudez ao vento da alameda
de um jardim desconhecido.
(História do Olho – Georges Bataille)
Retirada a aposentadoria, o que fez seu Percival? Com uma merreca no bolso, junto da imagem miúda de São Francisco de Assis, lapidada em pedra-sabão, adquiriu uma passagem de ônibus leito, e foi a Tutumé visitar quem ainda vivo estava na grandiloqüente família Junqueira da Silva, que há tempos rareou em mandar notícias via postagem. Percival Junqueira da Silva Neto já há muito passeava pela casa dos oitenta e, após um susto dado pelo velhaco coração imerso em nuvem de fumaça e desgosto, sentiu que passara e muito da hora de voltar a Tutumé, mas ainda assim quis a força do destino e o suspiro da saudade que seu Percival atinasse para o fato de que ainda se revestia da galantaria de um touro reprodutor e havia o ânimo firme para cheirar umas menininhas na casa de Madame Chica Fulepão e delas tirar um sarro mais-que-gostoso; ora, queria aproveitar enquanto a verdasca do touro reprodutor respirava. Talvez mais do que isto – seu Percival não escondia. Tutumé era uma baita cidade, até o surto de depressão, em meados dos anos vinte, que deitou a população quase por inteira. Dizem que foi logo após a temporada de um circo de ciganos. Muita gente não sustentou o troço, lembrava seu Percival, e acabou se valendo de tiro, de corda grossa, de veneno para ratazana e de afogamento: “Era o fim dos tempos! Era o fim dos tempos!”, murmurava seu Percival, que à época namorava uma donzela de pêlos escuros e volumosos, olhar manhoso e couro alvo, que terminou seus dias tenros pulando de uma ponte, entre Tutumé e Manuaba do Norte – pelo menos era a versão propagada nas cercanias, pois o corpo nunca fora encontrado. Ela atendia por Rosa – nome justo. Seu Percival ficou desconsolado: perdeu a criatura mais fogosa da face da terra. Foi nesse momento que decidiu seguir viagem por direção torta e tão cedo precisar retornar a Tutumé, terra de povo, agora, sisudo e estranho. Ele também sofreu bastante com a onda de depressão e por muito pouco não deu cabo da própria vida – por muito pouco mesmo, no entanto ele já era um touro reprodutor – não se desvaneceu. O mais dolorido foi mesmo o trágico suicídio de Rosa, com quem deitava numa redinha todo comecinho de noite para um chamego. Era aquele perfume de princesa que cegava seu Percival e, por esta razão, já havia comprado anel e tudo o mais para as formalidades legais do noivado. Queria passar a vida inteirinha com Rosa, mas a história foi interrompida pela covardia dela, que sequer deixou um bilhete dizendo “adeus, Percival!” Nada! Seu Percival se segurou para não chorar dentro do ônibus – ele era um touro, não podia esquecer. Cinqüenta anos entre Tutumé e ele – uma separação reflexa pela compleição da bunda de Rosa: que coisa louca! que gostosura! Seu Percival não insistiria em viver sem aquela maravilha e achou por bem sair correndo de Tutumé, mas, aos oitenta e qualquer coisa, decidia retomar uma lembrança bem guardada junto ao sexo de Rosa. “Era a felicidade! Era a felicidade!”, suspirava seu Percival, o touro reprodutor.
09 novembro, 2007
Suplantaram o Ribeiro

“O quê? O Ribeiro fez o quê?”
“Não! Suplantaram o Ribeiro! Você não sabia?”
“Não! Não sabia! Mas quando foi isto? Como foi isto? O Ribeiro parecia ser uma pessoa tão direita...”
“E continua sendo. Ele é a vítima. Ele foi suplantado lá na repartição, ontem mesmo! Mal chegou do cafezinho, pronto: suplantaram o coitado do Ribeiro!”
“Escuta, mas o Ribeiro de quem você fala é aquele que comeu cocô quando era menino?”
“Este mesmo! Você com certeza lembra dele. Ele é aquele homão de cor indiana, casado com a Rita de Cássia, que alguns dizem que é a maior safada da paróquia”.
“E o Ribeiro é chifrudo?”
“Olha, particularmente, acredito que sim. Veja bem, a mulher outro dia estava lá no bar do Osvaldão num assanhamento de cobrir o rosto das atitudes. E isto ainda era pela manhã!”
“Mas qual o problema do horário?”
“Amigo, mulher que fica dando mole para outros machos em plena luz do dia não tem um pingo de caráter. Sem contar que bebia. Bebia! Está escutando?”
“Pena do Ribeiro... Ele não merecia tanto...”
“Meu caro, a vida é tinhosa! Por isso defendo o pensamento de que é na criancice que a pessoa decide seu trajeto. Veja, o Ribeiro comeu cocô menino e, depois de sei lá quanto tempo, continua sendo o preferido das chacotas. Bem, mas não é todo dia que se encontra alguém que já provou merda, né?”
“É verdade... Não é todo dia... Qual linha você vai pegar?”
“Não, vou ficar por aqui mesmo. Estava de passagem quando o avistei nesta parada. E tem mais! Dizem que o pai do Ribeiro dava uns cacetes na mulher. Onde já se viu homem bater em mulher?”
“O Ribeiro teve uma infância muito complicada... Como vai sua senhora?”
“É como digo: é na infância! É na infância! É na infância!”
“Mas...”
“Nem queria colocar o motor para pegar, mas dizem as péssimas línguas, pois somente más é pouco, e o povo gosta de falar muito, que, de tanto presenciar a mãe apanhando sem nada fazer, acabou ficando meio maricas. Mas como não há meio anão nem meio qualquer coisa, digo que o Ribeiro é maricas!”
“Exagero, colega...”
“Não! É maricas, sim!”
“Mas ele não é casado?”
“Vai lá saber o gosto dessa patota. A Rita de Cássia, no entanto, é vagabunda e vive nas esquinas do centro dando pra um e pra outro. E de manhã, meu caro, é fogo!”
“Ainda não entendi esta parte do horário. De qualquer modo, o Ribeiro não teve sorte na vida. Talvez você tenha razão. Deve ter sido durante a infância”.
“Batata!”
“Mas, independente de tudo, é desumano sair suplantando as pessoas, principalmente um sofredor como o Ribeiro”.
“Estamos falando de um sujeito que comeu cocô, amigo! O mundo tem suas deficiências, mas não é injusto! Um cara que comeu cocô! Sei não!”
01 novembro, 2007
Espiral

Mendes Júnior.
* Photo by Pierre Alechinsky, "Spirale II".
Leituras de uma viagem

25 outubro, 2007
Sodomītae-ārum

* Publicado no site da Revista Piauí;
** Publicado na Revista Cronópios, em 26/08/2008;
*** Photo by Ralph Gibson, "Leda".
24 outubro, 2007
Indicações Musicoliterárias
08 outubro, 2007
Bachelard (1884 – 1962) – Ruptura epistemológica para explicar o novo espírito científico – II

Bachelard foi decisivo para o desenvolvimento da epistemologia como saber autônomo, cujas idéias passaram a orientar as diretrizes teóricas do pensamento epistemológico e a propor uma certa autonomia e uma linha alternativa ao neopositivismo lógico em virtude da insistência sobre a consideração “histórica” dos processos científicos. A saber: Bachelard concebia a existência da imaginação criadora de cada um na ciência e, por esta razão, não mais era possível uma contraposição entre a razão e a imaginação. Por sua vez, desenvolve seu pensamento através de duas vertentes (aparentemente) antagônicas: ciência e poética, e isto permitia a Bachelard ser um racionalista rigoroso e ao mesmo acorde passear na esfera dos sonhos e devaneios, aprendendo o verdadeiro sentido da imagem e da imaginação. Eis uma considerável ruptura, na qual faz surgir uma grande polêmica, pois se trata da epistemologia e da poética caminhando juntas de encontro aos conhecimentos arraigados pela tradição. Bachelard entendia que era possível, sim, a complementação da ciência com a poética, permitindo ao homem um mundo novo e surreal.
De acordo com o pensamento de Bachelard, a razão não deixa de ter uma história, mas uma história com trajetória descontínua e com muitos obstáculos, portanto somente a epistemologia que partisse da reflexão da própria ciência poderia se tornar adequada para expressá-la. Para Bachelard, a filosofia positivista era considerada ultrapassada na medida em que não conseguia “dar conta das transformações que o saber científico sofreu”. Aqui, abrimos um parêntese para ressaltar o pensamento de Bachelard no que diz respeito aos períodos que considerava ter passado a história das ciências: o estado concreto, o estado concreto-abstrato e o estado abstrato. No princípio exaltava-se a experiência, mas é no estado abstrato que há a discussão da experiência, ou seja, menos empírico e mais abstrato. A ciência deixaria tão-somente de descrever dados e passaria à epistemologia discursiva e, por intermédio da descontinuidade e da ruptura, haveria o progresso e o desenvolvimento do pensamento e da razão. Bachelard combaterá a noção de razão absoluta e contínua, as “filosofias do imobilismo”.
Bachelard defende uma polaridade epistemológica, entendendo que a filosofia das ciências deve conter dois pólos: realista e idealista, empirista e racionalista, ao mesmo tempo. Seria, portanto, o reconhecimento do a priori e do a posteriori representando a dinâmica do conhecimento; há um complemento e o fim é o dinamismo da própria ciência – há um desenvolvimento dialético. Propõe Bachelard uma espécie de pedagogia da ambiguidade para dar ao espírito científico a flexibilidade necessária à compreensão das novas doutrinas.
05 outubro, 2007
Caderno de Viagem – Mito e história e estória

03 outubro, 2007
Assalto à moda moderna (ou Assalto à moda impressa no jornal)

01 outubro, 2007
A síndrome de Ulisses: a decomposição de um sonho

“Então, no meio daquele grupo, fui acometido por uma intensa e opressiva sensação de orfandade, como se em algum ponto tivesse me extraviado do caminho e agora me encontrasse numa órbita distante, algo como o Planeta dos Macacos, só que com poloneses e romenos (...)”²
No entanto, não deixa de reconhecer a função maior dessa realidade:
“(...) mas enfim, disse a mim mesmo, minha vida, por escolha própria, tinha agora mais a ver com todos eles do que com minhas lembranças de Bogotá, e era justamente isso o que tinha diante de mim, nem mais nem menos (...)”
Nessa Paris desfocada, “numa cidade cheia de hostilidade e frio”, os imigrantes acabam se isolando em grupos multilíngües e somente em esporádicas ocasiões se relacionam com os nativos. Geralmente, estes acontecimentos estão permeados por uma ilusão causada numa esteira de festas regadas a drogas, sexo e bebidas, sendo este um desvio crucial: o imigrante, numa tentativa de fugir de toda ordem de problemas causados pelo meio, principalmente no âmbito psicológico, facilmente encontra alento no vício. No livro insere-se desde o consumo excessivo de drogas até o vício produzido pelo sexo sem medida, tema este que é tratado em diversas vertentes e, de certa forma, abertamente, indo da relação homoafetiva até a posição-inaugural par detruá. As pessoas que transitam pela história parecem usufruir muito bem desses “entretenimentos” a despeito da perda de “uma esperança de tudo se ajeitar”, como diria Chico Buarque, e, com isso, passam a creditar os destemperos e agruras à própria cidade e acabam se deixando cair por terra:
“(...) Para mim também esta cidade implicou uma apredizagem difícil, uma sangrenta lição daquilo que eu era e, principalmente, daquilo que queria ser (...)”
O jovem Esteban abandona sua Colômbia na afetuosa idéia de que irá se transformar em um escritor, muito embora saiba que a novela que produzira não era tão boa assim, no entanto, Paris, como um histórico centro cultural, poderia abrigar e enaltecer sua literatura – pensava ele –, mas o que não sabia era que uma teoria dessa não valia para um marginalizado feito ele, ou quem sabe o sucesso estivesse relacionado tão-somente com a competência no trabalho. Interessante observar que, no decorrer da narrativa, há dezenas de citações a autores e a títulos literários, em sua maioria estrangeiros, porém consagrados – gente que há muito deixou seu território para viver em cidades como Paris, contudo autores que conseguiram um confortável reconhecimento. Para servir de exemplo, Gabriel García Márquez escreveu sua segunda obra, Ninguém escreve ao Coronel, em janeiro de 1957, na capital francesa, romance este que já foi inclusive às telas da sétima arte. No entanto, não esqueçamos que as frustrações e as dificuldades no “exílio” são a tinta maior da escrita de muitos “Ulisses”:
“(...) a poesia e o exílio são velhos companheiros; o exílio traz com ele a tristeza do que se perdeu, o que já é em si um sentimento lírico (...)”
Nesse ponto, não se trata daquilo que o imigrante é ou faz, mas daquilo que ele queria ter sido – o sonho se perde, e isto parece inevitável. Não resta mais nada senão se subjulgar e tentar, quando muito, sobreviver. E há aqui uma bonita história. Deve-se levar em conta que o escritor Santiago Gamboa é licenciado em filologia hispância pela Universidade Complutense de Madri, estudou literatura cubana na Universidade de Sorbonne e atualmente vive em Roma, como correspondente da France Press, ou seja, qualquer semelhança com a personagem central do próprio romance não pode ser considerada apenas uma mera coincidência, obviamente com algumas diferenças.
“Ao dizer isto me deu um beijo e me bateu com o travesseiro: sinto muito que as coisas não tenham ido bem para você, disse, deve ser difícil viver assim nesta cidade, que oferece tanto a quem tem, você não pensou em voltar para Colômbia? Não, disse eu (…)”
É isso que Santiago Gamboa, por alguns críticos literários considerado sucessor de García Marquéz e Vargas Llosa, quer nos mostrar nesse belo romance.
_________________________________
[1]. Extraído: http://www.pensamientocritico.org/josach0407.html
[2]. GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. São Paulo: Planeta, 2006.
[3]. Extraído: http://www.literaturas.com/gamboa.htm
27 setembro, 2007
História de um desocupado qualquer

25 setembro, 2007
Ontem e Hoje

Poesia, sem data.
Num tempo, em algum lugar,
quando as rosáceas não exalavam amor
e a brisa não tinha frescor,
vi o enlace dos teus olhos
em minha negra — triste — face
e sorri... chorei... fui além.
Vejo, nesta hora, a minha amada,
em tipo meu lépido,
que não isenta nunca de brandura.
Assim, sempre...
Mendes Júnior
*Photo by Paula Bonneaud, "Écorce 2".
Noite baixa e Dia claro e Sonhos

Poesia, sem data.
por que são sonhos.
Acordaste junto ao meu peito
ao meu pensamento
puro
ao meu canto
doce
ao meu dia
vívido
à minha lembrança
de teu riso solto
à minha esperança
de nunca se acabar
com teus olhos nos meus
sem mesmo saber quais os teus
quais os meus
com profusão
(com)tentamento
caminhando por dia claro
e por entre teu puro riso solto
que é vívido
e que tem um doce
que nunca se apagará
dos meus sonhos
nunca.
24 setembro, 2007
Bachelard (1884 – 1962) – Ruptura epistemológica para explicar o novo espírito científico – I
não da simpatia”.
(Gaston Bachelard)
Uma das principais obras do francês Gaston Bachelard é “O Novo Espírito Científico”, cujo título original é Le Nouvel Esprit Scientifique, escrito em 1934. Não deixemos, no entanto, de citar “A Intuição do Instante” (L’Intuition de l’Instant), escrita um ano mais tarde, também de fundamental importância para entender o pensamento de Bachelard. Sem dúvida, e antes de mais nada, ressaltemos que o filósofo foi responsável por influenciar sobremaneira aquilo que se passou a pensar a ciência e todo um contexto analítico, bem distante das regras apregoadas pelo Positivismo de Auguste Comte, daí – momento em que podemos afirmar ainda – não ter se deixado prender à idéia de uma filosofia ortodoxa, o que lhe concedeu a alcunha de o “filósofo do não”. Isto, em miúdos, significa dizer que Bachelard acreditava que a história do pensamento não era contínua, mas com rupturas, revoluções e cortes epistemológicos. A bem da verdade, Bachelard foi um crítico e defendeu, para a construção da ciência, o racionalismo setorial e aberto, onde havia uma evolução por meio de conflitos. Para ele, o conhecimento necessitava ser aprofundado e aberto para ser considerado ciência.
[1]. BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 1996.
22 setembro, 2007
Sem sentido
